Em um piano distante alguém estuda uma lição lenta, em notas graves. De muito longe, de outra esquina, vem também o som de um realejo. Conheço o velho que o toca, ele anda sempre pelo meu bairro; já fez o periquito tirar para mim um papelucho em que são garantidos 93 anos de vida, muita riqueza, poder e felicidade.
Ora, não preciso de tanto. Nem de tanta vida, nem de tanta coisa mais. Dinheiro apenas para não ter as aflições da pobreza; poder somente para mandar um pouco, pelo menos, em meu nariz; e de felicidade um salário mínimo: tristezas que possa aguentar, remorsos que não doam demais, renúncias que não façam de mim um velho amargo.
Joguei uma prata da janela, e o periquito do realejo me fez um ancião poderoso, feliz e rico. De rebarba me concedeu 14 filhos, tarefa e honra que me assustam um pouco. Mas os periquitos são muito exagerados, e o costume de ouvir o dia inteiro trechos de óperas não deve lhes fazer bem à cabeça. Os papagaios são mais objetivos e prudentes, e só se animam a afirmar uma coisa depois que a ouvem repetidas vezes.
Chiquita, a pequenina jabota, passeia a casa inteira, erguendo com certa graça o casco pesado sobre as quatro patinhas tortas, e espichando e encolhendo o pescoço curioso, tímido e feio. Nunca diz nada, o que é pena, pois deve ter uma visão muito particular das coisas.
Agora não se ouve mais o realejo; o piano recomeça a tocar. Esses sons soltos, e indecisos, teimosos e tristes, de uma lição elementar qualquer, têm uma grave monotonia. Deus sabe por que acordei hoje com tendência a filosofia de bairro; mas agora me ocorre que a vida de muita gente parece um pouco essa lição de piano. Nunca chega a formar a linha de uma certa melodia. Começa a esboçar, com os pontos soltos de alguns sons, a curva de uma frase musical; mas logo se detém,e volta, e se perde numa incoerência monótona. Não tem ritmo nem cadência sensíveis. Para quem a vive, essa vida deve ser penosa e triste com o esforço dessa jovem pianista do bairro, que talvez preferisse ir à praia, mas tem de ficar no piano. Na verdade eu é que estou pensando em ir à praia, eu é que estou preso ao teclado de máquina. Espero que esta crônica, tão cansativa e enjoada para mim, possa parecer ao leitor de longe como essa lição de piano me parece no meio da manhã clara: alguma coisa monótona e sem sentido, ou às vezes meio desentoada, mas suave.
Passa o vassoureiro. É grande, grosso e tem bigodes grossos como todos os de seu ofício. Aos 50 anos darei um bom vassoureiro de bairro. De todos os pregões, o seu é o mais fácil: "Vassoura... Vassoureiro..." e convém fazer a voz um tanto cava. Ele me parece digno, levando entrecruzadas sobre os ombros, numa composição equilibrada e sábia, tantas vassouras, espanadores e cestos. Seu andar é lento, sua voz é grave, sua presença torna a rua mais solene. É um homem útil.
Não ousaria dizer o mesmo de mim mesmo; mas, enfim, já trabalhei, já cumpri o meu dever, como o velho do realejo e a mocinha do piano; vagamente acho que mereço ir à praia.
Crônica de abril de 1949. Retirada do livro 200 Crônicas Escolhidas - as melhores de Rubem Braga. Editora Record, 9ª Edição, 1993.
Ora, não preciso de tanto. Nem de tanta vida, nem de tanta coisa mais. Dinheiro apenas para não ter as aflições da pobreza; poder somente para mandar um pouco, pelo menos, em meu nariz; e de felicidade um salário mínimo: tristezas que possa aguentar, remorsos que não doam demais, renúncias que não façam de mim um velho amargo.
Joguei uma prata da janela, e o periquito do realejo me fez um ancião poderoso, feliz e rico. De rebarba me concedeu 14 filhos, tarefa e honra que me assustam um pouco. Mas os periquitos são muito exagerados, e o costume de ouvir o dia inteiro trechos de óperas não deve lhes fazer bem à cabeça. Os papagaios são mais objetivos e prudentes, e só se animam a afirmar uma coisa depois que a ouvem repetidas vezes.
Chiquita, a pequenina jabota, passeia a casa inteira, erguendo com certa graça o casco pesado sobre as quatro patinhas tortas, e espichando e encolhendo o pescoço curioso, tímido e feio. Nunca diz nada, o que é pena, pois deve ter uma visão muito particular das coisas.
Agora não se ouve mais o realejo; o piano recomeça a tocar. Esses sons soltos, e indecisos, teimosos e tristes, de uma lição elementar qualquer, têm uma grave monotonia. Deus sabe por que acordei hoje com tendência a filosofia de bairro; mas agora me ocorre que a vida de muita gente parece um pouco essa lição de piano. Nunca chega a formar a linha de uma certa melodia. Começa a esboçar, com os pontos soltos de alguns sons, a curva de uma frase musical; mas logo se detém,e volta, e se perde numa incoerência monótona. Não tem ritmo nem cadência sensíveis. Para quem a vive, essa vida deve ser penosa e triste com o esforço dessa jovem pianista do bairro, que talvez preferisse ir à praia, mas tem de ficar no piano. Na verdade eu é que estou pensando em ir à praia, eu é que estou preso ao teclado de máquina. Espero que esta crônica, tão cansativa e enjoada para mim, possa parecer ao leitor de longe como essa lição de piano me parece no meio da manhã clara: alguma coisa monótona e sem sentido, ou às vezes meio desentoada, mas suave.
Passa o vassoureiro. É grande, grosso e tem bigodes grossos como todos os de seu ofício. Aos 50 anos darei um bom vassoureiro de bairro. De todos os pregões, o seu é o mais fácil: "Vassoura... Vassoureiro..." e convém fazer a voz um tanto cava. Ele me parece digno, levando entrecruzadas sobre os ombros, numa composição equilibrada e sábia, tantas vassouras, espanadores e cestos. Seu andar é lento, sua voz é grave, sua presença torna a rua mais solene. É um homem útil.
Não ousaria dizer o mesmo de mim mesmo; mas, enfim, já trabalhei, já cumpri o meu dever, como o velho do realejo e a mocinha do piano; vagamente acho que mereço ir à praia.
Crônica de abril de 1949. Retirada do livro 200 Crônicas Escolhidas - as melhores de Rubem Braga. Editora Record, 9ª Edição, 1993.
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