terça-feira, 18 de outubro de 2022

Ideal de Moça

    Sua mãe tinha sido muito pobrezinha - cozinheira - veterana da cozinha do Dr. Pacheco. Fogão e tacho, toda sorte de comida, toda espécie de doces, jantares e almoços e aniversários e comidas "foradoras" e hóspedes. A roda viva da cozinha. Nada de ajantarados, como hoje, e cozinheiras na folga. Essas coisas só vieram, muito mais tarde, quando Sá Riqueta já tinha morrido. Tudo ela fazia pela sua filha Totinha, que já estava na escola. Aí, quando ficou doente, ruim mesmo, pediu à comadre, mulher do Dr. Pacheco, madrinha da menina, que tomasse conta da afilhada e não a tirasse da escola.

    Sá Riqueta teve seu enterro de pobre; gente pobre acompanhando; sepultura rasa no cemitério. Mas a madrinha foi boa e passou a menina para o Colégio e ali conseguiu anos e mais anos.

    Moça já, voltou com sua pouca sabedoria para casa dos padrinhos. Foi aprender serviço de casa, à espera do casamento. Tinha seu fiozinho de voz bem aproveitado pelo colégio. Aprendeu um pouco de música e os cânticos da Capela. Fazia parte do coro. Deixando o colégio, passou a cantar no coro da Igreja, sempre pronta, quieta, modesta Filha de Maria, com seu vestido branco, sua fita azul, seu livro e seu terço branco. Efetiva no coro, na mesa da comunhão. Nenhuma saliência de sua pessoa - os anos de colégio deram-lhe um jeito de noviça, com seu vestido largo, suas mangas compridas.

    Veio o casamento, um dia um olhou para ela: precisava de uma mulher. Falou com o padrinho. Esse perguntou se ela queria casar. Ela disse que sim, sem saber, sem conhecer quase o homem. Aquela vida presa, sujeita... Teria sua casa, pensou, o marido... Seria mulher casada. E casou.

    Teve filhos e sem mais nem menos o marido a deixou. Trabalhou, pelejou, lavou roupa; limpava tripa, barrigada no rio. Ia vivendo, desejando fazer, como fez a Mãe, dar leitura aos filhos. Sempre humilde, pequenina, ocupando pouco lugar na vida da cidadezinha. Já não estava no coro. Só moças ali. Nunca pediu nada. Nunca reclamou. Só aquele desejo brando, constante, de que os filhos tivessem leitura e aquela sombra do rio para casa, da casa para o rio, com sua bacia de roupa na porta da casa. O ferro de brasa, passando a roupa lavada.

    Passava sempre, pela sua casa, cumprimentava, parava, puxava conversa. Conversinha curta, que ela fazia sem largar o ferro. Um dia entrei. Sentei. E quis conhecer aquele espírito fechado, naquela aparência igual, conformada todos os dias. Não haveria ali uma aspiração, um plano, um desejo, um estímulo, uma queixa, uma esperança?

    Dei tempo e dei linha.

    Um dia, conversa vai, conversa vem, perguntei:

    - A senhora é bem feliz da vida, tão conformada, trabalhando sempre. Tem filhas já na escola e vai realizando seus desejos...

    Ela suspendeu o ferro.

    - Eu só tive um desejo na vida, que nunca foi realizado.

    - Qual foi, Totinha? Me conte esse segredo.

    - Eu conto, mas a senhora não vai rir de mim.

    - Não, de jeito nenhum.

    - Meu maior desejo foi quando eu era moça nova, Filha de Maria, e cantava no coro da Igreja. A senhora não queria saber que vontade eu tinha de ter um desmaio na Igreja e descer do coro carregada pelos colegas... A coisa que eu achei mais bonita foi um dia que uma das moças teve vertigem e desceu carregada de lá...

    - Mas você podia inventar - disse eu.

    - Não, eu não tinha coragem de mentir. Eu queria era ter um desmaio de verdade...


Crônica de Cora Coralina retirada do livro O Tesouro da Casa Velha, Global Editora, seleção de Dalila Teles Veras, São Paulo, 1989.

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