domingo, 30 de outubro de 2022

A Mulher Perdida

    Tinha onze anos e usava o primeiro uniforme de colégio, quando, alarmado, descobri a amante. Até ali, o impacto da palavra vibrava em mim no retalho de conversas entreouvidas, na tímida suspeição das fitas de cinema. Não tinha posto meus olhos em amante de carne, não era capaz sequer de imaginá-la, a mulher que sofresse hora a hora o estigma: amante. A palavra imantada cristalizara-se em mim com suas pontas, seus reflexos. Mas agora passava a existir a criatura impregnada de seu fogo. Eu, eu fremia de pânico e desejo de acabar com a fraude da infância e abrasar-me. Pensar na amante, saber que ela se mirava no espelho, que se mostrava aos olhos de homens que não tinham amantes, de mulheres que não eram amantes, isso vinha a ser mais fascinante do que todo o sumo de minha vida.

    Via, e não me cansava de ver, as jovens tuberculosas da cidade, mulheres magras que passavam as tardes nas varandas das pensões, contaminadas, mas tranquilas, sem demonstrar uma consciência mortal (eu esperava) do horror que as consumia. Trocavam à vezes o tristonho roupão das horas quase todas por um vestido, deixavam as chinelas, coloriam a palidez do rosto, saíam para a rua, tomavam o bonde, sumiam dentro do edifícios, reapareciam nas confeitarias, usavam xícaras de outras pessoas, retornavam às pensões antes de cair no sereno. Chegavam a rir no alto das varandas depois do jantar, e então, parando de entender o resto, eu respirava.

    Eram as fronteiras da minha vida. E eis que vinha morar perto de casa, na Paróquia de Santo Antônio, entre outras casas de débil estilo normando, uma amante, a amante. As tuberculoses se simplificaram na familiaridade dos fatos consumados. Que morte poderiam carregar consigo, comparadas à amante? A palavra amante era de um contágio mais galopante que a palavra tuberculose. Mas a cidade se recolhia cedo na cama, sem desconfiar da amante.

    Escondi o segredo perigoso. Falar a outro sobre a amante seria amputar o meu gosto de saber a verdade nua. Nunca descrevi do que amo ou me assusta para ninguém; só depois encontro o jeito de denunciar o que se passa comigo.

    Não me recordo de quando a vi pela primeira vez. Levei algum tempo construindo a coragem de vê-la de corpo inteiro, como quando a gente acorda com medo e só aos poucos assume a ousadia de investigar todo o aposento. Do estremecimento inicial à miopia da timidez, eu a vi devagar, como um pintor sem jeito receia reformar num gesto a figura feliz. Tinha de ser devagar a província do meu abandono.

    Um deputado era o amante da amante. Ao cair da tardinha, o automóvel reluzente pousava os pneus macios no calçamento alastrado de capim. Se eu odiasse o deputado, ele deixaria de ser o amante. Eu regressava do futebol, das construções, dos passarinhos, calçado de chuteiras, a cara em fogo, por um campo de flores amarelas. Se o carro estivesse, o bangalô ficaria todo fechado, como casa vazia. Sozinha, ela gostava de debruçar-se no portão de madeira, olhando. E eu passava, olhando.

    Era branca, imorredouramente limpa, e linda, e bem-cuidada, e loura e de olhos alumiados, e de uma serenidade que se entrechocava aos emboléus com o fragor sensual que fazia dentro de mim a palavra. Amante. Pois clamava, até mesmo aos olhos de um inocente, uma dedicação vagarosa na face da amante, nos movimentos meigos, nos vestidos bem-passados, nos pés cingidos de sapatos leves. Só os quadris eram um pouco desenhados demais para as mulheres familiares da época.

    Só a vi assim, correta, singela, concisa. Não perambulava pelas ruas como as tuberculosas, não tinha amigos, não falava aos vizinhos. Ela estava certa de que trazia na alma um contágio.

    Mas sorria para mim. Depois de algum tempo, começou a sorrir quando eu passava, e pensei, pensei com o tumulto que pode contaminar o corpo e o espírito, que a amante iria ser a minha amante. A mulher mais bela ia ser a amante do menino soturno.

    Ai, ai de que adianta um menino? Não era um menino, era um homem, e um homem quer morrer. As ventanias me arrastaram, dispersando-me nas várzeas, as tempestades me espatifaram, os crepúsculos me sufocaram, uma lua doente me envelheceu.

    E ela me sorria, doce, doce, como as amantes não sorriem. Como sorriem as águas escondidas. Estava me tornando menino outra vez na doçura sem malícia do sorriso. E uma tarde ela me pediu que entrasse, e eu entrei de chuteiras. E ela passou a mão nos meus cabelos e me deu um doce de elite, que eu comi, depois de responder, cara afogueada, que meu nome era Pedro. A amante queria ser minha mãe.

    Minha primeira complicada compaixão pelas mulheres.


Crônica de Paulo Mendes Campos retirada do livro As Eternas Coincidências, da série Literatura em minha casa - Crônica & Conto - Volume 2, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2003.

sábado, 29 de outubro de 2022

Instrumento da Vida

    Não te consideres indene à interferência perniciosa das Entidades perversas, que ainda se comprazem gerando perturbação e sofrimento.

    Utilizando-se das imperfeições morais dos homens, insinuam-se através dessas brechas e instalam centros de desordem, estabelecendo conflitos e distorcendo os enfoques da realidade, por meio de lentes defeituosas.

    Estás destinado a realizações superiores para o teu bem e o bem geral.

    Procedes da ignorância e rumas para a Grande Luz.

    Anelas pela claridade futura, no entanto, movimentas-te ainda entre sombras  remanescentes...

    Cuida-te mais, a fim de que a tua usina psíquica não ofereça energia pra utilização prejudicial a ti próprio.

    Um pequeno incidente, um acontecimento sem importância, uma querela sem valor, um ato que te parece de desconsideração, ligeira dificuldade no relacionamento familiar, afetivo ou social, uma desconfiança, e estão prontos os condimentos para o acepipe da desarmonia, do mal-estar...

    Indispensável redobrares a vigilância e perseverares no bom humor.

    Quem abraça o Evangelho do Cristo encontra-se mais bem equipado para enfrentar as vicissitudes e lutar contra as próprias imperfeições.

    Certamente tens problemas e dificuldades. Todavia, o mundo é escola de aperfeiçoamento, e, quantos nele se movimentam, com raríssimas exceções, padecem das mesmas injunções.

    O que não podes é desmerecer a confiança do Senhor, que te encarregou das tarefas que deves desempenhar com alegria.

    A conquista da felicidade real é um desafio de alto porte. Somente o logram aqueles que se empenham sem desfalecimento na superação dos empeços.

    Crês que podes ser útil em qualquer lugar, e, não especificamente, neste ou naquele onde te encontras.

    É certo que sim. Sem embargo, toda vez que abandonamos um labor, mesmo que para encetarmos outro, fracassamos naquele que dependia de nós, e , qualquer insucesso que disso decorre, a responsabilidade é do desertor.

    Em períodos de problemas, faz-se mais imperiosa a dedicação.

    O cristão decidido dá-se, serve e confia.

    Quando espera retribuição, destaque, projeção, sem dúvida que se está servindo da tarefa, e não atuando em favor do serviço.

    Não arroles, pois, queixas, nem exigências.

    O erro sempre perturba a quem o pratica.

    Sê tu aquele que avança sempre, sem pressa, porém sem pausas prolongadas ou mediante marchas e contramarchas.

    Deixa-te, desse modo, conscientizar de que edificação moral, renovação espiritual e construção do bem no mundo são empreendimentos de grande porte que a vida te enseja, considerando que, antes, fazias parte do grupo que perturbava e afligia, sendo, agora, instrumento da vida para a  glorificação do bem, em nome dAquele que é o Sumo Bem.


Texto retirado do livro Momentos de Coragem; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 8ª edição, 2014.

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Diálogo à beira da cova

    Cheguei um pouco atrasado no cemitério e precisava perguntar na recepção, ou que melhor nome tenha, por onde andava o meu defunto. O funcionário prestava no momento umas informações a uma senhora, uma senhora de uns quarenta e poucos anos, já meio amarelecida em seu princípio de outono. Ela  acabava de formular a seguinte pergunta:

    - Qual dois dois o senhor acha melhor? Pode falar com toda a franqueza.

    - Mas é mesmo para a senhora? - quis certificar-se o empregado, um sujeito gordo, de bigodes opulentos e tisnados, de um sorriso familiar e complacente, nada fúnebre.

    - Sim, é para mim mesma - ela confirmou com naturalidade.

    Ele, vagamente galante, ponderou sem convicção:

    - Mas a senhora, tão moça, tão forte e já pensando nessas coisas...

    - É do meu temperamento - cortou a dama, toda de preto vestida.

    - No fundo, talvez a senhora tenha razão - comentou misteriosamente o funcionário.

    - Resolvi deixar tudo arrumadinho. Isso de estar forte não significa coisa nenhuma. A gente nunca sabe quando vem a bicha.

    - É isso mesmo - voltou ele com o mais gordo de seus sorrisos. - A senhora está dizendo uma coisa que é pura verdade: a gente nunca sabe.

    Seu modo de falar era absolutamente sincero, sem qualquer ironia: trabalhando com os mortos, aquele homem não tinha tempo de pensar na morte e ouvia com admiração aquelas palavras banais a respeito da insegurança da vida. Para ele, os mortos morriam na hora, chegavam na hora, eram enterrados na hora. Se acaso um cadáver se atrasava ou se antecipava, isso estava errado. Ela arrematou o seu pensamento:

    - Coisa que não suporto é dar amolação a parentes. Só por isso é que resolvi escolher a minha cova, pagar por ela e ficar em paz.

    - Bem, como é para a senhora mesma, vou ser muito franco. O da quadra 16 é melhor. Mas muito melhor.

    - Ué, por quê? Aquele perto do muro me pareceu que não tinha nenhum inconveniente. O senhor quer saber de outra? Coisa que me dá aflição é ficar no meio do bolo. Nunca fui de carnaval. Aliás, desde menina que sempre preferi viver no meu cantinho, onde ninguém pode me amolar...

    - Mas...

    - Não é preciso dizer. Estou viva, mas nem depois de morta suporto confusão. Além do mais, sou louca por flores... Gostei tanto daquelas, tão bonitas, tão amarelinhas...

    - A senhora não me leve a mal - insistiu o funcionário -,  mas as flores não querem dizer nada.

    - Como assim?

    - É claro, madame. Nem sei como aquelas plantas nasceram por ali. Mas amanhã elas morrem e fica tudo pelado que dá gosto. Sou empregado aqui e não posso dar com a língua nos dentes, mas se a senhora quiser ouvir um bom conselho, fique com o da quadra 16, que estará muito bem servida.

    - Ah, mas o senhor tem de me contar o motivo. Pode dizer.

    - Madame, para bem entendedor, meia palavra basta.

    - O senhor não repara não, mas sou danada de teimosa. Lá em casa até me chamam de Maria Teimosa. Enquanto o senhor não me confessar por que o da quadra perto do muro não serve, não arredarei o pé daqui (Pausa e sorriso coquete). Daqui não saio, daqui ninguém me tira...

    O funcionário olhou para os lados, deu com a minha cara cem por cento distraída, inclinou-se um pouco, vencido, disse em voz baixa:

    - Se a senhora me promete segredo...

    - Claro, serei um túmulo.

    O gordo, num sussurro, quebrou o segredo profissional:

    - Aqueles todos ali perto do muro dão água.

    - Dão água?!

    - Quer dizer, têm infiltração.

    - Muita?

    - Muita.

    - Água... água...

    Por um segundo esperei com espanto e admiração que ela citasse Shakespeare: Water is o sore decayer of your whoreson dead body*. Mas, em vez de Shakespeare, ela preferiu um suspiro:

    - Ah, realmente com água é meio desagradável. Ai, ai! Nada nesta vida sai como a gente quer. Pois bem, então vou ficar com o da quadra 16, que hei de fazer! Mas o senhor nem pode imaginar minha tristeza. Achei aquele perto do muro, aquele das florzinhas amarelas, tão simpático, tão repousante! E ando tão cansada, tão enjoada de tanto barulho, tanta confusão...


* A água é um cruel decompositor do seu miserável corpo morte.


Crônica de Paulo Mendes Campos retirado do livro As Eternas Coincidências, da série Literatura em minha casa - Crônica & Conto - Volume 2, Bertand Brasil, Rio de Janeiro, 2003.

História do Brasil

    E o Senhor disse:

    Agora criarei o mais estranho de todos os países. E ele será verde-amarelo e atenderá no concerto das nações pelo nome de Brasil. E ele nunca saberá com certeza o motivo de seu nome. Pois com o Brasil pretendo mostrar aos homens que os caminhos do Senhor são desconhecidos.

    E erguerei do barro um poeta que dirá: "O Brasil é uma república federativa com muitas árvores e gente dizendo adeus". E o Brasil viverá do improviso, que não é o vento do espírito, mas a mesmo força que dormia no caos, antes que a Terra fosse criada.

    E darei a esse povo um rei português, ocioso, gordo, incapaz e grande comedor de frangos, mas que irá criar as primeiras coisas importantes, a fim de que o povo do Brasil se acostume a não entender mais nada. E ao filho desse rei caberão duas missões: primeiro, inventar a juventude transviada; segundo, separar Portugal do Brasil. Depois disso, farei com que ele embarque para Portugal, onde será rei dos portugueses. Pois é preciso que o povo do Brasil receba com naturalidade aquilo que não tem explicação. Aí, eis que vou criar um terceiro rei. E esse deverá escrever os piores sonetos da língua portuguesa. E amará as línguas mortas. A fim de que se acrescente a confusão. Então, em uma transparente manhã de novembro, criarei de repente a república federativa com muitas árvores e gente dizendo adeus. A meu comando, um soldado triste bradará: "Viva a República!" E a república será vivada. E os barões serão os mais fiéis republicanos. E os republicanos derramarão lágrimas e escreverão muitas cartas com saudade do rei que escrevia sonetos. E a confusão será maior. E o brasileiro será o irmão do vento, que ninguém entende.

    E a esse povo darei o açúcar. Depois, por tortos caminhos, farei trazer do outro lado do mundo o café. Pois está escrito que o Brasil deve viver da mistura do branco e do preto, e da mistura do doce com o amargo, para que os escribas possam chamar esse país de terra dos contrastes.

    E criarei para o Brasil oradores eloquentes; a estes darei a ambição, mas não a sabedoria; e criarei uns poucos homens sábios; e a estes não darei nem a ambição, nem a eloquência. A fim de que as discussões se prolonguem e que o povo se perca pela boca dos oradores.

    E sobre grandes veios de ouro levantarei montanhas de ferro, mas o povo viverá da cultura da mandioca; e as bananeiras agitarão suas crinas nas tardes morosas dos quintais; e esse país imenso e despovoado só derramará sangue por causa de terras; e o brasileiro não saberá se Lampião foi um flagelo de Deus ou um ótimo sujeito, porque não entende a mais velha das contendas, que é a briga pela terra.

    E o povo amará a cachaça e o pastel; e inventará a cuíca e o samba; e bebendo cachaça, comendo pastel, tocando cuíca e sambando esquecerá que o Brasil é uma pobre república federativa com muitas árvores e gente dizendo adeus.

    Então, eis que, em uma ilha frígida, a fim de que os corpos se aqueçam, inventarei o futebol. E o tórrido Brasil amará o futebol acima de pai e de mãe. Então criarei a Copa do Mundo. E um dia o Brasil perderá esse galardão na última batalha, dentro de seus próprios muros, quando lhe bastaria o empate. Quatro anos depois caberá aos comunistas eliminar os brasileiros para que se aumente a confusão. E para que se aumente a confusão criarei uma comissão técnica que não entenda nada de futebol. E esta será bicampeã do mundo. E o tórrido Brasil, chorando de alegria, beberá muita cachaça, e comerá muito pastel, e tocará muita cuíca. Aí, eis que farei o Brasil perder o Tri, e a Taça, e a Alegria para Portugal. Pois assim está escrito

    Para que o brasileiro continue na sua confusão, irmão do vento, que ninguém entende.


Crônica de Paulo Mendes Campos retirada do livro As Eternas Coincidências, da série Literatura em minha casa - Crônica & Conto - Volume 2, Bertand Brasil, Rio de Janeiro, 2003.

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Futebol de Veteranos

    O espetáculo começa quando eles chegam, aí por volta de duas e meia das tardes de sábado. O campo tem pouco menos de 50 metros de comprimento, cabendo seis de cada lado, um louco no gol, dois zagueiros, dois na frente e um armando pelo meio. Olhos luzindo, eles calçam os sapatos de tênis ou basquete. Três ou quatro senhores, sempre suspeitos, confabulam a um canto, escalando, conforme a frequência, três ou quatro times para o torneio vesperal.

    - O meu está uma droga.

    - O seu, perto do meu, é um escrete.

    - E o meu! Nelson e Mauricinho juntos! Essa não!

    - O meu está mais ou menos, mas só tem jogador de defesa.

    Logo depois do par-ou-ímpar é preciso recondicionar os times. Todos estão descontentes ou fingem descontentamento, até que um deles se abraça com a bola e, gesticulando com o outro braço, brada:

    - Vamos começar, gente! Anda escurecendo cedo.

    Todos resmungam, mas acabam concordando, e há uma aparência de calma. Antes que se dê a saída, são indispensáveis mais duas brigas: a primeira, dentro de cada time, pois ninguém quer começar no gol; a segunda, envolvendo todos, é sobre o juiz.

    - Se o Zé Catimba apitar, eu não jogo.

    - Por quê?

    - Porque ele tem cisma comigo.

    - O Lúcio não veio hoje?

    - Está em casa tocando trombone.

    - Apita você, Armandinho.

    - Nem por vinte mil cruzeiros.

    - E você, Tavares?

    - Só apito se ninguém reclamar.

    - Prometo que do meu lado ninguém reclama.

    - Eu nunca reclamo mesmo.

    Prometem, mas não cumprem. Todos reclamam de tudo e de todos, do juiz que não viu mão, do adversário que cometeu obstrução, você que me trancou pelas costas, do companheiro que não passou, essa nem o Garrincha tenta fazer, do goleiro que papou um frango.

    - Você não viu que eu não consegui matar a bola?

    - Vi: você está sem revólver.

    As partidas se sucedem, a gana de vencer é feroz, o suor escorre, os corações disparam, há cruentos suspiros de fadiga, as mãos esfregam os rins quando a bola vai fora, as botinadas vão e vêm, recíprocas. Mas não esmorecem, é preciso não esmorecer, pois aqui ninguém mais é criança.

    Mas aqui somos todos uma crianças, crianças de 30 e poucos, de 30 e muitos, de 40, os mais velhos aí pelos 50. Crianças numa pelado crepuscular, que pode ser a última de nossa vida, o cemitério, a orfandade de nossos filhos. Mas é por isso mesmo que não podemos perder, é por isso mesmo que fazemos das tripas coração, é atrás duma nesga da infância que andamos a correr, é a maturidade irremediável que estamos tentando driblar, é contra o tempo que perseguimos o gol.

    Visto de fora, sobretudo por uma pessoa que já arqueje ao correr para pegar o ônibus, nosso espetáculo pode ser triste e ridículo. De dentro, dou minha palavra de honra, trata-se duma vivência bonita e alegre. Um viciado em leituras psicanalíticas diria que estamos querendo provar a nós mesmo que... ainda não ficamos velhos. E diria a verdade. Ignorando no entanto que, de antemão, já sabemos derrotados; aí reside uma rejubilação de músculos e espírito que vai tangenciar a própria dramaticidade do tempo e a incapacidade humana de revertê-lo.

    Mais tarde, tomando uma cerveja, os cavalões estão vermelhos por fora e purificados por dentro. Pudicamente, um dirá que a pelada ajuda a manter a forma; outro alega que deseja perder um pouco de peso; outro cinicamente acha que não há nada como esse exercício para fazer boca para uma cervejinha estupidamente gelada.

    Mas no fundo, em segredo, sabem todos que a pelada é boa porque dar um chute bonito faz um bem extraordinário à alma do homem. Sobretudo se o homem é brasileiro.


Crônica de Paulo Mendes Campos retirado do livro As Eternas Coincidências, da série Literatura em minha casa - Conto & Crônica - Volume 2, Editora Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2003.

domingo, 23 de outubro de 2022

Perfeição

 Vamos celebrar a estupidez humana

A estupidez de todas as nações nações 

O meu país e sua corja de assassinos

Covardes, estupradores e ladrões

Vamos celebrar a estupidez do povo

Nossa polícia e televisão

Vamos celebrar nosso governo

E nosso Estado, que não é Nação

Celebrar a juventude sem escola

As crianças mortas

Celebrar nossa desunião

sábado, 22 de outubro de 2022

Buscando e Encontrando

A busca de Deus deve constituir uma ação constante e motivadora para qualquer existência feliz.

As definições a respeito d'Ele, mesmo quando satisfaçam ao intelecto, não conseguem atender às imensas necessidades do coração.

Ao mesmo tempo, a interpretação racional da Sua Grandeza apenas oferece dimensão para que o homem compreenda a sua infinita limitação em torno da Transcendente Realidade, impossível de ser globalizada em uma síntese apreensível.

Quando se pretende explicar o Universo sem a necessidade de Deus, utilizando-se de equações que remontam à grande explosão, que seria a sua causa inicial, somente se constatam efeitos, porquanto as forças aglutinadoras das moléculas têm as suas origens no insondável do tempo preexistente.

Sem que se apele para a Razão Incausada, as fórmulas para solucionar o enigma do infinito perdem as potências, se não apoiadas na ação consciente de um Criador.

É humano e natural que a mente deseje interpretar o Incognoscível.

As tentativas, no entanto, têm resultado, somente, na apreensão dos limites, que se ampliam ante a percepção do que é Ilimitado.

Todavia, quando se sente Deus, sem necessidade de O verbalizar intelectualmente, de O exteriorizar, basta para facultar o preenchimento do vazio interior.

Conceitos há, uns que O Personalizam e outros que O liberam de toda e qualquer possibilidade de entendimento. As suas variações são inumeráveis, de acordo com cada povo, cultura e mente.

Não obstante, seja qual for a forma para externar a ideia, isso, na prática, deveria alterar em profundidade os indivíduos, sua conduta, sua vida.

Deus se encontra insito no ser humano, tanto quanto onipresente em todas as coisas. 

Jazendo como uma força encarregada de fomentar a vida, aguarda que a vontade consciente do homem desenvolva as potencialidades que ali estão, exteriorizando-as, a fim de plenificar a criatura.

Vibrando no âmago do Espírito, é a força propulsora graças à qual este atinge a sua perfeição relativa

Não cesses de buscar Deus, conscientizando-te das responsabilidades que advirão após o encontro.

Filho amado, dispões de todos os recursos para conseguires a meta sublime.

Esforçando-te, conseguirás desvelá-lO nos sentimentos profundos e apresentá-lO através de atos compatíveis com a felicidade que te dominará.

Enriquecido pelo Seu amor, distenderás a ternura e a bondade por todos quantos te cerquem, repetindo o júbilo que te domina, assim  aquecendo as vidas com a esperança.

Deus te aguarda e enseja-te a oportunidade de entendê-lO e senti-lO.

Não te detenhas na busca, prosseguindo de ânimo robusto.

Buscá-lO, já é uma forma de encontrá-lO


Retirado do livro Momentos de Alegria; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª Edição, 2014.

terça-feira, 18 de outubro de 2022

Ideal de Moça

    Sua mãe tinha sido muito pobrezinha - cozinheira - veterana da cozinha do Dr. Pacheco. Fogão e tacho, toda sorte de comida, toda espécie de doces, jantares e almoços e aniversários e comidas "foradoras" e hóspedes. A roda viva da cozinha. Nada de ajantarados, como hoje, e cozinheiras na folga. Essas coisas só vieram, muito mais tarde, quando Sá Riqueta já tinha morrido. Tudo ela fazia pela sua filha Totinha, que já estava na escola. Aí, quando ficou doente, ruim mesmo, pediu à comadre, mulher do Dr. Pacheco, madrinha da menina, que tomasse conta da afilhada e não a tirasse da escola.

    Sá Riqueta teve seu enterro de pobre; gente pobre acompanhando; sepultura rasa no cemitério. Mas a madrinha foi boa e passou a menina para o Colégio e ali conseguiu anos e mais anos.

    Moça já, voltou com sua pouca sabedoria para casa dos padrinhos. Foi aprender serviço de casa, à espera do casamento. Tinha seu fiozinho de voz bem aproveitado pelo colégio. Aprendeu um pouco de música e os cânticos da Capela. Fazia parte do coro. Deixando o colégio, passou a cantar no coro da Igreja, sempre pronta, quieta, modesta Filha de Maria, com seu vestido branco, sua fita azul, seu livro e seu terço branco. Efetiva no coro, na mesa da comunhão. Nenhuma saliência de sua pessoa - os anos de colégio deram-lhe um jeito de noviça, com seu vestido largo, suas mangas compridas.

    Veio o casamento, um dia um olhou para ela: precisava de uma mulher. Falou com o padrinho. Esse perguntou se ela queria casar. Ela disse que sim, sem saber, sem conhecer quase o homem. Aquela vida presa, sujeita... Teria sua casa, pensou, o marido... Seria mulher casada. E casou.

    Teve filhos e sem mais nem menos o marido a deixou. Trabalhou, pelejou, lavou roupa; limpava tripa, barrigada no rio. Ia vivendo, desejando fazer, como fez a Mãe, dar leitura aos filhos. Sempre humilde, pequenina, ocupando pouco lugar na vida da cidadezinha. Já não estava no coro. Só moças ali. Nunca pediu nada. Nunca reclamou. Só aquele desejo brando, constante, de que os filhos tivessem leitura e aquela sombra do rio para casa, da casa para o rio, com sua bacia de roupa na porta da casa. O ferro de brasa, passando a roupa lavada.

    Passava sempre, pela sua casa, cumprimentava, parava, puxava conversa. Conversinha curta, que ela fazia sem largar o ferro. Um dia entrei. Sentei. E quis conhecer aquele espírito fechado, naquela aparência igual, conformada todos os dias. Não haveria ali uma aspiração, um plano, um desejo, um estímulo, uma queixa, uma esperança?

    Dei tempo e dei linha.

    Um dia, conversa vai, conversa vem, perguntei:

    - A senhora é bem feliz da vida, tão conformada, trabalhando sempre. Tem filhas já na escola e vai realizando seus desejos...

    Ela suspendeu o ferro.

    - Eu só tive um desejo na vida, que nunca foi realizado.

    - Qual foi, Totinha? Me conte esse segredo.

    - Eu conto, mas a senhora não vai rir de mim.

    - Não, de jeito nenhum.

    - Meu maior desejo foi quando eu era moça nova, Filha de Maria, e cantava no coro da Igreja. A senhora não queria saber que vontade eu tinha de ter um desmaio na Igreja e descer do coro carregada pelos colegas... A coisa que eu achei mais bonita foi um dia que uma das moças teve vertigem e desceu carregada de lá...

    - Mas você podia inventar - disse eu.

    - Não, eu não tinha coragem de mentir. Eu queria era ter um desmaio de verdade...


Crônica de Cora Coralina retirada do livro O Tesouro da Casa Velha, Global Editora, seleção de Dalila Teles Veras, São Paulo, 1989.

domingo, 16 de outubro de 2022

Dois mais dois

    O Rodrigo não entendia por que precisava aprender matemática, já que a sua minicalculadora faria todas as contas por ele, pelo resto da vida, e então a professora resolveu contar uma história. Contou a história do Supercomputador.

    Um dia, disse a professora, todos os computadores do mundo serão unificados num único sistema, e o centro do sistema será em alguma cidade do Japão. Todas as casas do mundo, todos os lugares do mundo terão terminais do Supercomputador. As pessoas usarão o Supercomputador para compras, para recados, para reservas de avião, para consultas sentimentais. Para tudo.

    Ninguém mais precisará de relógios individuais, de livros ou de calculadoras portáteis. Não precisará mais nem estudar. Tudo que alguém quiser saber sobre qualquer coisa estará na memória do Supercomputador, ao alcance de qualquer um. Em milésimos de segundo a resposta à consulta estará na tela mais próxima. E haverá bilhões de telas espalhadas por onde o homem estiver, desde lavatórios públicos até estações espaciais. Bastará ao homem apertar um botão para ter a informação que quiser.

    Um dia um garoto perguntará ao pai:

    - Pai, quanto é dois mais dois?

    - Não pergunte a mim - dirá o pai -, pergunte a Ele.

    E o garoto digitará os botões apropriados e num milésimo de segundo a resposta aparecerá na tela. E então o garoto dirá:

    - Como é que sei que a resposta é certa?

    - Porque Ele disse que é certa - responderá o pai.

    - E se Ele estiver errado?

    - Ele nunca erra.

    - Mas se estiver?

    - Sempre podemos contar nos dedos.

    - O quê?

    - Contar nos dedos, como faziam os antigos. Levante dois dedos. Agora mais dois. Viu? Um, dois, três, quatro. O Computador está certo.

    - Mas, pai, e 362 vezes 17? Não dá para contar nos dedos. A não ser reunindo muita gente e usando os dedos das mãos e dos pés. Como saber se a resposta d'Ele está certa?

        Aí o pai suspirou e disse:

    - Jamais saberemos...

    O Rodrigo gostou da história, mas disse que, quando ninguém mais soubesse matemática e não pudesse pôr o Computador à prova, então, não faria diferença se o Computador estava certo ou não, já que a sua resposta seria a única disponível e, portanto, a certa, mesmo que estivesse errada e...

        Aí foi a vez de a professora suspirar.


Conto de Luis Fernando Veríssimo retirado do livro O Santinho, da série Literatura em minha casa, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001.

O Diamante

    Um dia, Maria chegou em casa da escola muito triste.

    - O que foi? - perguntou a mãe de Maria.

    Mas Maria nem quis conversa. Foi direto para o seu quarto, pegou o seu Snoopy e se atirou na cama, onde ficou deitada, emburrada.

    A mãe de Maria foi ver se Maria estava com febre. Não estava. Perguntou se Maria estava sentindo alguma coisa. Não estava. Perguntou se estava com fome. Não estava. Perguntou o que era, então.

    - Nada - disse Maria.

    A mãe resolveu não insistir. Deixou Maria deitada na cama, abraçada com o seu Snoopy, emburrada. Quando o pai de Maria chegou em casa do trabalho, a mãe de Maria, avisou:

    - Melhor nem falar com ela...

    Maria estava com cara de poucos amigos. Pior. Estava com cara de amigo nenhum.

    Na mesa do jantar, Maria de repente falou:

    - Eu não valo nada.

    O pai de Maria disse:

    - Em primeiro lugar, não se diz "eu não valo nada". É "eu não valho nada". Em segundo lugar, não é verdade. Você valhe muito. Quer dizer, vale muito.

    - Não valho.

    - Mas o que é isso? - disse a mãe de Maria. - Você é a nossa filha querida. Todos gostam de você. A mamãe, o papai, a vovó, os tios, as tias. Para nós, você é uma preciosidade.

    Mas Maria não se convenceu. Disse que era igual a mil outras pessoas. A milhões de outras pessoas.

    - Só na minha aula tem sete Marias!

    - Querida... - começou a dizer a mãe. Mas o pai interrompeu.

    - Maria - disse o pai -, você sabe por que um diamante vale tanto dinheiro?

    - Porque é bonito.

    - Porque é raro. Um pedaço de vidro também é bonito. Mas o vidro se encontra em toda parte. Um diamante é difícil de encontrar. Quanto mais rara é uma coisa, mais ela vale. Você sabe por que o ouro vale tanto?

    - Por quê?

    - Porque tem pouquíssimo ouro no mundo. Se o ouro fosse como areia, a gente ia caminhar no ouro, ia rolar no ouro, depois ia chegar em casa e lavar o ouro do corpo para não ficar suja. Agora, imagina se em todo o mundo só existisse uma pepita de ouro.

    - Ia ser a coisa mais valiosa do mundo.

    - Pois é. E em todo o mundo só existe uma Maria.

    - Só na minha sala são sete.

    - Mas são outras Marias.

    - São iguais a min. Dois olhos, um nariz..

    - Mas esta pintinha aqui nenhuma delas tem.

    - É...

    - Você já se deu conta de que em todo o mundo só existe uma você?

    - Mas, pai...

    - Só uma. Você é uma raridade. Podem existir outras parecidas. Mas você, você mesma, só existe uma. Se algum dia aparecer outra você na sua frente, você pode dizer: é falsa.

    - Então eu sou a coisa mais valiosa do mundo.

    - Olha, você deve estar valendo aí uns três trilhões...

    Naquela noite a mãe de Maria passou perto do quarto e ouviu Maria falando com o Snoopy:

    - Sabe um diamante?


Conto de Luis Fernando Veríssimo retirado do livro O Santinho, da série Literatura em minha casa, Objetiva Editora, Rio de Janeiro, 2001.

sábado, 15 de outubro de 2022

Deus e o Homem

Só há um Deus, Único e Verdadeiro, Causa Incausada do Universo.

Sustenta a vida e se expressa em toda parte, não se humanizando jamais.

A condição de humanidade é via de ascese aos Cimos Gloriosos, de que Ele não necessita.

Inacessível ao entendimento da criatura, por ser o Todo que jamais se fragmenta, é o Incomparável Pensamento gerador de tudo.

Onipresente e onipotente, encontra-se em toda parte qual força aglutinadora de moléculas, e qualquer tentativa de compreendê-lO, como de defini-lO, representa uma forma de limitá-lO, tirando-Lhe a grandeza inimaginável.

Por isso, o culto que Lhe devemos há que ser em espírito e verdade, respeito e amor, não pronunciando o Seu nome vãmente, mesmo a pretexto de fixar o pensamento na Sua realidade.

Notícias mitológicas afirmam que aquele que desencarna, chamando-Lhe pelo nome, emancipa-se do jugo das reencarnações...

Fantasias religiosas asseveram que morrer, neste ou naquele lugar sagrado, é suficiente para ganhar-Lhe a graça e ser perpetuamente feliz...

Se assim fora, quão grave seria a Sua injustiça em relação aos que se tornam vítimas de paralisia e demência, ou se encontram em pontos distantes dos sítios privilegiados por Ele ali colocados!

O Amor transcendente de Deus alcança igualitariamente todas as Suas criaturas, de alguma forma manifestação d'Ele próprio.

Algumas culturas orientais, ricas de lenda e ingenuidade, informam que periodicamente Deus toma forma humana para ajudar os homens a crescerem, a reformularem os hábitos doentios, a moralizarem-se, como se fora necessário, para tanto, medida simples de tal porte.

Seus embaixadores aparecem e ressurgem em todos os lugares, seja Krishna ou Buda, Moisés ou Zoroastro, Lao-tsé, Hermes Trismegisto ou Maomé, Sócrates ou Agostinho, Lutero ou Allan Kardec, entre outros inumeráveis... Todavia, superando-os em pureza e abnegação, veio Jesus de Nazaré ensiná-lO os homens e vivê-lO como jamais qualquer um o houvera feito ou venha a fazê-lo.

Não te impressiones com aqueles que se dizem manifestação divina, o próprio Deus em carne e osso nas sombras da Terra...

Respeita-os como missionários que são, emocional e culturalmente próprios para os países onde renascem com objetivos nobres e superiores.

Ouve-lhes as mensagens, no entanto, observa se unem as palavras aos atos, se são simples, bons e misericordiosos, tolerantes e caridosos, abnegados até a morte e pacientes, demonstrando sua sabedoria e evolução.

Sê grato a Deus por colocar-te próximo a esses Espíritos missionários.

Jamais os adores ou anules o teu pensamento sob a indução deles.

Raciocina e logica.

Teus irmãos, mais adiantados que são, convidam-te à reflexão e ao progresso.

Tem em conta que, acima de todos eles, conheces Jesus, que se sacrificou e apenas te pede que ames e ames, fazendo da tua vida um Evangelho de feitos para o teu e o bem da Humanidade da qual és membro.


Retirado do livro Momentos de Meditação; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Vitor e seu irmão

    Não era prevenção. A professora tinha o cuidado de tratar todos os seus alunos da mesmo maneira. Pelo menos, se esforçava para isto. Mas, como Vitor, ela sempre estava com um pé atrás. O Vitinho era um caso à parte.

    - Qual é a população do Brasil?

    Um aluno levantou a mão e leu a resposta que estava no livro.

    - Cento e vinte milhões.

    O Vitor levantou a mão. A professora sentiu um vazio na barriga. Lá vinha ele.

    - O que é, Vitinho?

    - Cento e vinte e um milhões.

    - Por que, Vitinho?

    - Minha mãe teve um filho esta semana.

    Uma risadinha correu pela sala, mas o Vitor ficou sério.

    Estava sempre sério.

    - Quantos filhos a sua mãe teve, Vitor?

    - Até agora?

    - Não, desta vez.

    - Um. Mas dos grandes.

    Outra risadinha, como marola na superfície de um lago.

    - Então não são cento e vinte e um milhões. São cento e vinte milhões e um.

    E a professora escreveu o número no quadro-negro.

    Depois apontou para o um no fim do número e disse:

    - Este aqui é o seu irmãozinho, Vitor.

    Depois, antes mesmo do Vitor falar, ela se deu conta de como aquele um parecia solitário, no fim de tantos zeros.

    - Coitadinho do meu ermão.

    - Irmão, Vitor. E é claro que este número não é exato. Tem gente nascendo e morrendo a todo momento...

    - Lá no hospital tava cheio de crianças. Será que já contaram?

    - Não sei, Vitor, eu...

    - Bota mais uns dois ou três pra acompanhá meu ermão, tia.

    Ela teve que rir junto com os outros.

    Você, hein, Vitinho? Com você eu tenho que ficar sempre com um pé atrás.

    - Cuidado pra não caí pra frente, tia.

    - Chega, Vitor!

    Outro caso era o da Alicinha, que se espantava com tudo. Era só a professora dizer, por exemplo, que a capital do Brasil era Brasília e a Alicinha arregalava os olhos e exclamava:

    - Brasília?!

    - É, Alice. Por quê?

    - Nada.

    Depois ficava com aquela cara de que só ela era certa no mundo de loucos, onde se viu a capital do Brasil ser Brasília, mas era melhor deixar pra lá.

    Um dia a professora disse que o Brasil tinha 8.000 km de costa marinha e ficou esperando a reação da Alicinha.

    Nada.

    - O Brasil é banhado pelo Oceano Atlântico.

    - Atlântico?!

- É, Alice.

- Desde quando?

- Desde sempre, Alice.

- Eu, hein?

"Eu, hein" era mortal. "Eu, hein" era de matar, mas a professora precisava se controlar. Entre o Vitinho e a Alicinha ainda acabaria louca.


Conto retirado do livro O Santinho, de Luis Fernando Veríssimo, da série Literatura em minha casa, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001.

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Santinho

    Lembro-me com clareza de todas as minhas professoras, mas me lembro de uma em particular. Ela se chamava Dona Ilka. Curioso: por que escrevi "Dona Ilka" e não Ilka? Talvez por medo de que ela se materializasse aqui do meu lado e exigisse o "Dona", onde se viu tratar a professora pelo primeiro nome, menino? No meu tempo ainda não se usava o "tia". Elas podiam ser boas e até maternais, mas decididamente não eram nossas tias. A Dona Ilka não era maternal. Era uma mulher pequena com um perfil de passarinho. Um pequeno passarinho loiro. E uma fera.

    Eu era um aluno "bem-comportado". Era um vagabundo, não aprendia nada, vivia distraído. Mas comportamento, 10. Por isto até hoje faço verdadeiras faxinas na memória, procurando embaixo de tudo e em todos os nichos a razão de ter sido, um dia, castigado pela Dona Ilka. Alguma eu devo ter feito, mas não consigo lembrar o quê. O fato é que fui  posto de castigo. Que consistia em ficar de pé num canto da sala de aula, com a cara virada para a parede. (Isto tudo, já dá para ver, foi mais ou menos lá pela Idade Média.) Mas o que eu nunca esqueci foi a Dona Ilka ter me chamado de "santinho do pau oco".

    Ser bem-comportado em aula não era uma decisão minha nem era nada de que me orgulhasse. Era só o meu temperamento. Mas a frase terrível da Dona Ilka sugeria que a minha boa conduta era uma simulação. Eu era um falso. Um santo falsificado! Não vou dizer que todas as minha dúvidas existenciais datem do epíteto da Dona Ilka, mas, depois disso, pelo resto da vida, não foram poucas as vezes em que um passarinho imaginário com perfil de professora pousou no meu ombro e me chamou de fingido. Os santinhos do pau oco passam a vida se questionando.

    Já outra professora quase destruiu para sempre  qualquer pretensão minha à originalidade literária. Era para fazer uma redação em aula sobre a ociosidade, e eu não tinha a menor ideia do que era ociosidade. Se a palavra fora mencionada em aula, tinha certamente sido num dos meus períodos de devaneio, em que o corpo ficava ali, mas a mente ia passear. E então, me achando formidável, fiz uma redação inteira sobre um aluno que precisa fazer uma redação sobre a ociosidade sem saber o que é isso, sua agonia e finalmente sua decisão de fazer uma redação sobre a ociosidade, etc. A professora chamou a atenção de toda a classe para a minha redação. Eu era um exemplo de quem acha que com esperteza pode-se deixar de estudar e por isto estava ganhando um zero exemplar. Só faltou me chamar de original do pau oco.

    Enfim, sobrevivi. No ginásio, todos os professores eram homens, mas não lembro de nenhuma marca que algum deles tenha deixado. As relações com as nossas pseudo-mães, no primário, eram muito mais profundas. As duas histórias que eu contei não têm nenhuma importância. Mas olha as cicatrizes.


Conto de Luis Fernando Veríssimo retirado do livro O Santinho, da série Literatura em minha casa, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001.

domingo, 9 de outubro de 2022

A Vaca Estrela

    - Ufa, que barra! - exclamou dona Izaltina, diretora da escola. - Não adianta pedir ajuda para a prefeitura que nada vem. A escola está caindo e ninguém toma providência!

    - Escola de pobre num dá voto, né, dona Izaltina? - consolou uma das mães que estava sempre ali ajudando no que podia.

    - Quando será que isso vai mudar?

    Enquanto a mudança não chegava, o jeito era ir empurrando com a barriga, tocando a escola como dava, com meia dúzia de tostões furados recolhidos dos pais. Quando chovia, chovia tanto dentro quanto fora da escola. Todas as noites, faltavam lâmpadas, que se queimavam com muita frequência por causa da má qualidade da instalação elétrica. Os sanitários viviam entupidos e malcheirosos. O mobiliário arrebentado, as salas sujas e cheias de buracos. E junto com tudo isso, havia ainda o problema do mato e da grama em volta da escola.

    - Qualquer dia desses ainda vai surgir uma onça do mato.

    E olha que era quase verdade. Se não aparecesse onça, cobra até que seria bem possível...

    Dona Izaltina, desolada, explicava:

    - O que vocês querem que eu faça? Já pedi umas dez vezes e a prefeitura não mandou ninguém para podar o mato e a grama, nem resposta aos pedidos. Só se eu pegar a foice...

    Mas a situação foi se agravando: o mato subindo, a grama crescendo e todo mundo reclamando. Foi então que a diretora resolveu marcar uma reunião com pais e professores para dar um jeito no problema do mato e da grama. Reunião marcada, sempre as mesmas pessoas presentes, ela explicou, explicou a pediu ajuda, soluções, sugestões.

    - Falar com a prefeitura...

    - Não adianta. Cansei de pedir.

    - Pagar alguém...

    - Com que dinheiro? A APM não tem um centavo em caixa!

    - Chamar os pais para cortar a grama...

    A reunião pegou fogo: a turma que concordava com a ideia só concordava, mas nenhum deles podia nem sabia cortar grama e mato. Do outro lado, uma turma grande de pais e professores não concordavam de jeito nenhum, pois achavam que era obrigação do governo manter a escola em ordem.

    A coisa foi por aí e já estava quase virando bate-boca quando o Luizinho da 3ª série levantou a mão, perdido no meio da gritaria, e tentou sugerir:

    - A vaca Estrela pode ajudar, dona Izaltina.

    - Como?

    - Um avião?

    - Cavar o quê?

    - Estrela? O que o céu tem a ver com isso?

    - Vaga? Tá faltando vaga?

    Só quando o Luizinho falou e explicou pela terceira vez que o pessoal prestou atenção no garoto.

    A vaca Estrela. Minha vaca. Ela pode ajudar.

    - Como uma vaca pode ajudar, Luizinho?

    - É simples. Ela come muita grama. Come até mato, tudo o que aparece. Come tanto que o pasto lá do quintal da minha casa já está quase no fim.

    - E daí, Luizinho?

    - E daí eu posso soltar a vaca Estrela no quintal da escola que ela vai comer tudo, a grama, o mato...

    Silêncio.

    Silêncio total na reunião.

    Dona Izaltina, completamente surpresa com a ideia maluca do Luizinho, só conseguiu perguntar:

    - Você tem certeza de que ela come tudo?

    Luizinho respondeu no ato:

    - Certeza, certezinha, certezona, dona Izaltina. Ela come tudo o que vê pela frente.

    Foi um alívio geral. A sugestão foi aceita na hora, mais depressa ainda quando o menino garantiu que a vaca era mais mansa do que vaquinha de presépio.

    - E quando você traz a vaca Estrela?

    - Agora mesmo, se a senhora quiser!

    - Pode ir buscar, agora, Luizinho. Vamos dar um jeito nessa grama.

    Dona Izaltina agradeceu a presença de todos e todos se retiraram igualmente aliviados e sossegados, prevendo o fim da grama e do mato.

    A Zequinha da secretaria tentou mudar a opinião e a decisão da diretora:

    - A senhora não acha perigoso? A senhora não vai pedir autorização para trazer a vaca?

    - Autorização coisa nenhuma! Quero ver alguma autoridade aparecer aqui e falar qualquer coisa que seja. Eu boto a vaca em cima do primeiro que aparecer.

    Menos de meia hora depois o Luizinho apareceu com a vaca Estrela. Era uma vaca magricela, malhada, com cara de mansa, jeito de morta-em-pé e apetite de esfomeada. Deu até a impressão de que seus olhos brilharam quando ela viu tanta grama e mato.

    O fato é que a vaca Estrela do Luizinho deu conta do recado: em menos de um mês, além de engordar muitos quilos, ela acabou com a grama e com o mato da escola.

    Só que... como nada é perfeito no mundo... a vaca resolveu um problema e foi deixando outro. Você já imaginou qual? Pois é... nesse quase um mês em que ficou comendo grama e o mato, a vaca Estrela foi deixando por dia dois enormes montes de cocô pelo quintal da escola, espalhando um cheiro forte...


Conto retirado do livro de Treze Contos de Edson Gabriel Garcia, da série Conte Outra Vez, Atual Editora, 14ª Edição, São Paulo, 1988.

sábado, 8 de outubro de 2022

Enfrentando o medo

    A tristeza que se te insinua, dominando, a pouco e pouco, as paisagens vivas da tua existência, é sinal de alarme a que deves dar atenção. Ela resulta dos fenômenos contemporâneos do medo e da ansiedade que vives na conjuntura evolutiva. Necessitas observá-los sob uma óptica profunda, de modo a erradicar-lhes as causas, liberando-te da sua constrição.

    O medo, até certo ponto, é uma reação natural ante o desconhecido e se expressa de variadas formas no cotidiano.

    A iminência de um acontecimento desagradável; a surpresa em uma situação que parece insustentável; a expectativa por uma resposta que talvez seja negativa fazem-se acompanhar de um receio normal, que se pode transformar em ansiedade controlada.

    O medo do escuro, de fantasmas, de tragédias revela vinculação com o período infantil do qual o indivíduo ainda não se libertou, e que deve superar através da afirmação pessoal advinda da lógica, da razão e do esforço para o amadurecimento emocional.

    Referimo-nos, no entanto, a este receio que aumenta e exorbita, levando a estado de quase paroxismo, em decorrência dos acontecimentos de pequena monta ou de expectativas que produzem taquicardias, sudorese abundante, colapso periférico, expressando o desequilíbrio psicológico.

    Passada a crise, advém os efeitos em forma de melancolia, de depressão, caminhando para  os estados mais graves.

    É nesta fase que o organismo se torna mais susceptível à instalação de doenças psicossomáticas, tais os distúrbios digestivos, as úlceras, os problemas cardíacos...

    A ansiedade pode manifestar-se de maneiras diversas e é responsável por muitos outros males que afetam a saúde e o bem-estar pessoal.

    A mais excelente terapia contra o medo e a ansiedade é a irrestrita confiança em Deus, que criou a vida com objetivos elevados.

    A dor não é de origem divina. Tem raízes na rebeldia humana. Quando aparece noutras espécies de seres, é fenômeno degenerativo dos corpos que devem passar por transformações inevitáveis.

    A confiança em deus, igualmente, deve ser racional e não uma herança psicológica, sem estruturação na experiência dos fatos que nos demonstram a Sua realidade.

    Compreendendo que a finalidade da vida é o bem, o homem dá-se conta de que é o responsável por tudo quanto lhe acontece, portanto, cabendo-lhe trabalhar com afã para produzir causas cujos resultados felizes o alcançarão mais tarde.

    Isto posto, adquire a certeza de que somente lhe acontece aquilo que é necessário para a sua evolução deste modo equipando-se de valores ético-morais para enfrentar as enfermidades, os dissabores, os insucessos, com coragem, eliminando o medo e vencendo a ansiedade patológica.

    Reflexiona com calma a respeito do medo e seus sequazes.

    Busca-lhes as causas e passa-as pelo crivo da razão, intentando penetrar nos seus fundamentos. Eles podem ter raízes em problemas morais e espirituais do passado.

    Sejam, porém, de que ordem forem, exercita-te, mentalmente, nos processos para a sua eliminação.

    Ora a Deus, entregando-te a Ele em atitude dinâmica, sem os prejuízos de uma beatitude inoperante.

    Dispõe-te a enfrentar qualquer situação com o pensamento otimista. Se o resultado for negativo, considera-o valioso pela experiência que te advirá.

    Medita com calma a respeito de tua existência, permitindo-te crescer emocionalmente.

    Libera-te da compressão da posse, treinando solidariedade e caridade.

    Recorda-te que nunca estás a sós; que ninguém vive em solidão, exceto aqueles que se encerram no egoísmo, na depressão... Mesmo estes, estão acompanhados por Espíritos que lhe compartem a casa mental, a emoção perturbada.

    Faze a experiência de te brindares com o bem e constatarás que medo e ansiedade alguma resistem ao amor que provém do Infinito Amor, assim libertando-te da tristeza e do sofrimento injustificado.


Texto retirado do livro Momentos de Iluminação; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª Edição, 2015.

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Mãe, me conta aquela...

    Pedrinho, de pijama, deitado, olhos procurando alguma coisa perdida no teto, pediu à mãe:

    - Mãe, me conta aquela...

    A mãe, deitada na cama ao lado, procurando descansar um pouco enquanto o filho se preparava para dormir, não teve jeito.

    - Aquela qual?

    - Aquela da Cinderela.

    - Ah!... Bem, era uma vez uma moça pobre e órfã que morava com a madrasta e suas três filhas.

    - Tudo isso, mãe? Tanto filho assim? Você não vive falando que ter mais de dois filhos em casa é loucura?!

    - ... ela era muito maltratada pela madrasta...

    - ... só porque queria, né, mãe? A senhora não vê na novela como as filhas brigam com as madrastas? Onde já se viu? Então, essa moça, além de órfã e pobre, era muito boba.

    - As coisas boas, as melhores roupas, a comida mais gostosa, tudo era para as filhas dela. O resto, o que sobrava, era para a enteada. Além disso, ela vivia sempre suja, por causa dos serviços de casa e do borralho do fogão...

    - Borralho, mãe? O que é isso?

    - Borralho é o resto das brasas e cinzas da lenha que queimou e fez fogo para preparar a comida.

    - Fogão de lenha, mãe?

    - É.

    - Mãe, isso não existe mais. As casas só têm fogão a gás.

    - Bem... um dia haveria um baile no reino para o príncipe escolher sua mulher. As filhas da madrasta encomendaram vestidos lindíssimos para as melhores costureiras do reino.

    - Elas não compraram vestido pronto nas lojas, mãe?

    - Não... mandaram fazer. No dia do baile, as três moças enfeitaram-se todas, mas mesmo assim, como eram horrorosas, continuaram feias. Na hora de sair para o baile, olharam com ar de pouco caso para a irmã de criação.

    - E ela não falou nada, mãe?

    - Não, filho. Foi para o canto da cozinha, perto do borralho, onde era seu lugar.

    - Puxa, mãe, que moça bola murcha! Tava esperando cair algum presente do céu?

    - Daí... de repente, apareceu sua fada madrinha e presenteou-a com um vestido lindíssimo, sapatos de cristal e uma carruagem puxada por seis cavalos brancos.

    - Pô, mãe, acho que você está por fora da história. Na verdade, a moça não tinha fada madrinha, coisa nenhuma. Ela foi mesmo é quebrar o maior pau com o pai dela e disse pro velho: "Olha aqui, pai, ou você me dá uns trocos para eu comprar uma roupa e ir no baile...". Certo, mãe?

    A mãe concordou:

    - É...

    - E ela deu mais um aperto no pai: "Que droga de pai é você, que deixa a madrasta fazer o que quer com sua filha!" O pai não teve outra saída senão arrumar mais dinheiro pra filha comprar suas coisas. Como ela era mais bonita, foi ao baile e acabou arrumando um namorado. Certo, mãe?

    A mãe continuava ouvindo:

    - ...

    - Depois do baile, suas irmãs comentaram: "Já era hora de arrumar namorado, pois está ficando velha!" Mas esse namoro não deu certo porque o cara era muito mandão e queria mandar um tudo na vida da pobre Cinderela.

    Pedrinho fez uma pausa, satisfeito.

    - Gostou da história, mãe?

        A mãe não respondeu. Pedrinho tornou a perguntar:

- Gostou, mãe?

A mãe não respondeu, claro. Tinha dormido gostosamente na cama ao lado. Pedrinho ajeitou-se também na cama e se preparou para mais uma noite de sono e sonhos. Como em todas as outras, certamente as fadas, bruxas, duendes, cinderelas e mágicos estariam fazendo parte da sua noite.


Conto de Edson Gabriel Garcia retirado do livro Treze Contos, da série Conte Outra Vez, Atual Editora, 14ª Edição, São Paulo, 1988.

Um Cofre Valioso

     Juca e Joca eram dois irmãos. Tinham lá suas diferenças, pois, afinal, cada um é cada um e ninguém é igualzinho a ninguém. No caso dos dois, um era esperto e o outro também.

    O avô deles era um sujeito bigodudo, que passou a vida inteira juntando dinheiro para comprar coisas. Por isso, quando quis dar um presente para os netos, a única coisa que apareceu na sua memória foi um cofre. Vai daí que, um dia, cada um ganhou do avô um cofre, para guardar seu rico dinheirinho ganhado e juntado.

    - Lugar de dinheiro é no cofre! - disse solenemente o avô ao entregar os presentes mal e porcamente embrulhados.

    O cofre de Juca era um porquinho barrigudo, cara de comilão. Ele pegou o porquinho-cofre e correu para o quarto. O cofre de Joca era um elefante, também barrigudo, cara de morto de fome. Ele também correu para o quarto, após ter pego seu cofre-elefante.

    O tempo foi passando e com ele coisas diferentes foram acontecendo. O cofre do Joca, pobre elefante barrigudo e morto de fome, acabou quebrado e jogado num canto qualquer da casa. O cofre do Juca, belo porquinho comilão, tinha uma fome insaciável e estava sempre a querer mais e mais dinheiro. Barrigudinho, o porquinho, cada vez mais cheio, estava sempre na estante. O dinheiro do Joca ia no sorvete, no gibi, no doce... O dinheiro do Juca... ah! esse ninguém via, ninguém sabia.

    Certa vez, Joca apareceu em casa com um álbum de figurinhas de super-heróis completinho. Não faltava nenhunzinho, nem mesmo He Man. Valia uma nota, completinho daquele jeito. Juca, logo que viu o álbum apresentado pelo irmão, encheu os olhos de vontade e foi logo negociando:

    - Quer vender esse álbum pra mim?

    Joca fez cara de importante, dono de ricos tesouros, e respondeu, depois de fingir que não entendera a pergunta:

    - O que você disse?

    Juca, sem perder tempo, foi de novo propondo:

    - Quer vender o álbum?

    - Bem... quanto você me dá por ele?

    Juca pensou, fez cálculos, meteu a mão no bolso e mandou:

    - Te dou duzentos cruzados.

    Joca esbravejou:

    - Você está brincando! Duzentos pelo Super-Homem, pelo Homem-Aranha, pelo He Man... Sabe quando? Nunquinha!

    Ele sumiu com o álbum e, durante alguns dias, os dois não falaram mais sobre o rico tesouro. Até que o Joca, sabe-se lá por quê, propôs:

    - Encontrei um jeito de vender o álbum pra você.

    - Que jeito? - perguntou o Juca, todo interessado na proposta do irmão.

    - Quero o seu cofrinho. Você me dá o cofre-porquinho e está certo.

    Juca espantou-se:

    O meu cofrinho? Mas ele...

    Joca cortou a resposta decidido.

    - É pegar ou largar!

    - Mas o meu cofrinho...

    - É pegar ou largar!

    - Mas o meu cofrinho... ele não...

    - É pegar ou largar!

    - Está bem... eu aceito.

    Joca ficou com o cofrinho e Juca com o álbum. Apenas alguns minutinhos, até Joca voltar gritando e esbravejando:

    - Você me enganou! Você não disse que seu cofrinho estava cheio de palitos de sorvete em vez de dinheiro! - berrou Joca por tudo quanto foi buraco do corpo.

    - Você não me deixou explicar, ora bolas! Eu tentei falar e você não me deixou.

    - Quero meu álbum de volta.

    - Nada disso! Negócio é negócio. Negócio feito não pode ser desfeito.

    Eles ainda trocaram argumentos, palavrões e explicações por alguns momentos, mas depois cada qual seguiu seu caminho.

    A história não terminou aqui: pois não é que dentro do cofrinho havia um palito de sorvete premiado!? E o prêmio... bem, o prêmio... o prêmio era um livro ilustrado, cheinho de fotografias e desenhos de super-heroínas: Mulher Maravilha, Batgirl, Poderosa Isis, She-Ra...

    Sabe o que aconteceu depois? Bem... isso é história para outro história.


Conto de Edson Gabriel Garcia retirado do livro Treze Contos, série Conte Outra Vez, Atual Editora, São Paulo, 1988, 14ª Edição.