quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Mãe, me conta aquela...

    Pedrinho, de pijama, deitado, olhos procurando alguma coisa perdida no teto, pediu à mãe:

    - Mãe, me conta aquela...

    A mãe, deitada na cama ao lado, procurando descansar um pouco enquanto o filho se preparava para dormir, não teve jeito.

    - Aquela qual?

    - Aquela da Cinderela.

    - Ah!... Bem, era uma vez uma moça pobre e órfã que morava com a madrasta e suas três filhas.

    - Tudo isso, mãe? Tanto filho assim? Você não vive falando que ter mais de dois filhos em casa é loucura?!

    - ... ela era muito maltratada pela madrasta...

    - ... só porque queria, né, mãe? A senhora não vê na novela como as filhas brigam com as madrastas? Onde já se viu? Então, essa moça, além de órfã e pobre, era muito boba.

    - As coisas boas, as melhores roupas, a comida mais gostosa, tudo era para as filhas dela. O resto, o que sobrava, era para a enteada. Além disso, ela vivia sempre suja, por causa dos serviços de casa e do borralho do fogão...

    - Borralho, mãe? O que é isso?

    - Borralho é o resto das brasas e cinzas da lenha que queimou e fez fogo para preparar a comida.

    - Fogão de lenha, mãe?

    - É.

    - Mãe, isso não existe mais. As casas só têm fogão a gás.

    - Bem... um dia haveria um baile no reino para o príncipe escolher sua mulher. As filhas da madrasta encomendaram vestidos lindíssimos para as melhores costureiras do reino.

    - Elas não compraram vestido pronto nas lojas, mãe?

    - Não... mandaram fazer. No dia do baile, as três moças enfeitaram-se todas, mas mesmo assim, como eram horrorosas, continuaram feias. Na hora de sair para o baile, olharam com ar de pouco caso para a irmã de criação.

    - E ela não falou nada, mãe?

    - Não, filho. Foi para o canto da cozinha, perto do borralho, onde era seu lugar.

    - Puxa, mãe, que moça bola murcha! Tava esperando cair algum presente do céu?

    - Daí... de repente, apareceu sua fada madrinha e presenteou-a com um vestido lindíssimo, sapatos de cristal e uma carruagem puxada por seis cavalos brancos.

    - Pô, mãe, acho que você está por fora da história. Na verdade, a moça não tinha fada madrinha, coisa nenhuma. Ela foi mesmo é quebrar o maior pau com o pai dela e disse pro velho: "Olha aqui, pai, ou você me dá uns trocos para eu comprar uma roupa e ir no baile...". Certo, mãe?

    A mãe concordou:

    - É...

    - E ela deu mais um aperto no pai: "Que droga de pai é você, que deixa a madrasta fazer o que quer com sua filha!" O pai não teve outra saída senão arrumar mais dinheiro pra filha comprar suas coisas. Como ela era mais bonita, foi ao baile e acabou arrumando um namorado. Certo, mãe?

    A mãe continuava ouvindo:

    - ...

    - Depois do baile, suas irmãs comentaram: "Já era hora de arrumar namorado, pois está ficando velha!" Mas esse namoro não deu certo porque o cara era muito mandão e queria mandar um tudo na vida da pobre Cinderela.

    Pedrinho fez uma pausa, satisfeito.

    - Gostou da história, mãe?

        A mãe não respondeu. Pedrinho tornou a perguntar:

- Gostou, mãe?

A mãe não respondeu, claro. Tinha dormido gostosamente na cama ao lado. Pedrinho ajeitou-se também na cama e se preparou para mais uma noite de sono e sonhos. Como em todas as outras, certamente as fadas, bruxas, duendes, cinderelas e mágicos estariam fazendo parte da sua noite.


Conto de Edson Gabriel Garcia retirado do livro Treze Contos, da série Conte Outra Vez, Atual Editora, 14ª Edição, São Paulo, 1988.

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