segunda-feira, 20 de julho de 2020

Julieta

Julieta veio pulando num pé só e perguntou: "Você já viu o Saci-Pererê?" Nós ainda não tínhamos visto e ficamos um tanto constrangidas. Só Paulina, a mentirosa, se atreveu a dizer que sim, mas nós sabíamos que não era verdade, pela sua maneira de revirar os olhos e de franzir os lábios por cima dos dentes acavalados. Paulina mentia sempre.

Julieta, porém, acreditava no Saci-Pererê, e contava a sua história com tanto realismo que ela mesma ficava com medo e olhava para as esquinas e para detrás das árvores, muito inquieta. Mas, se era um molequinho tão pequeno, de uma perna só, e pulando pelos ares, não chegávamos a achá-lo muito perigoso. Recomeçávamos a brincadeira. Pelo seguro, cantaríamos debaixo da varanda. "Não, não", - explicava Julieta - "o Saci-Pererê é muito perigoso, porque tem um cachimbo aceso! É todo preto, e leva aquela brasa na boca!"

Todas as noites, antes de dormir, esperávamos ver passar entre as árvores o cachimbo do Saci-Pererê. E brigávamos com Julieta por sua causa.

Julieta era colorista. "Vocês já viram pitanga?" Paulina dizia: "Já..." toda apressada, com a dentuça de fora. "Mentira!" - dizia Julieta. "Pitanga, por aqui, só na casa do General, que é muito longe, do lado de lá, por detrás da barreira, onde há um formigueiro enorme e umas galinhas-d'angola e muitos escorpiões!" Paulina arregalava os olhos e nós todas ficávamos olhando para a sua mentira. Só Julieta é que conhecia a tal fruta chamada pitanga. E prometia levar-nos um dia até os fundos da casa do General.

Julieta conhecia o passarinho Bico-de-lacre. Paulina também. "Mentirosa!" E cambaxirra? E pintassilgo? E araponga? Paulina quase chorava de raiva, porque ninguém acreditava nela. "Tenho até um alçapão!" - "Um alçapão!" A roda toda desatava a rir, porque ninguém ignora que uma menina - mesmo uma menina mentirosa - não brinca com alçapão nem atiradeira, que são coisas de rapaz. "Mas eu armei um alçapão e peguei um canário-da-terra!"

"Canário-da-terra!" Julieta fazia assim com a boca. "Estou falando de Bico-de-lacre, menina!"

Julieta era uma pretinha muito engraçada. Pulava num pé só, acreditava no Saci-Pererê, já tinha comido pitanga e conhecia o passarinho Bico-de-lacre. Usava colarzinho de coral, sabia muitas histórias de assombração, tocava qualquer música com um pedaço de papel de seda e um pente fino.

"Vocês já viram fazer puxa-puxa? Eu, já." Sabia de doces: de cocada preta e cor-de-rosa, de bala de ovo, de baba-de-moça, e de bolos muito finos que só se fazem para festas de casamento.

Sabia de costura, também: de cerzir e de chulear. Sabia muitas coisas de linha e de lã, que se tecem com bastidores, grampos e variadíssimas agulhas. "Eu faço muitos pontos de crochê e de tricô, e borlas com rodelas de papelão por dentro. Já bordei todo o alfabeto num talagarça!" Paulina levantava as sobrancelhas: uma vez... uma vez, tinha feito um porta-jornais todo bordado a ponto de cruz. Muito difícil! E estava começando a aprender piano com uma prima. Revirava a boca cheia de dentes, para perguntar por sua vez: "Vocês sabem o que é um sustenido?" Ah, isso ninguém sabia.

Mas Julieta já tinha falado com um "clove". Que era um "clove"? Isso ninguém sabia também. Julieta contava: era uma espécie de palhaço, mas não era um palhaço. Era muito diferente. Diferente na roupa, diferente na cartolinha... E a cara! Os "cloves" eram horríveis! Usavam máscara de meia, com uma boca muito grossa e uns olhos caídos assim para os lados... A boca também era caída. (E Julieta ia imitando um "clove".) E o nariz esborrachado. E uma carapinha cor de fogo, de duas pontas. Às vezes, de duas cores: do lado de cá, vermelha, do lado de lá, verde... Horríveis! Qualquer pessoa ficaria com medo. Mas Julieta já tinha falado com um!

A roupa dos "cloves" era uma beleza. Umas calças tão franzidas, tão franzidas que não acabavam mais... E um casaquinho todo bordado de lantejoulas, com uma beiradinha de arminho. Ao sol, o "clove" ficava lindo. (Ela queria dizer clown, mas tinha aprendido assim. E as meninas gostavam muito das palavras ditas por Julieta.)

Julieta ia levar as costuras da tia. "Quando eu voltar, fico brincando, também." Nós continuávamos a bater palmas e a dizer versos. (Porque era tempo do Giroflê...) E ela voltava, chupando balas. As balas eram de mil cores, com recheio de mosaico imitando rosas pequeninas. Não podíamos entender como se fazia aquele recheio marmoreado. Nem Paulina se atrevia a dar qualquer explicação. Aquilo pertencia ao mundo dos mistérios, onde só mais tarde penetraríamos. Julieta, com a boca cheia de açúcar, observava: "Isto é como o arco-íris..." Paulina corrigia: "Você quer dizer o arco-da-velha?" "É a mesma coisa. Mas o dr. Aristides só diz arco-íris!" As meninas pensavam: "Mas que velha seria aquela, do arco?" Devia ser outra mentira de Paulina. Menina incorrigível!

"Vocês também nunca viram mula-sem-cabeça?" - "Nunca." - "Pois existe!" E existiam uns porões cheios de almas do outro mundo, que rezavam ladainhas e arrastavam correntes, tudo por causa de uma Sinhá Velha que andou toda a vida de chicote na mão. Mas era um pouco longe. Era preciso andar umas três ruas...

"Vocês já viram nascer criança?" - "Eu nasci numa abóbora!" - afirmava Paulina. - "Numa abóbora!" - "Tenho certeza!" Julieta dizia com muita naturalidade: "Criança nasce como os gatinhos. Tal e qual. Com a diferença que é gente!"

Pois uma vez ela veio pulando num pé só, e dizia: "Estou brincando de 'Mamãe cangueira'." E soprava, ao mesmo tempo, num apito de pau, que lhe manchava a boca de roxo.

As meninas começaram a rir: "Olha a tinta que está saindo! Olha a tinta do apito! Você está com a boca toda encarnada!"

Julieta tirou o apito da boca, olhou para ele, olhou para as meninas, e ponderou: "Isto não é encarnado. Nem vermelho. Nem roxo. - Esta cor se chama solferino!"

As meninas chamavam Julieta, que ia passando, com travessinhas de pedras espetadas no cabelo duríssimo. "Tudo isso é brilhante, Julieta?" Perguntaram sinceramente. Brilhante era uma pedra muito conhecida. Até se cantava:


"Se esta rua, se esta rua fosse minha,
Eu mandava, eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhante..."

"Não, estas são pedras-d'água. Comprei no mascate." Pedras-d'água! As meninas achavam lindíssimo que houvesse pedras-d'água, e ficavam mirando, felizes, as travessinhas de Julieta.

Depois, ela fez a Primeira Comunhão, e ficou linda, com um vestido de fazenda que devia ser muito cara, porque se chamava "nanzuque". Ele entendia muito de fazendas, pois a tia era costureira. Havia o "ponjê", o "mol-mol", a "cassa"... Mas o vestido dela era de nanzuque. Todas meninas murmuravam: "Nanzuque... Nanzuque..." Era uma palavra muito bonita.

Julieta passou a contar histórias de santos, milagres, castigos do Céu. Julieta era colorista: adorava o grande vitral da igreja, as fitas azuis e encarnadas das Filhas de Maria e das senhoras do Sagrado Coração. E descrevia as roupas dos sacerdotes, suas meias, seu anel. Ia buscar na chácara ramos de flores para os altares. Mostrava-nos as dálias, duras e orvalhadas, e perguntava: "Não parecem casas de de marimbondo? Tão bem feitinhas!" E dava-nos semprevivas, uma flor que não morre nunca. "Mas nós todos morremos" - dizia, muito sábia. - "Minha mãe já me disse que eu vou ficar pra semente..." (Era Paulina, a dos dentes acavalados.)

Julieta já tinha visto vários mortos. "Vocês também já viram? A gente estica. Fica muito fria, muito dura e amarela. Mas é só o corpo. A alma vai para o Céu, o Inferno ou o Purgatório!" E quando relampejava, nós pensávamos que o Céu se abria um pouquinho para mostrar o Inferno todo em fogo: mas logo se fechava, sem que pudéssemos ver aqueles Diabos de garfo que trabalham entre as labaredas.

Julieta já ganhava dinheiro. Fazia enxovais de tricô para recém-nascidos, e ia levar às freguesas seus embrulhos muito bem feitos, com sapatinhos, touquinhas, casaquinhos... Às vezes, parava, para mostrar seu trabalho às meninas, abrindo os papéis com muito cuidado e segurando os alfinetes nos dentes. "Tudo em ponto de arroz, com fitinha nº 1..."

Nós, porém, éramos muito pequenas. Continuávamos a brincar de roda, embaixo das árvores.

Paulina ia sempre mentindo. O Saci-Pererê não aparecia. As pessoas casavam-se. As crianças nasciam. Os velhos morriam. As almas do outro mundo cantavam ladainhas nos porões. A Virgem Maria caminhava na lua. O Diabo revolvia as brasas do Inferno...

"O Diabo tem dois chifres,
Giroflê, Giroflá..."

Nós sabíamos que tudo ia passando... Tudo era mentira e verdade. Nós também íamos passando, de mãos dadas... Era o tempo do Giroflê!

Conto de Cecília Meireles, do livro Giroflê Giroflá, da Coleção Veredas. Editora Moderna, 6ª Edição, 1992.

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