quinta-feira, 31 de março de 2022

O Boato

    O salsicheiro Nhô Zeca era um homem feliz. Trabalhava muito e gostava tanto do seu trabalho que só trabalhava cantando assim: "Tiroliroleca, eu sou o Nhô Zeca/ Tiroliroliça, eu encho linguiça/ Tirolirolom, meu trabalho é bom/ Tirolirolima, canto e faço rima".

    A única coisa que perturbava a felicidade de Nhô Zeca era seu vizinho Nhô Juca, falastrão e fofoqueiro. Esse Nhô Juca também gostava de encher, mas não era salsicha nem linguiça e sim, a paciência do bom Nhô Zeca. Com suas fofocas intermináveis, interrompia-lhe o trabalho e a alegre cantoria. Até que um certo dia, na véspera do 1º de maio, quando o salsicheiro tinha mais trabalho do que de costume, ele perdeu a paciência e decidiu se livrar do vizinho importuno, nem que fosse só por um dia. Então, quando Nhô Juca entrou, Nhô Zeca deixou-o falar um pouco e de repente bateu com a mão na testa:

    - Ó, Nhô Juca, desculpa se te interrompo, mas eu quase ia me esquecendo de contar uma coisa muito importante: eu soube que lá na praça do mercado estão distribuindo cestas básicas de graça para as pessoas nascidas nesta aldeia, como tu, Nhô Juca!

    - Cestas básicas de graça! Oba!, gritou Nhô Juca, já se voltando para correr. Obrigado pela informação, Nhô Zeca.

    - De nada, os amigos são para isso, gritou Nhô Zeca no encalço do vizinho, que logo sumiu de vista.

    Nhô Zeca, satisfeito por ter-se livrado do outro pelo menos por aquele dia, voltou ao trabalho, cantando sua musiquinha. O trabalho rendia, as salsichas e as linguiças se sucediam, suculentas e rechonchudas. Nhô Zeca entretido, nem sentia o tempo passar. E até se esqueceu do chato do vizinho, quando, de repente, viu passar um homem todo esbaforido, correndo a toda. Logo depois uma mulher também passou correndo e, em seguida, outro homem e mais outro, todos muito apressados e afobados. Até que Nhô Zeca não resistiu à curiosidade e segurou pelo braço um gorducho que corria, bufando:

    - Desculpa, amigo, mas o que está acontecendo para tanta gente assim, na mesma direção?

    - Como, arfou o gorducho, enxugando o suor da testa, tua não sabias? Lá na praça do mercado estão distribuindo cestas básicas de graça! Vou correndo, senão elas acabam!

    - Cestas básicas de graça?!, espantou-se Nhô Zeca. Eu é que não vou perdeu uma boca-livre dessas. As salsichas que me esperem!

    E Nhô Zeca, esquecendo-se até de fechar a porta, disparou para a praça do mercado, correndo a bom correr. E caindo no engodo do boato que ele próprio inventara, soltara e deixara se espalhar pela boca do fofoqueiro Nhô Juca!


Conto de Tatiana Belinky retirado da revista Nova Escola, Maio de 1997. Fundação Victor Civita. Editora Abril.

quarta-feira, 30 de março de 2022

Três Conselhos

    Um passarinho caiu na rede, mas, quando o caçador o pegou na mão, a avezinha  começou a falar, com voz humana, implorando que a soltasse:

    - Não me mates, homem! Solta-me, deixa-me voar! Em troca da minha liberdade, eu te darei três conselhos preciosos, de muito valor!

    - Que conselhos um pobre passarinho como tu pode dar a um homem como eu?, riu o caçador. Mas estou curioso. Fala, passarinho. Se eu gostar dos teus conselhos, prometo deixar-te voar embora.

    - Ouve, então, com atenção, disse o passarinho. O primeiro conselho é: "Não lamentes nunca, homem, coisa alguma que passou." O segundo é: "Nunca te esforces para procurar fazer voltar as coisas que já se foram." E o terceiro é: "Nunca creias em coisas incríveis, pois milagres não existem."

    - Teus conselhos me parecem bons, passarinho, disse o caçador, pensativo.

    - Então solta-me agora, como prometeste, disse o passarinho. E trata de seguir os meus bons conselhos.

    - O prometido é devido, disse o caçador, abrindo a mão. Voa, passarinho. E trata de não cair em outra arapuca!

    O passarinho saiu voando e logo pousou num ramo alto da árvore mais próxima, de onde se dirigiu ao caçador, todo contente:

    - Tu és um tolo, caçador, bobeaste. Sabias que perdeste uma fortuna ao me deixar escapar? Se me matasses, ias ficar rico, porque dentro da minha barriguinha se oculta um tesouro, um diamante raríssimo, três vezes maior do que eu!

    Desapontado e aborrecido, o caçador lamentou:

    - Esse passarinho esperto me enganou, zombou de mim.

    Com voz doce, mudando de tom, continuou:

    - Volta aqui, passarinho. Vem ficar comigo. Eu te tratarei tão bem! Vais morar numa gaiola de ouro, com balanço, para te embalares e cantares. Volta para mim, passarinho.

    - Nada feito, retrucou o passarinho. Pensa bem como és bobo, homem! Nem bem acabaste de ouvir os meus conselhos, no mesmo instante os esqueceste. Primeiro, mal me soltaste, já lamentas o que passou. Em seguida já estás tentando fazer voltar o que se foi. E ainda acreditaste na balela que te contei, de que no meu buchinho está escondido um diamante precioso, três vezes maior do que eu. De nada te serviram os meus conselhos, caçador! Trata de lembrar-te deles daqui em diante! Adeus, homem tolo.

    E o passarinho saiu voando, feliz da vida, enquanto o caçador lá ficou, lamentando sua burrice.


História de origem remota, de que existem versões em vários países, recontada por Tatiana Belinky. Retirada da revista Nova Escola, Abril de 1997. Fundação Victor Civita. Editora Abril.

terça-feira, 29 de março de 2022

O homem que não sabia nem ler

    Um menino andando na rua encontrou um homem sentado na calçada. O menino ia da escola para casa. O homem descansava depois de um dia duro de trabalho.

    - Moço, que horas são?, perguntou o menino.

    O homem disse que não tinha relógio e, para falar a verdade, nem sabia ver as horas.

    O menino não entendeu.

    O homem explicou:

    - Não sei para que servem aquele ponteirão e aquele ponteirinho.

    Eles giram, giram e giram, mas não consigo entender direito como funciona.

    - Mas é tão fácil!, espantou-se o menino. O ponteirinho marca as horas e o ponteirão marca os minutos. Por exemplo: se o ponteirinho está no dez e o ponteirão está no cinco, isso quer dizer que são 10 horas e 25 minutos.

    O sujeito balançou os ombros.

    - Mas qual é o dez e qual é o cinco? Não sei ter os números.

    O homem tinha idade para ser pai do menino.

    - O senhor não conhece os números?

    - Nem os números e nem as letras.

    - O senhor não sabe ler?

    - Nem ler, nem escrever.

    O menino espiou aquela pessoa sentada na calçada.

    - Às vezes na rua, disse o homem, olhando as letras dos cartazes, eu pergunto: o que será que elas dizem? Outras vezes, na banca, fico admirando as revistas, os jornais... queria tanto poder ler as notícias, entender o que se passa no mundo, ler os letreiros dos ônibus e saber para onde eles vão...

    O homem suspirou.

    - Queria tanto ir para baixo de uma árvore, abrir um livro e ler uma história...

    Um automóvel entrou na curva soltando uma fumaça preta.

    - Eu não sou daqui, continuou o sujeito. Minha cidade fica depois da serra, pegando a estrada, passando a outra serra e depois a outra, lá longe, perto do mar.

    E seus olhos brilharam tristes.

    - Às vezes, fico me lembrando de casa, de minha mãe, meu pai, meus irmãos...

    O menino procurou um lugar para sentar.

    - Você sabe escrever?, quis saber o homem.

    O menino estufou o peito:

    - Já sou quase da terceira série!

    O outro sorriu:

    - Tenho uma noiva lá na minha terra. Ela é uma princesa. A coisa mais linda do mundo. Um dia a gente vai casar...

    Examinou o menino:

    - Escreve uma carta pra mim?

    Dizendo sim com a cabeça, o menino tirou um caderno e uma caneta esferográfica do fundo da mochila.

    O homem foi falando. O vento soprava morno. O homem contou que a cidade era grande. Contou que estava sozinho. Contou que sentia medo. Contou que quase tinha juntado um dinheirinho, que estava morto de saudade e que no fim do ano, se Deus ajudasse, pegava o ônibus e voltava para casa.

    O menino escreveu tudo com letra caprichada, dobrou o papel e entregou ao homem.

    A Lua havia surgido sem ninguém perceber.

    O menino precisava ir embora.

    O homem apertou a mão do menino.


Conto de Ricardo Azevedo retirado da Revista Nova Escola, Março de 1997. Fundação Victor Civita, Editora Abril.

segunda-feira, 28 de março de 2022

Contanabos, o senhor das montanhas

    Entre a Silésia e a Boêmia estende-se uma enorme cadeia de montanhas em cujo interior vive o poderoso Espírito das Rochas, o afamado Contanabos. Esse príncipe dos espíritos da terra possui na superfície terrestre apenas um espaço reduzido, de algumas milhas de extensão, cercado pela serra pedregosa. mas em profundidade seu domínio é enorme e desce por milhas e milhas até o centro da Terra. Ele, o Contanabos, reina sobre as minas de metais e as jazidas de pedras preciosas, manda nos vulcões e em todos os espíritos das entranhas da terra e das montanhas. Tem também o poder de transfigurar-se no que lhe der vontade: pode aparecer em forma de homem ou de animal, grande ou pequeno, anão diminuto ou monstro assustador.

    De vez em quando gosta de afastar-se dos seus domínios das profundezas e de subir, para observar os míseros e medrosos seres humanos, à custa dos quais se diverte, ora de maneira cruel e zombeteira, ora demonstrando-lhes, disfarçado de várias formas, benevolência e generosidade. Porque o soberano das montanhas, o gigante Contanabos, tem gênio variável e instável, ora calmo, ora turbulento, ora malvado, ora bondoso, ora frio e insensível, ora caloroso e carinhoso, cheio de contradições, mas sempre surpreendente.

    Há séculos e séculos, contam-se dele as mais estranhas histórias, engraçadas umas, outras apavorantes. Ninguém sabe seu nome verdadeiro, mas foi por causa de uma de suas aventuras, acontecida há centenas de anos, que recebeu do povo da região o apelido de Contanabos. Ele detesta essa alcunha, porque ganhou-a num episódio de que tem vergonha, acontecido na única vez em que tentou ser realmente humano.

    É uma longa história, mas por enquanto basta contar que, há muito, muito tempo, numa das vezes em que o Espírito das Rochas subiu à superfície da terra, ele se apaixonou por uma formosa princesa. Então, transformando-se num belo príncipe, raptou-a e levou-a para seu palácio subterrâneo, onde queria casar-se com ela. Mas ela já era noiva de um príncipe do reino vizinho e não queria saber de casamento com seu raptor, por mais belo, rico e poderoso que ele fosse. Para livrar-se dele, astutamente o enganou dizendo que se casaria, se numa só noite ele contasse todos os nabos mágicos da sua enorme horta - sem errar, nem mesmo por um. Se errasse um que fosse - para mais ou para menos - ela não se casaria com ele.

    O Espírito das Rochas concordou com a condição, que julgou fácil e pôs-se logo a contar os nabos, o que fez até rapidamente. Mas toda vez que conferia a contagem, dava uma diferença e ele passou a noite inteira contando e recontando os nabos.

    Enquanto isso, a esperta princesa, usando um dos nabos mágicos que ele lhe dera para satisfazer suas vontades, transformou-o em fogoso corcel e fugiu do reino subterrâneo, deixando o poderoso Espírito das Rochas a ver navios. Foi assim que ele acabou ganhando o ridículo apelido de nabos ou, simplesmente, Contanabos.


Mito popular alemão recontado por Tatiana Belinky. Retirado da revista Nova Escola, Dezembro de 1996. Fundação Victor Civita. Editora Abril.

domingo, 27 de março de 2022

Os Viajantes e o Monstro

    Um rapaz ganhou de seu pai uma arma e saiu pelo mundo. Andou, andou, até que encontrou um sonhador. Passaram a ser dois, viajando juntos. De manhã, o sonhador disse: 

    - Sonhei com um ladrão que seguia conosco.

    E assim foi. Encontraram um construtor de barcos e passaram a ser quatro, viajando juntos. Na outra manhã, o sonhador disse:

    - Sonhei com um colador de coisas quebradas que viajava conosco.

    E assim foi. Encontraram um colador e passaram a ser cinco, viajando juntos. Na outra manhã, o sonhador disse:

    - Sonhei com um soba que nos prendia e punha na cadeia.

    Nós podemos não saber o que é um soba. Mas os quiocos sabem muito bem que é um chefe de aldeia, muito importante e com muitos poderes, uma espécie de rei. Por isso, os viajantes nem se espantaram quando chegaram a uma aldeia e o soba disse ao rapaz da arma:

    - Teu pai roubou minha filha! Ou você me devolve a moça, ou ficam todos sendo meus escravos!

    Prendeu todos eles e mandou espancá-los. De manhã, o sonhador disse:

    - Sonhei que é verdade o que ele diz: teu pai roubou mesmo a moça e a vendeu a um monstro, lá no mar. Sonhei que nós a encontrávamos, mas o monstro era muito feroz e quebrava nosso barco todo. Aí eu acordei.

    O rapaz chamou o soba e disse:

    - Sabemos onde está tua filha. Se nos soltares, vamos buscá-la.

    O soba então prometeu que, se a trouxessem, daria a eles o sobado. E eles partiram.

    Andaram, andaram, andaram e dormiram. De manhã, o sonhador disse:

    - Sonhei que chegávamos a uma aldeia com muitas moças. Uma delas estava fazendo cestos em forma de cone, cheios de desenhos. Essa era a filha do soba.

    E o ladrão respondeu:

    - Deixa que eu roubo.

    Os outros se esconderam no mato, bem na beira do mar. O construtor de barcos começou a trabalhar e o ladrão entrou na aldeia. Chegou perto da moça e, conversa vai, conversa vem, foi falando no pai dela, na mãe dela, e a moça logo viu que ele vinha salvá-la. Na primeira chance, fugiu com ele para o mato. Entraram no barco, que já estava pronto e partiram todos. Quando o monstro percebeu, ficou furioso e partiu o barco deles em pedacinhos. O rapaz da arma deu um tiro e arrancou a cabeça do monstro. Mas ele tinha várias, era só botar uma nova. Enquanto fazia a troca, o colador de coisas quebradas consertou o barco e os fugitivos se afastaram. Daí a pouco, o monstro se aproximou outra vez: novo tiro, nova troca de cabeças, novo conserto de barco. De cada vez, a aldeia do soba ficava mais perto. Até que eles conseguiram chegar e o monstro viu que não adiantava insistir. Ninguém conseguia vencer os cinco amigos.

    O soba cumpriu a palavra. Deu o sobado ao rapaz e deu também a filha em casamento. Os outros casaram e ficaram sendo ajudantes do soba, porque nessas coisas de sobado - garantem os quiocos - é sempre muito útil ter a ajuda de um sonhador, um ladrão, um construtor e um consertador.


Conto tradicional dos quiocos, um povo angolano recontado por Ana Maria Machado. Retirado do revista Nova Escola, Novembro de 1996. Fundação Victor Civita, Editora Abril.

sábado, 26 de março de 2022

Libertação de Consciência

    Não aguardemos que o aplauso do mundo coroe as nossas expectativas.

    Não esperemos que as alegrias nos adornem de louros ou que uma coroa de luz desça sobre a nossa cabeça vestindo-nos de festa.

    Quem elegeu Jesus, não pode ignorar a cruz da renúncia.

    Quem O busca, não pode desdenhar a estrada áspera do Gólgota.

    Quem com Ele se afina, não pode esquecer que, Sol de primeira grandeza como é, desceu à sombra da noite, para ser o porto de segurança luminosa, no qual atracaremos a barca de nosso destino.

    Jesus é o nosso máximo ideal humano, Modelo e Guia seguro.

    Aquele que travou contato com a Sua palavra nunca mais O esquece.

    Quem com Ele se identifica, perdeu o direito à opção, porque a sua, passa a tornar-se a opção d'Ele, sem o que, a vida não tem sentido.

    Não é esta a primeira vez que nos identificamos com o Seu verbo libertador. Abandoná-lo é infidelidade, que O troca pelos ouropéis e utopias do mundo, de breve duração.

    Não é esta a nossa experiência única no santuário da fé, que abraçamos desde a treva medieval, erguendo monumentos ao prazer, distantes da convivência com a dor.

    Voltamos à mesma grei, para podermos, com o Pensamento Divino vibrando em nós, lograr uma perfeita identificação.

    Lucigênitos, procedemos do Divino Foco, para o qual marchamos.

    Seja, pois, a nossa caminhada assinalada pelas pegadas de claridade na Terra, a fim de que, aquele que venha após os nossos passos, encontre as setas apontando o caminho.

    Jesus não nos prometeu os júbilos vazios dos tóxicos da ilusão. Não nos brindou com promessas vãs, que nos destacassem no cenário transitório da Terra. Antes, asseverou, que verteríamos o pranto que precede à plenitude, e teríamos a tristeza e a solidão que antecedem à glória solar.

    Não seja, pois, de surpreender que, muitas vezes, a dificuldade e o opróbrio, o problema e a solidão caracterizem a nossa marcha. Não seja de surpreender, portanto, que nos vejamos em solidão com Ele, já que as Suas, serão as mãos que nos enxugarão o pranto, enquanto nos dirá suavemente: - Aqui estou!

    Perseveremos juntos, cantando o hino da alegria plena na ação que liberta consciências, na atividade que nos irmana e no amor que nos felicita.


Texto retirado do livro Momentos Enriquecedores; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2ª Edição, 2015.

sexta-feira, 25 de março de 2022

Como os Campos

    Preparavam-se aqueles jovens estudiosos para a vida adulta, acompanhando um sábio e ouvindo seus ensinamentos. Porém, como fizesse cada dia mais frio com o adiantar-se do outono, dele se aproximaram e perguntaram:

    - Senhor, como devemos vestir-nos?

    - Vistam-se como os campos, respondeu o sábio. Os jovens então subiram até uma colina e durante dias olharam para os campos. Depois dirigiram-se à cidade, onde compraram tecidos de muitas cores e fios de muitas fibras. Levando cestas carregadas, voltaram para junto do sábio.

    Sob o seu olhar abriram os rolos das sedas, desdobraram as peças de damasco e cortaram quadrados de veludos e os emendaram com retângulos de cetim. Aos poucos, foram recriando em longas vestes os campos arados, o vivo verde dos campos em primavera, o pintalgado da germinação. E entremearam fios de ouro no amarelo dos trigais, fios de prata no alagado das chuvas, até chegarem ao branco brilhante da neve. As vestes suntuosas estendiam-se como mantos. O sábio nada disse.

    Só um jovem pequenino não havia feito sua roupa. Esperava que o algodão estivesse em flor para colhê-lo. E, quando teve os tufos, os fiou. E, quando teve os fios, os teceu. Depois vestiu sua roupa branca e foi para o campo trabalhar.

    Arou e plantou. Muitas e muitas vezes sujou-se de terra. E manchou-se do sumo das frutas e da seiva das plantas. A roupa já não era branca, embora ele a lavasse no regato. Plantou e colheu. A roupa rasgou-se, o tecido puiu-se. O jovem pequenino emendou os rasgões com fios de lã, costurou remendos onde o pano cedia. E, quando a neve veio, prendeu em sua roupa mangas mais grossas para se aquecer.

    Agora a roupa do jovem pequeno era de tantos pedaços que ninguém poderia dizer como havia começado. E estando ele lá fora uma manhã, com os pés afundados na terra para receber a primavera, um pássaro o confundiu com o campo e veio pousar-se no seu ombro. Ciscou de leve entre os fios, sacudiu as penas. Depois levantou a cabeça e começou a cantar.

    Ao longe, o sábio, que tudo olhava, sorriu.


Conto de Marina Colasanti pertencente ao livro inédito Longe Como O Meu Querer, vencedor da primeira edição do Prêmio Latinoamericano de Literatura Infantil Y Juvenil Norma - Fundalectura de que participaram 141 obras de 13 países, em maio. Retirado da Revista Nova Escola. Outubro de 1996. Fundação Victor Civita. Editora Abril.

O livro de Marina Colasanti foi lançado em 1997 pela Editora Ática na Série Sinal Aberto.

quinta-feira, 24 de março de 2022

Moisés salvo das águas

    Há muitos anos e muitos séculos, quando o povo judeu era escravo no Egito, chegou uma época em que o soberano, chamado faraó, temendo que esse povo se tornasse numeroso demais e ameaçasse se revoltar, decretou que todas as crianças do sexo masculino nascidas de mãe judia fossem afogadas no Rio Nilo. E houve muito luto, pranto e tristeza nas famílias judias, obrigadas a sacrificar seus bebês meninos.

    Mas quando o casal Yoschabed e Amram teve seu terceiro filho, um lindo menino, a mãe, depois de resistir à cruel ordem do faraó e conseguir escondê-lo durante três meses, acabou tendo de livrar-se dele, para que toda a família não fosse sacrificada. Então, em desespero de causa, ela calafetou com betume uma cestinha de vime, colocou dentro dela o bebezinho e mandou que sua filha Míriam a levasse até o rio, com o irmãozinho dentro, pusesse a cesta na água entre os juncos e ficasse escondida, para ver o que aconteceria. A menina assim fez e, oculta entre os juncos, ficou observando.

    Pouco depois, chegou à margem do rio, conversando e rindo, a princesa egípcia, filha do faraó. Ela ouviu o choro da criancinha dentro da cesta e, aproximando-se, viu o menino bonito e forte ali abandonado. Encantada e compadecida, percebendo que se tratava de uma das crianças judias condenadas à morte por afogamento, a princesa disse que queria ficar com ela e levá-la consigo para o palácio.

    Ouvindo isso, Míriam se encheu de coragem, saiu do seu esconderijo e, dirigindo-se respeitosamente à princesa, disse que conhecia uma mulher judia que acabara de perder seu filhinho e que poderia alimentar esse menino, até ele crescer um pouco e poder ser levado ao palácio do faraó. Pediu, então, licença para buscar essa mulher. A princesa, contente, concordou. Imediatamente Míriam foi correndo buscar sua própria mãe e levou-a à presença da princesa. Yoschabed, trêmula de emoção, ouviu a princesa dizer que lhe confiava a criança para ela amamentar e cuidar até que estivesse em condições de ser levada para o palácio, onde ela mesma, a princesa, iria criá-la e educá-la como se fosse seu filho - um príncipe egípcio. Disse ainda que iria chamá-lo de Moisés, já que o tinha tirado das águas.

    Rindo e chorando de felicidade, Yoschabed, a mãe, e Míriam, a irmã, levaram o pequeno Moisés de volta para casa, onde puderam ficar com ele durante alguns anos. Foi o suficiente para Moisés ficar conhecendo seu próprio povo e lembrar-se dele mesmo após ser levado ao palácio do rei, onde foi criado, de fato, como um verdadeiro príncipe egípcio. Um príncipe que viria a ser um grande líder e libertador do povo judeu da escravidão do Egito.


Conto de Tatiana Belinky adaptado da Bíblia, Êxodo 2. Revista Nova Escola, Setembro de 1996. Fundação Victor Civita, Editora Abril.

quarta-feira, 23 de março de 2022

O Gato Professor

    Numa alta montanha se escondia um tigre de patas pesadas e lentas, que não podia andar nem saltar com agilidade. Tinha força, mas essa de pouco lhe valia porque raramente conseguia agarrar a presa que cobiçava.

    Um belo dia, quando o tigre saía da sua gruta à procura de alimento, cruzou com um gatinho que vinha pulando e saltando alegremente. Os movimentos flexíveis e a agilidade do gatinho despertaram a inveja no tigre, que pensou consigo mesmo: "Que bom se eu pudesse ser ágil assim". Então, em tom suplicante, dirigiu-se ao gatinho:

    - Mestre Gato, pode ensinar-me a arte de passar ligeiro por montes e vales, saltando como você?

    O gatinho bem sabia que o tigre era bicho de maus bofes. Pensou que ensinando-lhe a sua arte poderia colocar em perigo a própria vida. Então respondeu, cautelosamente:

    - Não digo que não, mas tenho medo de que quando souber correr e saltar como eu você se mostre ingrato.

    O tigre fez uma vênia profunda e disse:

    - Mestre Gato, se você se dignar a tomar-me como aluno, prometo que jamais serei ingrato. Se alguém o ofender, juro que darei minha própria vida para defendê-lo.

    Juramento é coisa séria. O gatinho acreditou nas palavras hipócritas da fera e, com pena da sua lentidão, aceitou o tigre como aluno. Um aluno tão aplicado que não demorou muito para o gatinho ensinar ao tigre tudo o que sabia, faltando só uma aula.

    No dia dessa última aula, o tigre estava tão animado, pensando que logo, logo poderia agarrar e devorar o seu rechonchudo e apetitoso professor, que ficou com a boca cheia d'água. Mas o gatinho, que já ia ensinar o seu último truque ao tigre, percebeu que o seu aluno o olhava com olhos cobiçosos, literalmente babando de apetite. E quando o tigre lhe perguntou, querendo certificar-se, se o mestre Gato já lhe ensinara tudo o que sabia, o gatinho disse:

    - Sim, naturalmente. Ensinei-lhe tudo, tudinho.

    Mas ficou bem atento. Aí o tigre, querendo ser astuto, falou, para desviar a atenção do professor:

    - Mestre Gato, olhe atrás de você quem está subindo naquela árvore!

    E assim que o gatinho se voltou, o tigre escancarou a bocarra, arreganhou os dentes e deu um pulo para a frente. mas o gatinho, que já pressentia a traição, foi mais esperto: rápido como um raio, de um salto só, ele trepou na árvore e, do alto de um galho, fora do alcance do tigre, olhou severo para o seu aluno e gritou, indignado:

    - Fera ingrata! É assim que você honra o seu juramento? Por sorte eu não lhe ensinei como trepar nas árvores, senão já lhe estaria servindo de sobremesa.

    - Você não me ensinou tudo, gato danado! - rosnou o tigre, lançando-se furioso contra a árvore, sem poder escalá-la e mordendo sua casca sem resultado.

    Mas o gatinho, saltando de galho em galho e de árvore em árvore, só parava de vez em quando para acariciar os bigodes e olhar zombeteiramente para o tigre. Este urrava de frustração e raiva impotente, vendo-se logrado pelo esperto gatinho, que saltou ágil e alegre até sumir de vista.


Conto do folclore chinês recontado por Tatiana Belinky e retirado da Revista Nova Escola, Agosto de 1996. Fundação Victor Civita, Editora Abril.

terça-feira, 22 de março de 2022

O rei que só queria comer peixe

Há muito tempo, havia no Tibete um rei que só queria comer pescado, o que era muito bom para os pescadores do reino. Mas eis que chegou um ano de grande estiagem, tão grande que os rios foram secando, e os peixes foram morrendo. Chegou um dia em que não havia mais peixes para pescar. Não havia peixe nem mesmo para o próprio rei, que se viu obrigado a comer apenas arroz, o que não o satisfazia e o deixava muito deprimido.

Então o rei mandou colocar faixas e cartazes por toda a parte anunciando que quem lhe levasse ao palácio qualquer tipo de pescado receberia como recompensa e prêmio qualquer coisa que quisesse pedir. A notícia correu ligeira por todo o reino, mas sem resultado. Por mais que todo mundo tentasse e procurasse, não havia mais peixes nos rios secos. E o rei foi ficando cada vez mais aflito e abatido.

Até que um belo dia apareceu no portão do palácio um homem, um pescador vindo do estrangeiro, com uma cesta cheia de pescado fresco e reluzente, que ele queria oferecer à Sua Majestade. Mas, na entrada do palácio, o guarda de sentinela deteve o homem e lhe perguntou, ríspido, o que ele vinha fazer ali. Quando soube do que se tratava, disse ao pescador:

- Trazes pescado para o rei, não é? Pois muito bem, deixa-o aqui comigo, que eu me encarrego de entregá-lo ao rei.

- Não, disse o homem, eu mesmo quero entregá-lo pessoalmente nas mãos de Sua Majestade.

- Então vende-me o pescado, disse o guarda. Eu pagarei bem.

- Não vim vender esses peixes. Vim oferecê-los de presente ao rei.

Vendo que não conseguia convencer o homem, o guarda mudou de tática:

- Pois fica sabendo que só vou te deixar passar se prometeres dar-me metade do prêmio que vais pedir e ganhar do rei. Jura que vais fazer o que exijo. Senão, não poderás entrar.

- Está bem, disse o homem, - eu concordo. Juro que vou fazer o que tu queres. Mas preciso saber o teu nome, porque se me demorar no palácio, preciso saber como encontrar-te depois.

- Meu nome é Yaco-Zarolho, não te esqueças - disse o guarda.

O pescador entrou na sala do trono e ofereceu o pescado ao rei. Este, exultante, perguntou o que ele queria como prêmio e recompensa. Mas o rei ficou perplexo quando ouviu o homem dizer que só queria duzentas chibatas no lombo. Incrédulo, o rei repetiu a pergunta e ouviu a mesma resposta:

- Peço somente duzentas chibatadas no meu lombo, Majestade.

Diante disso, o rei ordenou aos seus servos que lhe dessem as duzentas chibatadas, "mas bem de leve", para não machucar o lombo do excêntrico pescador. O que começou a ser feito, bem de leve. Mas na centésima chibatada o pescador falou:

- Basta, já recebi metade do meu prêmio. A outra metade eu prometi ao guarda Yaco-Zarolho.

O rei

segunda-feira, 21 de março de 2022

O Banquete da Vingança

    Há muitos séculos, em Mênfis, a opulenta capital do antigo Egito, o rei, um jovem faraó, foi traiçoeiramente assassinado. A bela rainha Nicrotis, viúva do faraó, aceitou o trono que seus súditos lhe ofereciam. Imediatamente, marcou a data da sua coroação, tão cedo que o povo até estranhou, pois parecia que ela esquecera depressa demais seu jovem esposo, traído e assassinado.

    A rainha queria celebrar de forma excepcionalmente suntuosa sua ascensão ao trono egípcio e, para os esplêndidos festejos, mandou construir um enorme salão subterrâneo, ricamente decorado. Nele iria recepcionar, em nababesco banquete, especialmente convidados, grandes e importantes personagens do reino. Seria um banquete do qual ninguém iria se esquecer. Ela prometeu que, após o festim, o povo poderia apreciar um grande espetáculo.

    As obras começaram em ritmo acelerado, com milhares de escravos trabalhando. O suntuoso salão ficou pronto em tempo recorde.

    Logo chegou o dia marcado para o grande festim e os convidados foram chegando, animados e ricamente ataviados. Prontamente, começou o banquete, de requintadas iguarias e capitosas bebidas, em meio à maior magnificência e solenidade.

    A rainha Nicrotis presidia o banquete, mais formosa do que nunca, imponente e majestosa, com um fulgor estranho nos grandes e majestosos olhos negros.

    O festim já andava pelo meio quando, de repente, se ouviu um ruído formidável, um fragor ensurdecedor, enquanto uma grande e feroz alegria inundava as harmoniosas feições da rainha. Ao mesmo tempo, os rostos dos convivas ficavam lívidos de espanto e pavor. É que, presos naquele subterrâneo, eles acabavam de se dar conta de haver caído numa armadilha. Perceberam que, reunidos naquele salão, estavam apenas aqueles cortesãos e nobres da corte que haviam tramado a traição e perpetrado o assassinato do jovem faraó. E agora se cumpria a vingança da rainha Nicrotis: ela mandara construir o salão subterrâneo cercado de enormes bocas de água, disfarçadas de tapadeiras decorativas nas paredes. Tapadeiras essas que, a um sinal da rainha, caíram, deixando entrar torrentes de água por todos os lados, invadindo e inundando o salão, que só tinha uma entrada - fechada - e nenhuma saída.

    Em poucos minutos, o grande salão subterrâneo estava inundado. Os convidados, condenados a morrer afogados, só tiveram tempo de ouvir a voz da rainha Nicrotis proclamando triunfante:

    - Os traidores devem morrer traídos!

    Ninguém conseguiu escapar, ninguém se salvou. O teto do subterrâneo desabou, afundando e cobrindo para sempre aquele enorme tanque, submergindo naquela líquida sepultura, para sempre, todos os que ali se encontravam, inclusive a rainha, que pereceu junto com os traidores.

    No dia seguinte, conforme fora prometido, o povo de Mênfis pôde ver o lugar do trágico banquete da coroação. Todos os corações se encheram de admiração pela coragem da rainha Nicrotis, que não hesitara em sacrificar sua própria vida para que todos os traidores e assassinos do jovem faraó seu esposo tivessem a sorte e a morte que mereciam.

    Foi esse banquete da vingança da rainha Nicrotis.


Conto egípcio recontado pela escritora Tatiana Belinky. Retirado da Revista Nova Escola. Fundação Victor Civita. Editora Abril, Maio de 1996.

domingo, 20 de março de 2022

O Cigano e o Lote do Diabo

    Depois de muito procurar, um pobre cigano conseguiu comprar, por apenas duas moedas, um pequeno lote de terra que ninguém queria, porque tinha uma pedreira com uma caverna cheia de morcegos. Nem bem ele começou a cavar as fundações da sua futura casinha, eis que surgiu na sua frente um homem esquisito, envolto numa capa vermelha, que o interpelou rispidamente, dizendo que ele não podia cavoucar ali. "Este terreno é meu, eu sou um diabo, e neste caverna nossa confraria se reúne todas as semana para o satânico sabá com as bruxas, nossas amigas.!"
    Mesmo tremendo de medo, o cigano protestou, dizendo que estava no seu direito, pois comprara o lote do alcaide, com o seu pouco e suado dinheirinho, e não abriria mão dele.
    Os diabos respeitam os tratos. Esse diabo então propôs ao cigano recomprar-lhe o lote pelo dobro do que ele pagara. "Assim, com quatro moedas, poderás comprar outro terreno, melhor do que este". O cigano animou-se e tratou de regatear. "Quatro moedas é pouco, quero o meu boné cheio de moedas de ouro, senão não arredo o pé daqui." O diabo resmungou, mas acabou concordando e saiu para buscar o dinheiro.
    O cigano, assim que se viu só, cavou mais que depressa um buraco fundo no chão e o cobriu com o seu boné - previamente furado - de boca para cima. Quando o diabo voltou com um saco de moedas e começou a despejá-las no boné, não conseguiu enchê-lo, porque elas caíam pelo furo do boné no buraco do chão. O boné só ficou cheio quando o saco do diabo ficou vazio. Coçando a cabeça, perplexo, o diabo sumiu de vista, largando do chão o saco, que o cigano imediatamente encheu com as moedas do buraco e saiu assobiando, rico e feliz da vida.
    Ele então construiu uma bela casa, casou com uma linda cigana e viveu à tripa forra durante um bom tempo. Mas dinheiro que vem fácil se vai fácil e, um belo dia, o cigano se viu pobre de novo. Sua mulher lhe azucrinava tanto a paciência por causa de falta de dinheiro que um dia, aborrecido, ele saiu de casa para a estrada. Andou que andou até que, de repente, sem perceber, se viu naquele lote de terra onde encontrara o diabo, anos antes. "Bem que eu poderia arrancar mais algum daquele diabo bobão", pensou ele. No mesmo instante, surgiu na sua frente o mesmo homem de capa vermelha, que rosnou para ele, enfezado: "O que estás fazendo aqui? Já me basta a bronca que levei do meu chefão Belzebu por causa daquela história do boné sem fundo. Vai embora, senão eu te dou uma surra. Vê só como sou forte!" E o diabo apanhou uma pedra e a esmagou na mão até ela virar pó.
    O cigano, apesar do medo, não se deu por achado. "Sou mais forte do que tu", disse, e disfarçadamente tirou do bolso um pedaço de queijo, fingindo que apanhara uma pedra no chão: "Olha o que eu faço com a tua pedra!" E esmagou o queijo na mão até pingar suco de queijo do seu punho fechado. O diabo arregalou os olhos, espantado, e o cigano disse: "Ou tu me trazes mais um saco de dinheiro, do teu tamanho, ou eu destruo a tua caverna com as minhas mãos fortes!"
    O diabo, alarmado, disparou para dentro da caverna e voltou curvado debaixo de um enorme saco de moedas, que colocou no chão. E já ia sumir quando o cigano disse: "Não estou disposto a carregar peso. Quero que leves este saco para minha casa, senão destruo a tua caverna!" O diabo, amedrontado, obedeceu e carregou o saco de moedas para a casa do cigano, que ainda lhe agradeceu, zombeteiro: "Grato pelo tua gentileza, amigo diabo. Podes voltar para a caverna e contar aos teus coleguinhas que desta vez escapaste de boa!"
    O diabo chispou embora e o cigano voltou-se para sua atônita mulher: "Estamos ricos de novo, me respeita agora, não me azucrines mais a paciência! E daqui em diante sê mais econômica, por que não quero ter um terceiro encontro com o diabo: bastam os dois sustos que já levei. Se este dinheiro do inferno acabar, prefiro voltar a trabalhar e ganhar  vida com suor do meu rosto".

História do folclore cigano recontada por Tatiana Belinky. Retirado da Revista Nova Escola. Fundação Victor Civita. Editora Abril. Abril de 1996.

sábado, 19 de março de 2022

No Exato Momento

Como é impossível ao corpo manter-se sem o sangue, também a alma não viverá em paz sem o combustível da fé.

A fé constitui o elemento basilar para a sustentação da vida digna e realizadora.

Da mesma forma que o corpo não pode subsistir sem o alimento, o espírito não consegue manter-se em equilíbrio sem a força da oração.

O alimento é secundário ao organismo, que o prescinde, momentaneamente, a de reequilibrar-se e manter a saúde, enquanto que, sem a prece, o ser espiritual se aturde e entorpece.

O homem está predestinado a dominar os instintos, vencendo as paixões que agrilhoam à infelicidade, colocando-se a serviço do bem que lhe corresponde. Para consegui-lo, faz-se-lhe indispensável a coragem da fé, porquanto a covardia que o impede de tomar as decisões enobrecedoras é mais perigosa e violenta do que outras imperfeições que o assinalam, de certo modo, consequências dela.

A oração constitui a força mais eficaz para vencer tal impedimento - o medo - e atirar-se com valor na conquista dos objetivos para os quais se encontra no mundo.

Os grandes homens atingiram as metas a que se propunham, impulsionados pela fé que resultava da sua identificação com o bem. E a comunhão pela prece sempre foi o alimento para sustentá-los nos momentos mais graves e cruciais da existência.

Certamente outros tantos se arremeteram nas batalhas do crime e da destruição, guindados pelo egoísmo e pelo medo às situações de agressividade e loucura em que se exauriram.

Atormentados, odiaram e foram odiados; perseguiram e terminaram vencidos.

Os homens não impuseram sofrimentos a ninguém; amaram e deixaram rastros luminosos, clareando o roteiro daqueles que também amam e lhes seguem os exemplos e os passos.

É inadiável se eleja, entre o bem e o mal, o que é de melhor para a vida: mais profícuo, salutar, aprazível e pacificador.

Por meio da oração, será fácil discernir, escolher e adotar qual o caminho mais seguro e feliz.

A prece autêntica, aquela que brota do coração buscando Deus, a Ele se entregando, torna-se um escudo de segurança, de defesa, uma proteção contra os elementos perniciosos que vigem interiormente no homem ou que vêm de fora tentando agredi-lo.

Só aparentemente se pode vencer um homem de fé, um homem que ora. Nunca, porém, se conseguirá dominá-lo. Ele é livre e está sempre em paz. Nada o perturba, porque não teme nada, nada ambiciona, somente anelando por alcançar a perfeição.

A prece é a salvação da vida. Sem ela, o homem enlouquece.

Quando estejas cercado de dificuldades e agressões, não vendo possibilidade alguma de chegar-te o socorro a tempo, ora, entregando-te a Deus, e a salvação te alcançará de Cima, no momento exato.


Retirado do livro Momentos de Coragem; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 8ª Edição, 2014.

sexta-feira, 18 de março de 2022

O Samurai e a Cerejeira

    No distrito de Iyo, no Japão, existe uma árvore antiquíssima. É chamada de "cerejeira do 16º dia" porque, nesse dia do primeiro mês do ano lunar, ela se cobre de flores - e somente nesse dia. As cerejeiras costumam florir na primavera, mas essa árvore é diferente: floresce no inverno, porque dentro dela habita o espírito de um ser humano.

    Sobre ela conta-se curiosa história. Havia muitos e muitos séculos, a cerejeira crescia no jardim de um samurai (guerreiro), que a amava muito. Durante muitos anos, ele se deliciou com a formosa e perfumada florada no 16º dia do primeiro mês de cada ano.

    O samurai teve vida longa. Viveu tanto tempo que viu morrer toda a sua família: pais, irmãos, filhos, netos e até bisnetos. Ficou muito velho e muito só, sem ninguém a quem dedicar afeto e carinho. Vira a cerejeira crescer e florescer desde criança. Os pais e os avós dele já haviam brincado à sombra da árvore.

    Na sua solidão de ancião, todo o amor do samurai se voltou para aquela cerejeira já bem velha, mas que ficava viçosa e florida sempre no mesmo dia, todos os anos, para alegria e consolo de seu coração solitário.

    Os anos foram passando. Até que, num certo 16º dia do primeiro mês de certo ano, a cerejeira amanheceu nua e seca. O velho caiu em profunda tristeza. Não deixou que arrancassem a árvore morta, na esperança de que no ano seguinte ela revivesse. Mas a pobre cerejeira ficava cada vez mais seca.

    O samurai ficou tão abatido que os vizinhos se condoeram e lhe deram de presente uma cerejeira nova, a mais bonita que puderam encontrar. O velhinho agradeceu, fingindo ficar satisfeito com o presente, mas no fundo da alma continuava roído de tristeza. Sentia saudade da florada de inverno da árvore amada.

    Dia e noite ele pensava na cerejeira, inconsolável. Mas, no ano seguinte, quando chegou o 16º dia do primeiro mês, teve de repente uma ideia que lhe pareceu feliz: lembrou-se de uma coisa na qual todos, naquela região, acreditavam. Era que, quando alguém o desejava muito, e os deuses o permitiam, a pessoa podia fazer uma permuta: trocar a sua própria vida pela de uma planta, de um animal ou mesmo de um inseto!

    Então, o velho samurai saiu para o jardim e, ajoelhado junto à cerejeira seca e morta, falou com ela, suplicando:

    - Por favor, minha cerejeira amada. Eu te imploro. Tem pena de mim e atende ao meu humilda pedido: floresce só mais uma vez, para que eu possa morrer em teu lugar!

    Depois da súplica, voltou para casa e lá pegou os seus mais alvos lençóis e seus mais ricos tapetes, que estendeu ao pé da árvore seca. Então, solenemente, sentou-se no tapete e, sem hesitar, fez o haraquiri, rasgando o próprio ventre com a sua espada, conforme a tradição dos samurais. E morreu feliz, com um sorriso nos lábios.

    No mesmo instante, o espírito do velho saiu de seu corpo e entrou na árvore seca. A cerejeira morta reviveu. Fresca e viçosa como antes, cobriu-se de flores lindas e perfumadas.

    Desde então, com a neve ainda atapetando o chão, a antiquíssima cerejeira continua florescendo a cada 16º dia do primeiro mês de cada ano novo, vestindo-se de flores e enchendo o jardim de perfume e beleza.

    E de todas as partes, dos povoados mais distantes, sai gente nesse dia para ver a cerejeira florir milagrosamente - e fazer toda sorte de pedidos ao espírito do velho samurai que nela se abriga.


Lenda do folclore japonês recontada por Tatiana Belinky. Retirado da Revista Nova Escola. Fundação Victor Civita. Editora Abril. Março de 1996.

quinta-feira, 17 de março de 2022

A Barrica Curandeira

    Um rapaz trabalhou durante muito tempo numa cervejaria e, quando se despediu do patrão, recebeu em recompensa pelos bons serviços uma barrica de cerveja. O moço a pôs nos ombros e partiu, alegre. Mas quanto mais caminhava mais pesada ficava a barrica. O moço ia ficando cansado de carregá-la, quando cruzou no caminho com um velho de longas barbas brancas.

    - Aceitas beber um pouco desta cerveja comigo? - perguntou o rapaz. - A barrica me pesa tanto que gostaria de aliviá-la.

    - Chega na hora certa - disse o velho. - Estou com uma sede brava.

    - E quem és tu, vovozinho?

    - Sou o Destino.

    - Então não quero beber contigo, porque és injusto com os homens: a uns dás alegrias e riquezas; outros deixas passar fome.

    E o moço retomou o seu caminho, com a pesada barrica nos ombros. Pouco mais adiante, encontrou um sujeito de aspecto estranho.

    - Queres beber um pouco de cerveja comigo? - convidou o moço.

    - Com muito gosto, tanto mais que estou cansado e sedento - retrucou o sujeito.

    - E quem és tu?

    - Sou o Diabo.

    - Sinto muito, mas não posso beber contigo. És aquele que atormenta os homens e os faz cair em tentação!

    E o moço retomou o caminho, com a barrica nas costas, cada vez mais pesada. Mas logo depois cruzou com uma velha tão esquálida que mais parecia um esqueleto.

    - Aceitas beber um pouco de cerveja comigo? - ofereceu o rapaz.

    - De bom grado - respondeu a velhota.

    - E quem és tu, vovozinha?

    - Sou a Morte.

    - Contigo beberei, sim. És honesta e justa com os homens, tratas ricos e pobres como iguais.

    E, com isso, o moço pôs a barrica no chão e fez jorrar dela a espumante e fresca cerveja, que a velha sorveu com grande prazer.

    Nunca antes eu bebi uma cerveja tão saborosa! - exclamou a Morte, após algumas canecas. - Parece até que rejuvenesci uns dez mil anos. Para mostrar minha gratidão, vou dar-te um presentinho. A tua cerveja, de hoje em diante, curará todas as doenças e não se acabará nunca. Mas toma cuidado: quando fores atender a um doente, antes de ministrar-lhe este singular remédio, olha bem em volta - se me vires aos pés da cama, faz o doente beber a cerveja; mas, se me vires à cabeceira, nem tentes servi-la ao enfermo, pois não adiantará nada e ainda poderás te ver em maus lençóis.

    A Morte sumiu e o moço seguiu o seu caminho, com a barrica cheia, mas agora leve, nos ombros. Logo ele se pôs a bancar o médico e em pouco tempo ficou famoso e rico.

    Aconteceu, porém, que um dia a filha do rei caiu gravemente enferma e, o rei prometeu metade do reino em recompensa a quem conseguisse curá-la. O dono da barrica foi chamado. Mas, ao entrar no quarto da doente, ele viu, num sobressalto, a Morte sentada numa cadeira, cochilando à cabeceira da doente. O moço não gostou da perspectiva de perder metade do reino por não poder curar a princesa e então teve uma ideia.

    Como a Morte continuava cochilando, sem se aperceber de presença do seu protegido, este mandou, em voz baixa, que os criados virassem silenciosamente a cama da moribunda, de maneira que a cadeira com a Morte ficasse aos pés da doente. Em seguida, fez a princesa beber a cerveja, curando-a no ato..

    - Tu me enganaste! exclamou a Morte, ao ver frustrada a sua intenção. - Assim, eu não te devo mais nada. Estamos quites!

    - Mas eu ganhei metade do reino - regozijou-se o moço.

    - De nada te valerá tal reino - rosnou a Morte. - Agora tu me pertences, és meu!

    A Morte tocou-o com a mão ossuda e gelada e o curandeiro da cerveja miraculosa tombou ao chão, morto.


História do folclore da Escandinávia recontada pela escritora Tatiana Belinky. Retirado da Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Dezembro de 1995.

quarta-feira, 16 de março de 2022

A Princesa e o Saltimbanco

    Havia, muitos e muitos anos atrás, num reino muito distante daqui, uma princesa muito linda. Ela adorava dança, música e todas as artes que no mundo existiam. Por isso, artistas de todas as partes faziam fila para poder se apresentar naquele pequeno reino, pois o prêmio maior pelos espetáculos era o sorriso da bela princesa.

    Num dia em que o sol se confundia com as nuvens claras e nem parecia inverno ou verão, apareceu no reino um grupo de saltimbancos, trazendo um espetáculo muito interessante. Os mensageiros do reino logo correram para avistar a princesa, que, encantada com a novidade, aceitou o convite para ver o espetáculo bem na primeira fila.

    Curiosa em saber o que trazia a nova companhia, a princesa chegou bem antes do início da peça para ver os preparativos da montagem. Foi aí que, no meio daquele movimento todo, ela o viu.

    Ela enxergou um rapaz enorme, alto, forte, tão forte que carregava metade de um cenário inteiro sorrindo, como quem carrega flores. O moço, por sua vez, ao perceber que a princesa olhava para ele,  baixou os olhos, tímido. "Imagine, a mais bela de todas as princesas olhando para mim", pensou. Ela também falou a mesma coisa para os seus botões. Mas, mesmo pensando coisas tão mal pensadas, os dois não conseguiram parar de se olhar.

    O cenário ficou pronto, a peça começou e o moço escondeu-se atrás do palco. E a linda princesa ficou inquieta, pensando num jeito de se encontrar com aquele que mexera com seu coração. Mas como?

    Do outro lado, o moço também a observava, achando estranho que a princesa, famosa por apreciar os espetáculos com muito interesse e alegria, estivesse distraída e com um ar preocupado. E suspirou, olhando para ela.

    A princesa também suspirou, impaciente. Mas, de repente, chamou sua aia e lhe disse:

    - Quero que vá atrás do palco, aia. Leve este novelo de fita até o rapaz maior que houver lá dentro. Ele é enorme, forte, mas tem o olhar mais meigo que você já deve ter visto. Amarre a ponta do novelo em seu pulso e traga a outra para mim. Não se preocupe, ele não perguntará nada e nem a impedirá de fazer isso. Vá logo, por favor!

    E assim a aia fez.

    O moço, a princípio, ficou um pouco assustado. Mas, feliz, reconheceu a fita que amarrava seu braço com a mesma que enfeitava os cabelos da princesa. E se soube preso. E nunca em sua vida imaginou tão doce prisão. Grades de fitas coloridas, música, dança e sorriso da princesa mais encantadora do mundo. Então, amarrou o laço mais forte em seu pulso.

    A princesa não sabia, mas ele iria levá-la em seu cavalo para o seu reino. Ela não sabia, mas ele também era um príncipe. Um príncipe viking, acostumado a vencer muitas guerras, mas completamente fascinado pela arte dos saltimbancos. A princesa não sabia, mas estava condenada a ser feliz para sempre ao lado do príncipe viking. Ou será que sabia?


Conto de Januária Cristina retirado da Revista Nova Escola. Fundação Victor Civita, Editora Abril. Novembro de 1995.

terça-feira, 15 de março de 2022

Dois Amigos e a Liberdade

    Zezinho achou um passarinho com uma asa quebrada. Ele parecia estar chorando de dor e tremia inteirinho.

    Devagar, com muito cuidado, Zezinho foi tratar da asa do passarinho. Passou remédio, enfaixou a asa e deu comida para ele. E todos os dias ia lá no cantinho do quintal para ver como estava seu mais novo companheiro.

    O tempo foi passando e o passarinho  melhorando. Zezinho botou-lhe o nome de Leco e vivia conversando com ele. Chegava da escola e logo corria para contar-lhe as novidades do dia.

    Fazia os deveres dividindo com Leco as dificuldades da Matemática, as poesias bonitas que a professora de Português mandava recitar em voz alta e as novidades das Ciências.

    O bichinho ouvia tudo com os olhos bem abertos. De vez em quando até piava, o que significava para Zezinho que Leco estava opinando sobre alguma coisa.

    O menino percebia que agora o passarinho não tinha mais cara de choro. Estava ficando bom, mas não tinha vontade de sair dali. Os dois se entendiam tão bem que Leco chegou a pensar que Zezinho fosse um pássaro maior. Nunca tinha visto um menino que não quisesse acertá-lo com um estilingue ou prendê-lo numa gaiola.

    Zezinho não via a hora de chegar em casa para poder ficar com o Leco, conversando, brincando, vendo-o voar. Sentia-se tão bem em sua companhia que era como se ele fosse um irmão muito querido.

    Quando Leco ficou forte, voando bem alto, convidou o garoto para voar com ele. Ir para bem longe, conhecer outras terras. Mas Zezinho não tinha asas e, além disso, havia sua família, seus outros colegas, a escola, as peladas de futebol.

    O passarinho não podia ficar? - quis saber o menino. Não. Ser pássaro só tinha graça se vivesse voando por aí.

    Os dois se separaram então. Mas a amizade não acabou. Zezinho passou a amar todos os pássaros e Leco, todos os meninos. Eles espalharam esta história pelo mundo e houve muita gente que começou a ver meninos cantando como pássaros e pássaros conversando como meninos.


Texto de Januária Cristina retirado da Revista Nova Escola. Fundação Victor Civita, Editora Abril, Setembro de 1995.

segunda-feira, 14 de março de 2022

Uma Pedra no Caminho

    Perto de uma aldeia erguia-se o palácio de um duque, diferente de muitos nobres do seu tempo, pois era bondoso, generoso e costumava ajudar os habitantes daquele povoado. Sempre que algum deles tinha problemas ou estava em dificuldades, fosse consertar um telhado arrancado pela ventania, fosse enviar alimentos quando havia falta, ou fosse o que fosse, o duque acudia logo.

    Acontece que, com o tempo, os aldeões começaram a ficar mal-acostumados. Se tornaram acomodados e preguiçosos e, o que é pior, egoístas e mal-agradecidos. Até que um dia o duque se deu conta disso e resolveu testar aqueles aldeões, para ver se entre eles ainda havia pelo menos alguns dispostos a fazer um gesto em favor da comunidade.

    E imaginou um plano. Certa manhã, bem cedo, ele saiu do palácio, despercebido, e foi sozinho até a única estrada da região, bem na metade do caminho. Lá, ele procurou e encontrou uma pedra, tão grande e pesada que mal conseguiu levantá-la. Carregou-a, com grande esforço, até bem no meio do estreito caminho, que só dava para um carro, fechando, assim, a única passagem. Mas, antes, colocou embaixo daquela pedra uma grande bolsa cheia de moedas de ouro. Feito isso, o duque escondeu-se atrás de uma moita na beira da estrada e ficou observando o que ia acontecer.

    Pouco depois, chegou um aldeão, tangendo umas ovelhas que ia levar ao mercado, e parou diante da pedra, espantado. Resmungou em voz alta: "Como é que o duque permite uma coisa destas? Eu é que não vou remover esta pedra. O duque que cuide disso!" E contornou a pedra, sempre reclamando.

    Logo apareceram duas mulheres, carregando cestas de ovos e conversando. Quando deram com a pedra, sentaram-se nela, continuando a tagarelar e a criticar o duque, que permitia que deixasse o caminho atravancado e não mandava seus criados retirar o obstáculo. E acabaram também contornando a pedra, sempre resmungando e culpando o duque.

    As horas iam correndo, e muita gente passava e parava na frente da pedra, todos sempre reclamando e culpando o duque. Eram camponeses e soldados, padres e mercadores, jovens e velhos - pessoas de todas as classes -, mas ninguém se dispunha a tirar a pedra do caminho.

    O duque estava quase desanimando quando, já ao entardecer, aproximou-se cantarolando um rapazinho, filho do moleiro, carregando um saco de farinha nas costas. Ele parou na frente da pedra e disse: "Ora essa, uma pedra no meio do caminho, atrapalhando a passagem de pessoas e carros! Que perigo!" Sem hesitar, pôs o saco de farinha no chão e, com menos esforço que o velho duque, levantou a pedra e a  depositou na beira da estrada. Só quando voltou para apanhar o saco de farinha é que ele viu a bolsa de moedas que estivera embaixo, e leu espantado e incrédulo o que nela estava escrito: "Para aquele que remover esta pedra". Olhou em volta. Nisto, o duque saiu do esconderijo e disse:

    - Meu filho, tu me devolveste a fé na humanidade! Ainda há gente boa nesta aldeia! O dinheiro é teu mesmo, faças bom uso dele!.


Conto do folclore alemão recontado pela escritora Tatiana Belinky. Retirado na Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Agosto de 1995.

domingo, 13 de março de 2022

Vrishadarbha e a Pomba

    Certo dia, há muito tempo atrás, uma pomba ferida caiu do céu aos pés de Vrishadarbha, o rei de Benares, famoso por sua bondade e compaixão pelos necessitados. Ofegante, a avezinha implorou ao rei que a protegesse de um gavião que a perseguia e já a machucara.

    - Fica tranquilo, pombinha, não tenhas medo - disse o rei. - Eu te protegerei, tens a minha palavra. Para te proteger, sou capaz de dar o meu reino e até a minha vida. Mal nenhum te advirá, prometo.

    Mas o cruel gavião, que ouvira essas palavras, pousou na frente do rei e o interpelou:

    - Este pássaro, a pomba, é a minha comida, ó rei. Ela me é destinada pelos deuses. Tu não deverias negar-me a minha presa legal, ganha com árduo esforço! Tu és o soberano, podes intervir entre os seres humanos teus súditos. Mas não tens poder legal sobre os pássaros que voam pelos céus! Que direito tu tens de me forçar a morrer de fome?

    O rei, um homem justo, retrucou:

    - Não te deixarei morrer de fome. Ordenarei que preparem um javali ou um veado. Poderás te fartar à vontade. Mas não comerás esta pomba.

    Ao que o gavião lhe respondeu, maldoso:

    - Eu não como carne de javali, nem de veado. O alimento que me foi destinado é a pomba. Mas, ó monarca compadecido, se te importas tanto com ela, façamos um trato: tu me darás o equivalente ao peso desta pomba em carne do teu próprio corpo. Com isso ficarei satisfeito.

    E o rei retrucou:

    - A tua sugestão é justa, gavião. Farei o que tu propões.

    Imediatamente, mandando trazer uma balança, o rei começou a cortar pedaços do seu próprio corpo e a colocá-los num dos pratos, enquanto no outro punha a pomba ferida.

    Os cortesãos, as princesas, os ministros e os servos acorreram aflitos e, horrorizados, levantaram um alarido de protestos tão fortes que chegou aos céus como um grande trovão. E a própria terra tremeu, ao ver que o rei de Benares não só prometia como fazia o que os seus guerreiros mais valentes não seriam capazes de fazer, nem pelos seus próprios filhos.

    O rei continuava a cortar pedaços das suas pernas, coxas, músculos e braços, mas, quanto mais da sua carne ele punha na balança, mais pesada ficava a pomba, no prato oposto.

    O rei já estava quase reduzido ao esqueleto descarnado e então, vendo que não conseguia igualar o peso da pomba, ele decidiu dar o seu corpo inteiro para cumprir a palavra. Subiu na balança, ele mesmo. E equilibrou o peso.

    Naquele momento, apareceram os deuses. Ouviu-se uma música celestial e uma chuva de néctar caiu sobre o rei, e o seu corpo lhe foi milagrosamente devolvido. Flores maravilhosas caíram do céu e as ninfas celestes cantaram e dançaram. Surgiu uma carruagem faiscante de pedrarias, e os deuses arrebataram o rei, puseram-no na carruagem e o levaram com eles para o céu.


Lenda indiana recontada pela escritora Tatiana Belinky. Retirado da Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Junho de 1995.

sábado, 12 de março de 2022

O Diabo e o Granjeiro

    Um pobre lavrador precisava construir a casa da sua pequena granja, mas não conseguia realizar esse sonho, pois o que ganhava mal dava para alimentá-lo, junto com sua mulher. Por mais economia que fizesse, não conseguia juntar o necessário para começar a construção.

    Uma dia, estando a caminhar pelo seu pedaço de chão, mergulhado em tristes pensamentos, deu com um velho esquisito, que lhe disse com voz desagradável:

    - Para de preocupar-te, homem. Eu posso resolver o teu problema antes do primeiro canto do galo, amanhã cedo.

    - Como assim? - espantou-se o lavrador.

    - Tu precisas construir a casa da granja, certo? Pois eu me encarrego de construir e entregar-te essa obra, antes do canto do galo, em troca de uma pequena promessa tua.

    - Que promessa? Não tenho nada para te oferecer em troca de tal serviço.

    - Não importa: o que quero que me prometas é um bem que tens mas ainda não sabes. É topar ou largar.

    O pobre granjeiro pensou com seus botões "o que é que eu tenho a perder?" e, sem hesitar mais, respondeu ao velho que aceitava o trato, e fez uma promessa.

    - Só que quero ver a casa da granja construída, amanhã, antes do canto do galo - observou ele, ainda meio incrédulo.

    E voltou correndo para casa, para comunicar à esposa o bom negócio que acabara de fechar. A pobre mulher ficou horrorizada:

    - Tu és louco, marido! Acabas de prometer àquele velho, que só pode ser o próprio diabo, o nosso primeiro filho, que vai nascer daqui a alguns meses!

    O homem, que não sabia da gravidez, pôs as mãos na cabeça, mas não havia mais nada a fazer: o pacto estava selado. Porém, a mulher, que não estava disposta a aceitá-lo, ficou pensando num jeito de frustrar o plano do diabo. E naquela noite, sem conseguir dormir, ficou o tempo todo escutando apavorada o barulho que o demônio e seus auxiliares infernais faziam, ao construírem a tal obra, com espantosa rapidez.

    A noite ia passando, aproximava-se a madrugada. Mas, pouco antes de o céu clarear, quando faltavam só umas poucas telhas para a conclusão da obra, a atenta mulher do granjeiro pulou da cama e, rápida e ágil, correu até o galinheiro, onde o galo ainda não despertara. Tomando fôlego, imitou o canto do galo, com tal perfeição que todos os galos da vizinhança, junto com o seu próprio, lhe responderam com um coro sonoro de cocoricós matinais, momentos antes do romper da aurora.

    Como um trato como o diabo tem de ser estritamente observado, tanto pela vítima como por ele mesmo, a obra em final de construção teve de ser parada naquele mesmo instante, por quebra de contrato "antes do primeiro canto do galo".

    E o diabo, espumando de raiva por se ver assim ludibriado e espoliado, se mandou de volta para o inferno, junto com os seus acólitos, para nunca mais voltar àquele lugar.

    Mas a casa da granja permaneceu construída, para alegria do granjeiro, faltando apenas aquelas poucas telhas, que jamais puderam ser colocadas.


Lenda alemã recontada por Tatiana Belinky e retirada da Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Maio de 1995.

Permanece em Serenidade

    A Terra é, sem dúvida, um hospital-escola de provas e expiações.

    Os seus alunos ainda tateiam nas experiências do primarismo, rentando com as paixões fortes que remanescem como heranças dos seus instintos agressivos.

    Por isso, manifestam-se os abusos e descalabros, gerando desordens que retardam a marcha do progresso.

    Distraído ou agitado, o homem insiste na preservação da estrutura material em detrimento da sua realidade espiritual, dos seus valores éticos, da autoconsciência responsável.

    Frágil na constituição orgânica, cuja existência pode diluir-se após uma picada insignificante que lhe infecte a maquinaria, usa-a qual se a mesma pudesse manter-se indefinidamente.

    Constituído por células que se renovam e equipamentos de duração efêmera, não se dá conta da transitoriedade nele latente e ensoberbece-se, brutaliza-se, tornando-se prepotente e dominador, pisoteando física e moralmente todos quantos lhe tombam sob as injunções cruéis.

    Tudo nele, é convite à reflexão, à tolerância, ao amor. Não obstante, o seu comportamento envilece-o, retendo-o nas amarras do primitivismo, enquanto são desprezados os apelos para o crescimento, a ascensão.

    Apesar disso, na condição de aprendiz da vida, a dor o faz, a prazo necessário, descortinar as metas que deve alcançar, atraindo-o para os altos cimos da liberdade e da paz.

    Mantém-te sereno ante as vicissitudes, por mais rudes se te apresentem. Elas te fortalecerão as fibras morais para empreendimentos mais dignificadores.

    Retribui com o bem, sem qualquer ressentimento, todo o mal que te façam. Quem age corretamente, desfruta de paz íntima.

    Desconecta a mente das angústias e cultiva o otimismo dinâmico. O bem é a única diretriz para a saúde integral.

    Avança com serenidade, considerando que estás em trânsito no mundo corporal. Quem vive em vigilância nunca padece surpresas desagradáveis.

    Executa as tarefas que te dizem respeito com  equilíbrio, com fidelidade ao dever. O tempo preenchido com ações úteis se transforma em agente de felicidade.

    Verás, na convivência humana, pessoas que parecem ditosas, despreocupadas, plenas. No entanto, não o são; apenas parecem. Desconhece-lhes o calvário interior e quanto dariam para trocar a sua pela tua vida.

    Destacam-se, ao teu lado, as criaturas odientas, perversas, que galgam os degraus da fama e do poder utilizando-se de recursos ignóbeis. Magoas-te com a sua irreverência. Desconheces, porém, a loucura que as domina, assim como a desdita em que se asfixiam, assumindo essas atitudes como mecanismos de demência escapista.

    As almas estão na Terra em processo de reparação.

    Cuida-te e cresce para Deus com a consciência transparente.

    Jesus, a Vítima sem culpa, aceitou a injunção arbitrária para ensinar paciência, resignação e confiança irrestrita em Deus, em extraordinária demonstração de certeza da Imortalidade, que confirmou ao retornar da sepultura em esplendorosa ressurreição.


Texto retirado do livro Momentos de Alegria; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª Edição, 2014.

quinta-feira, 10 de março de 2022

A Mamãe Leopoldina

Sou a senhora Leopoldina

locomotiva muito faceira,

solto fumaça, fico zangada,

vou chique-chique pela estrada.


Ando nervosa, nervosa eu fico,

dou o meu grito quando apito!


Pois o meu filho, o Zé Vagão,

me atormenta... Quem aguenta?

Ele só vive na contramão!


Se vou pra baixo, ele escorrega, 

o seu traseiro no trilho esfrega!


Se vou pra cima, ele reclama,

tem dor na rosca e só quer cama!


Quando eu paro na estação,

o meu filhote faz confusão:

come pipoca, cachorro-quente,

come cocada, pede empada,

fica doente, o Zé Vagão,

reclama tanto de indigestão...


E o meu filho, ai, o meu filho,

vai poluindo toda a estrada,

pingando óleo por todo o trilho!

O que é que eu faço com o Zé Vagão?

Estou cansada, puxo o menino,

ser mãe sofrida é meu destino?


O Zé Vagão, passado um tempo,

foi se tornando diferente...

O vagãozinho, muito esticado,

de bigodinho adolescente?


Estou sofrida, estou exausta,

puxo o vagão pelo caminho,

ai, a ladeira é longa e alta!


O Zé Vagão salta do trilho,

sai aos pulinhos, ali na roça, 

fica flertando com uma carroça?


Eu dou apito, grito que grito,

pego o danado desse meu filho,

volto com ele num choque-choque,

o danadinho requebra um roque?


Passou um tempo, fiquei velhota,

o meu filhote ficou ativo.

apita e grita, corre que corre, 

virou um pai Locomotiva.


Ele implicam com meu netinho,

o meu netinho Zé Vagãozito,

puxa a criança pela estrada,

eu não admito, fico zangada:


- Deixa o meu neto, ele é criança,

não atormenta o pobrezito,

o vagãozinho tem dor na rosca,

o coitadinho é tão fraquito!


Aí eu compro na estação

muito sorvete, pé-de-moleque,

compro empada, dou bombonzinho,

encho a pança do meu netinho.


Se pinga óleo... ai, que gracinha,

eu limpo o trilho, mudo a fraldinha.

Sou Leopoldina, vovó ativa,

velha senhora locomotiva.


História criada por Sylvia Orthof e retirada na Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Abril de 1995.