O espetáculo começa quando eles chegam, aí por volta de duas e meia das tardes de sábado. O campo tem pouco menos de 50 metros de comprimento, cabendo seis de cada lado, um louco no gol, dois zagueiros, dois na frente e um armando pelo meio. Olhos luzindo, eles calçam os sapatos de tênis ou basquete. Três ou quatro senhores, sempre suspeitos, confabulam a um canto, escalando, conforme a frequência, três ou quatro times para o torneio vesperal.
- O meu está uma droga.
- O seu, perto do meu, é um escrete.
- E o meu! Nelson e Mauricinho juntos! Essa não!
- O meu está mais ou menos, mas só tem jogador de defesa.
Logo depois do par-ou-ímpar é preciso recondicionar os times. Todos estão descontentes ou fingem descontentamento, até que um deles se abraça com a bola e, gesticulando com o outro braço, brada:
- Vamos começar, gente! Anda escurecendo cedo.
Todos resmungam, mas acabam concordando, e há uma aparência de calma. Antes que se dê a saída, são indispensáveis mais duas brigas: a primeira, dentro de cada time, pois ninguém quer começar no gol; a segunda, envolvendo todos, é sobre o juiz.
- Se o Zé Catimba apitar, eu não jogo.
- Por quê?
- Porque ele tem cisma comigo.
- O Lúcio não veio hoje?
- Está em casa tocando trombone.
- Apita você, Armandinho.
- Nem por vinte mil cruzeiros.
- E você, Tavares?
- Só apito se ninguém reclamar.
- Prometo que do meu lado ninguém reclama.
- Eu nunca reclamo mesmo.
Prometem, mas não cumprem. Todos reclamam de tudo e de todos, do juiz que não viu mão, do adversário que cometeu obstrução, você que me trancou pelas costas, do companheiro que não passou, essa nem o Garrincha tenta fazer, do goleiro que papou um frango.
- Você não viu que eu não consegui matar a bola?
- Vi: você está sem revólver.
As partidas se sucedem, a gana de vencer é feroz, o suor escorre, os corações disparam, há cruentos suspiros de fadiga, as mãos esfregam os rins quando a bola vai fora, as botinadas vão e vêm, recíprocas. Mas não esmorecem, é preciso não esmorecer, pois aqui ninguém mais é criança.
Mas aqui somos todos uma crianças, crianças de 30 e poucos, de 30 e muitos, de 40, os mais velhos aí pelos 50. Crianças numa pelado crepuscular, que pode ser a última de nossa vida, o cemitério, a orfandade de nossos filhos. Mas é por isso mesmo que não podemos perder, é por isso mesmo que fazemos das tripas coração, é atrás duma nesga da infância que andamos a correr, é a maturidade irremediável que estamos tentando driblar, é contra o tempo que perseguimos o gol.
Visto de fora, sobretudo por uma pessoa que já arqueje ao correr para pegar o ônibus, nosso espetáculo pode ser triste e ridículo. De dentro, dou minha palavra de honra, trata-se duma vivência bonita e alegre. Um viciado em leituras psicanalíticas diria que estamos querendo provar a nós mesmo que... ainda não ficamos velhos. E diria a verdade. Ignorando no entanto que, de antemão, já sabemos derrotados; aí reside uma rejubilação de músculos e espírito que vai tangenciar a própria dramaticidade do tempo e a incapacidade humana de revertê-lo.
Mais tarde, tomando uma cerveja, os cavalões estão vermelhos por fora e purificados por dentro. Pudicamente, um dirá que a pelada ajuda a manter a forma; outro alega que deseja perder um pouco de peso; outro cinicamente acha que não há nada como esse exercício para fazer boca para uma cervejinha estupidamente gelada.
Mas no fundo, em segredo, sabem todos que a pelada é boa porque dar um chute bonito faz um bem extraordinário à alma do homem. Sobretudo se o homem é brasileiro.
Crônica de Paulo Mendes Campos retirado do livro As Eternas Coincidências, da série Literatura em minha casa - Conto & Crônica - Volume 2, Editora Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2003.
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