domingo, 27 de março de 2022

Os Viajantes e o Monstro

    Um rapaz ganhou de seu pai uma arma e saiu pelo mundo. Andou, andou, até que encontrou um sonhador. Passaram a ser dois, viajando juntos. De manhã, o sonhador disse: 

    - Sonhei com um ladrão que seguia conosco.

    E assim foi. Encontraram um construtor de barcos e passaram a ser quatro, viajando juntos. Na outra manhã, o sonhador disse:

    - Sonhei com um colador de coisas quebradas que viajava conosco.

    E assim foi. Encontraram um colador e passaram a ser cinco, viajando juntos. Na outra manhã, o sonhador disse:

    - Sonhei com um soba que nos prendia e punha na cadeia.

    Nós podemos não saber o que é um soba. Mas os quiocos sabem muito bem que é um chefe de aldeia, muito importante e com muitos poderes, uma espécie de rei. Por isso, os viajantes nem se espantaram quando chegaram a uma aldeia e o soba disse ao rapaz da arma:

    - Teu pai roubou minha filha! Ou você me devolve a moça, ou ficam todos sendo meus escravos!

    Prendeu todos eles e mandou espancá-los. De manhã, o sonhador disse:

    - Sonhei que é verdade o que ele diz: teu pai roubou mesmo a moça e a vendeu a um monstro, lá no mar. Sonhei que nós a encontrávamos, mas o monstro era muito feroz e quebrava nosso barco todo. Aí eu acordei.

    O rapaz chamou o soba e disse:

    - Sabemos onde está tua filha. Se nos soltares, vamos buscá-la.

    O soba então prometeu que, se a trouxessem, daria a eles o sobado. E eles partiram.

    Andaram, andaram, andaram e dormiram. De manhã, o sonhador disse:

    - Sonhei que chegávamos a uma aldeia com muitas moças. Uma delas estava fazendo cestos em forma de cone, cheios de desenhos. Essa era a filha do soba.

    E o ladrão respondeu:

    - Deixa que eu roubo.

    Os outros se esconderam no mato, bem na beira do mar. O construtor de barcos começou a trabalhar e o ladrão entrou na aldeia. Chegou perto da moça e, conversa vai, conversa vem, foi falando no pai dela, na mãe dela, e a moça logo viu que ele vinha salvá-la. Na primeira chance, fugiu com ele para o mato. Entraram no barco, que já estava pronto e partiram todos. Quando o monstro percebeu, ficou furioso e partiu o barco deles em pedacinhos. O rapaz da arma deu um tiro e arrancou a cabeça do monstro. Mas ele tinha várias, era só botar uma nova. Enquanto fazia a troca, o colador de coisas quebradas consertou o barco e os fugitivos se afastaram. Daí a pouco, o monstro se aproximou outra vez: novo tiro, nova troca de cabeças, novo conserto de barco. De cada vez, a aldeia do soba ficava mais perto. Até que eles conseguiram chegar e o monstro viu que não adiantava insistir. Ninguém conseguia vencer os cinco amigos.

    O soba cumpriu a palavra. Deu o sobado ao rapaz e deu também a filha em casamento. Os outros casaram e ficaram sendo ajudantes do soba, porque nessas coisas de sobado - garantem os quiocos - é sempre muito útil ter a ajuda de um sonhador, um ladrão, um construtor e um consertador.


Conto tradicional dos quiocos, um povo angolano recontado por Ana Maria Machado. Retirado do revista Nova Escola, Novembro de 1996. Fundação Victor Civita, Editora Abril.

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