quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Vitor e seu irmão

    Não era prevenção. A professora tinha o cuidado de tratar todos os seus alunos da mesmo maneira. Pelo menos, se esforçava para isto. Mas, como Vitor, ela sempre estava com um pé atrás. O Vitinho era um caso à parte.

    - Qual é a população do Brasil?

    Um aluno levantou a mão e leu a resposta que estava no livro.

    - Cento e vinte milhões.

    O Vitor levantou a mão. A professora sentiu um vazio na barriga. Lá vinha ele.

    - O que é, Vitinho?

    - Cento e vinte e um milhões.

    - Por que, Vitinho?

    - Minha mãe teve um filho esta semana.

    Uma risadinha correu pela sala, mas o Vitor ficou sério.

    Estava sempre sério.

    - Quantos filhos a sua mãe teve, Vitor?

    - Até agora?

    - Não, desta vez.

    - Um. Mas dos grandes.

    Outra risadinha, como marola na superfície de um lago.

    - Então não são cento e vinte e um milhões. São cento e vinte milhões e um.

    E a professora escreveu o número no quadro-negro.

    Depois apontou para o um no fim do número e disse:

    - Este aqui é o seu irmãozinho, Vitor.

    Depois, antes mesmo do Vitor falar, ela se deu conta de como aquele um parecia solitário, no fim de tantos zeros.

    - Coitadinho do meu ermão.

    - Irmão, Vitor. E é claro que este número não é exato. Tem gente nascendo e morrendo a todo momento...

    - Lá no hospital tava cheio de crianças. Será que já contaram?

    - Não sei, Vitor, eu...

    - Bota mais uns dois ou três pra acompanhá meu ermão, tia.

    Ela teve que rir junto com os outros.

    Você, hein, Vitinho? Com você eu tenho que ficar sempre com um pé atrás.

    - Cuidado pra não caí pra frente, tia.

    - Chega, Vitor!

    Outro caso era o da Alicinha, que se espantava com tudo. Era só a professora dizer, por exemplo, que a capital do Brasil era Brasília e a Alicinha arregalava os olhos e exclamava:

    - Brasília?!

    - É, Alice. Por quê?

    - Nada.

    Depois ficava com aquela cara de que só ela era certa no mundo de loucos, onde se viu a capital do Brasil ser Brasília, mas era melhor deixar pra lá.

    Um dia a professora disse que o Brasil tinha 8.000 km de costa marinha e ficou esperando a reação da Alicinha.

    Nada.

    - O Brasil é banhado pelo Oceano Atlântico.

    - Atlântico?!

- É, Alice.

- Desde quando?

- Desde sempre, Alice.

- Eu, hein?

"Eu, hein" era mortal. "Eu, hein" era de matar, mas a professora precisava se controlar. Entre o Vitinho e a Alicinha ainda acabaria louca.


Conto retirado do livro O Santinho, de Luis Fernando Veríssimo, da série Literatura em minha casa, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001.

Nenhum comentário:

Postar um comentário