quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Os embalos de uma dança muito brasileira

 Por volta de 1910, começaram a aparecer discos na Europa com a palavra 'mattschiche' acompanhando os títulos das músicas, para definir seu ritmo.


A palavra, cuja grafia costumava variar um pouco (mattcheche, mattchichi, etc), tentava traduzir foneticamente o som de maxixe, que batizava um determinado tipo de música e dança que começou a existir aqui pelo menos desde 1880.

Como gênero musical, o maxixe nasceu quando músicos populares passaram a tocar polca, que era de origem europeia e sempre executada no piano (e restrita aos salões imperiais da alta sociedade carioca), com outros instrumentos, como o violão, a viola e a flauta. Aquela nova forma de tocar polca logo se misturou a outros gêneros, como o lundu e o chorinho, a  habanera cubana e o tango argentino, presentes no repertório de grupos que animavam bailes - e tal tipo de mistura viria a ser dançada com requebrados, movimentos exagerados e sensuais, semelhantes aos do batuque, do cateretê e da embolada, que chegaram com os escravos e eram consideradas "danças pecaminosas" pelos europeus porque "envolviam o contato de umbigos".

A origem do nome (na época, grafado com 'ch') é obscura: talvez tenha sido batizado machiche porque essa palavra designava coisas de baixo valor, atestando sua gênese entre as pessoas pobres daquele quase fim de século; já Heitor Villa-Lobos (1887-1959) divulgou uma versão segundo a qual a dança foi inventada na sociedade Estudantes de Heidelberg por alguém assim apelidado. Em seu livro Maxixe - A Dança Excomungada, de 1974, Jota Efegê desmente essa versão. Segundo esse autor, a primeira vez que o nome apareceu escrito com 'x' foi numa quadrinha, em fevereiro de 1883, no Jornal do Comércio, numa publicidade do Club dos Democráticos, anunciando um baile de carnaval:

Cessa tudo quanto a musa antiga canta

Que do castelo este brado se alevanta

Caia tudo no maxixe, na folgança

Que com isso dareis gosto a Sancho Pança


O MAXIXE NO TEATRO DE REVISTA

Até então, o maxixe era somente uma dança que rapidamente se tornou sensação, imitada nos salões de baile com seus passos de nomes nada sofisticados: carrapeta, balão, parafuso, corta-capim, saca-rolha. A criação da música além da dança se deu seguindo "a forma malandra e exagerada de dançar a polca-tango que acabaria por fazer surgir o maxixe como gênero musical autônomo", nas palavras do crítico e historiador José Ramos Tinhorão, que cita o maestro César Guerra-Peixe (1914-1993) e seu artigo 'Variações Sobre o Maxixe' para descrever como aconteceu o processo: "a melodia contrapontada pela baixaria (a exageração dos baixos mesmo nos instrumentos de tessitura grave das bandas), passagens melódicas à guisa de contraponto ou variações e, em alguns casos, baixaria tomando importância capital".

Somente depois de a dança ter se caracterizado plenamente é que começou o registro de músicas com o nome maxixe - as primeiras partituras com tal designação surgiram em 1902/1903. Vale lembrar que o grande compositor e pianista Ernesto Nazareth (1863-1934) recusava o termo para designar suas obras, preferindo o nome 'tango brasileiro' (ou 'tanguinho') - quem sabe para não vincular sua música a uma origem marginal.

O teatro musicado logo se apropriou da nova mania, e as peças passaram a apresentar, quase todas, quadros em que o maxixe era tocado e dançado, como na revista República, de Arthur Azevedo (1885-1908), que popularizou 'As Laranjas da Sabina', o primeiro sucesso do maxixe; 'Maxixe Aristocrático', de 1904, de José Nunes, ficou famoso apresentado pela dupla Papa Delgado e Marzullo na revista Cá e Lá. A primeira composição gravada como maxixe foi 'Sempre Contigo' lançada pela Banda da Casa Edson, sem data (talvez 1902) e de autor desconhecido.


PARA EXPORTAÇÃO

Em 1909, o dançarino e compositor Antônio Lopes de Amorim, de nome artístico Duque, viajou para a Europa e se fixou em Paris. Pouco depois, o tango argentino, como dança, tornou-se a maior sensação nos salões da Europa, e Amorim, já conhecido como Monsieur Duque, resolveu mostrar le tango brésilien, o maxixe, em1912. Alguns editores começaram a promover o maxixe como uma forma renovada de tango; orquestras e bandas passaram a gravar maxixe para os fonógrafos - assim, de repente, o gênero se tornou uma febre. Da Europa, o maxixe seguiu para os EUA, onde foi muito bem acolhido. Em 1914, o dançarino americano Maurice Movet (1888-1927) escreveu: "O maxixe brasileiro pode ser dançado com qualquer acompanhamento musical de passo duplo, enquanto que o tango somente pode ser dançado com sua própria música. O maxixe é peculiarmente adaptado ao temperamento americano".

Os passos do maxixe a partir de sua exportação foram estilizados e coreografados. Os manuais de dança, que ensinavam as danças sociais, passaram a incluir o estilo. Vernon e Irene Castle, o casal de dançarinos mais famosos da época, adotou o maxixe, como atesta um filme mudo de 1915, que mostra os Castle exibindo a dança - o mesmo ocorre na cinebiografia The Story of Vernon and Irene Castle, de 1939, com Fred Astaire e Ginger Rogers representando o casal dançando 'Dengozo', de Ernesto Nazareth.

Passada a mania do maxixe, o gênero ainda foi dançado nos EUA e na Europa até o começo dos anos 1920. Houve várias tentativas frustradas de "substituir" o maxixe pelo samba, inclusive pelo próprio Monsieur Duque. Mas o samba é o único dos gêneros musicais hegemônicos das Américas que jamais ultrapassou fronteiras, nem como dança.

No Brasil, o maxixe resistiu com sucesso até o final dos anos 1920, tendo entre seus cultores principais os compositores Irineu de Almeida, Sebastião Cyrino, Sinhô, Romeu Silva, Pixinguinha, Pedro de Sá Pereira e J. Bicudo. A partir de então, estava destinado a reaparecer somente em filmes e telenovelas 'de época'.


Texto de René Ferri retirado da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, número 16 Escala Educacional, São Paulo, 2010.

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

O Irresistível Baião

 Uma música lançada em 1946 possuía um ritmo binário, buliçoso, contagiante, quase impossível de resistir - no título, o nome do ritmo "baião", e a letra, muito simples, prometia ensinar a dançar 'quem quiser aprender'.


O baião realmente revolucionou - foi a primeira grande sacudida que a música brasileira urbana tomou da música regional. O lançamento do baião foi cuidadosamente urdido pelo compositor e radialista Humberto Cavalcanti Teixeira (1915-1979), um advogado cearense que se dedicou inteiramente à música, mesmo no seu mandato político posterior, quando foi eleito deputado federal. São de Teixeira as leis originais brasileiras de proteção ao direito autoral na música - e é dele também a autoria da chamada 'Lei Humberto Teixeira', que financiou excursões de artistas brasileiros ao redor do mundo em missões de divulgação de nossa cultura.


LUIZ GONZAGA

Modesto, Teixeira creditou o sucesso do lançamento do baião ao seu parceiro Luiz Gonzaga (1912-1989), então um cantor/acordeonista anônimo, pernambucano de Exu, que já vivia no Rio de Janeiro há alguns anos, tocando em shows de rádio e em casas noturnas. Num lampejo, Gonzaga decidiu incluir no seu repertório variado de polcas, serestas, valsas, sambas e foxes algumas "coisinhas" da música sertaneja nordestina. O encontro de Teixeira e Gonzaga, no Rio de Janeiro, resultou numa das parcerias mais profícuas da história da música popular brasileira.

O sucesso do baião foi imediato e avassalador. A fórmula simplificada de tocá-lo, com três instrumentos - acordeão (sanfona), zabumba e triângulo - isto, sim, uma invenção de Luiz Gonzaga, favoreceu o aparecimento de centenas de 'trios nordestinos' em todo o País, grupos musicais que tocavam baião e similares, como coco, embolada, xote, toada. A lembrar que, na época, a cultura do Nordeste e a sua música, inclusive, eram completamente desconhecidas no eixo Rio-São Paulo, o que reforçava a aceitação do baião pelo viés "exótico". Desconhecíamos completamente o baião, que o folclorista Luis Câmara Cascudo (1898-1986) associa aos termos 'baiano' e 'rojão' - sendo 'baiano', no caso, uma dança popular nordestina (derivada do verbo 'baiar', forma popular de bailar) e o segundo o pequeno trecho musical executado pelas violas no intervalo dos desafios da cantoria. O baião, que todo o resto do Brasil começaria a conhecer apenas em 1946, já existia no Nordeste desde o século anterior.


COQUELUCHE NACIONAL

Ninguém ficou indiferente ao baião, pois os artistas de São Paulo e do Rio de renome aderiram em massa à "coqueluche nacional", conforme foi chamado pela influente revista carioca Radar, em 1949. Entre os mais célebres, Carmen Miranda, Isaura Garcia, Marlene, Emilinha Borba, Dircinha Batista, Ademilde Fonseca, Stelinha Egg, Ivon Curi e Dalva de Oliveira gravaram baião. A partir de 1950, Carmélia Alves foi aclamada 'Rainha do Baião'; a revelação Claudete Soares passou a se apresentar como 'A Princesinha do Baião'. A verdade é que, até pelos menos 1957, a música brasileira e tudo mais que se referia a ela giraram principalmente em torno do baião: os sucesso radiofônicos, as edições em partitura, a produção industrial de discos, o rendimento das editoras e das gravadoras de discos.

O sopro de modernidade da bossa nova e da 'Era Juscelino' colocaram o baião, seus intérpretes e compositores num ostracismo tal que o próprio Luiz Gonzaga, cujo epíteto era 'O Rei do Baião', desapareceu por completo, só vindo ressurgir em meados dos anos 1970, alçado por uma nova geração de músicos e compositores que o veneravam como mestre.


RECONHECIMENTO

Graças a cantores como Gal Costa, Gilberto Gil e Alceu Valença, Luiz Gonzaga ganhou um merecido reconhecimento do público brasileiro nascido após o baião mergulhar no esquecimento. Todos passamos a ligar o nome de Gonzaga ao clássico 'Asa Branca', mas o parceiro Humberto Teixeira teria de esperar mais um bom tempo pelo reconhecimento. Ele morreria antes de sua memória começar a ser recuperada, em 2006 com os livros 'O Cancioneiro Humberto Teixeira', em 2008 com o cine-documentário 'O Homem Que Engarrafava Nuvens' - projetos com efetiva participação de Denise Dumont, a atriz, filha única de Teixeira, nas pesquisas e na produção.


BAIÃO INTERNACIONAL

Já no começo dos anos 1950, o baião se internacionalizou. 'Delicado', de Waldir Azevedo, recebeu diversas regravações nos EUA e Europa; não faltaram imitações: no filme italiano 'Arroz Amargo' (1951), Silvana Mangano imita Carmélia Alves em 'O Baião de Ana'; na verdade uma conga cubana, com um "baião" no título, para aproveitar a onda.

Em New York, por volta de 1956, Ahmeth Ertegun queria revitalizar sua gravadora Atlantic, especializada em jazz, existente desde 1948; chamou seu irmão Neshui, que transformou a Atlantic na Meca da moderna música black urbana - segundo uma história boa demais para não ser verdade, os Ertegun se reuniram com seu staff de produtores e lhes deram uma pilha de discos brasileiros de baião, pedindo que tirassem de lá algo que desse personalidade ao som da nova Atlantic. E, então, começaram a ser editados os discos de Ruth Brown, LaVern Baker, Drifters, Coasters, Ray Charles, Ben E. King, etc, produzidos por Ahmet Ertegun, Jerry Leiber & Mike Stoller, Phil Spector, Jerry Wexler, com o inequívoco apelo do ritmo do baião bem misturado ao rhythm & blues. Em Los Angeles, um compositor que se tornaria um dos mais importantes da história, Burt Bacharach, temperava de baião seu som pop, uma fórmula que ele iria seguir, com enorme sucesso, nas décadas seguintes. O som da Atlantic e de Bacharach seria uma influência decisiva em tod rock e pop produzido no mundo do princípio dos anos 1960 em diante.

Lamentavelmente, os mestres do baião não souberam aproveitar a viagem do ritmo pelo mundo. Sequer tiveram ânimo para reclamar a autoria - erros que os mentores e feitores da bossa nova não quiseram repetir.


Texto de René Ferri retirado da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, número 17, Escala Educacional, São Paulo, 2008.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

A origem dos nomes dos meses e do ano bissexto

 As mudanças nos calendários ao longo da história


No calendário de Rômulo, o primeiro rei de Roma e seu fundador, o ano começava em março e tinha dez meses, cujos nomes primitivos eram Martius (em homenagem ao deus da guerra, Marte), Aprilis (nome relacionado a Apros ou Afros, designativo de Afrodite, nome grego da deusa Vênus, a quem abril* era dedicado); Majus (em homenagem à deusa Maia, uma das Atlântidas, amada de Júpiter e mãe de Mercúrio), Junius (em homenagem à deusa Juno, equivalente à deusa Hera dos gregos), Quintilis, Sextilis, September, October, November e December. A relação de aprilis com aperire (abrir) surgiu posteriormente, na vigência do calendário de Numa Pompílio, por ser abril o mês da primavera, em que "todas as coisas se abrem".

Numa Pompílio (circa 715-circa 672 a.C.), sucessor de Rômulo, querendo igualar a contagem do tempo romano à dos gregos e fenícios, reformou o calendário de Rômulo, instituindo os meses Januarius (em homenagem ao deus Janus, protetor dos lares) e Februarius, do latim februus, adjetivo de primeira classe que significa "o que purifica, purificador". No mês de fevereiro, realizavam-se cerimônias de purificação, como sacrifícios expiatórios e os ritos de purificação chamados "lupercálias"**. As lupercálias eram festas em homenagem a Pã, realizadas no dia 15 de fevereiro, em que jovens saíam nus da gruta Lupercália flagelando os transeuntes com um cinto de pele de cabra chamado também lupercal***, considerado capaz de eliminar a esterilidade e provocar partos felizes.


HOMENAGENS

Os meses Quintilis e Sextilis foram rebatizados com os nome de julho e agosto, em homenagem aos dois primeiros dos doze césares: Julius (Júlio César) e Augustus. Para que julho e agosto tivessem o mesmo número de dias, subtraíram-se dois dias do mês de fevereiro. Repare que as festas de junho são juninas (de Juno), mas as festas de julho são julianas (de Júlio), e não "julhinas" ou "julinas", nomes que não existem.

O calendário romano tinha três datas com nome próprio: Kalendae ou Calendas (o primeiro dia de cada mês), Nonae ou Nonas (o dia 5 de todos os meses, exceto março, maio julho e outubro, em que Nonae designava o dia 7) e Idus ou Idos (o dia 15 para aqueles quatro meses e o dia 13 para os outros meses). Os outros dias de cada mês eram citados a partir daqueles três nome****.

Em outras palavras, em lugar de numerar os dias em sequência crescente, como fazemos, os romanos preferiam numerar os dias usando as palavras Calendas, Nonas e Idos como pontos de referência. Para se ter uma ideia, a expressão "desde 3 de junho até 31 de agosto" se dizia em latim como "terceiro dia antes das nonas de junho até o primeiro das calendas de setembro" ("ante diem III Nonas Junias usque ad pridie Kalendas Septembres").

O dia 24 de fevereiro era chamado "o sexto das calendas de março". No nosso calendário, o gregoriano, no ano bissexto, temos um dia a mais, acrescentado ao último dia do mês de fevereiro. Mas, no calendário juliano, o dia a mais era acrescentado ao dia 24. Ou melhor: havia dois dias de número 24. Portanto, havia duas vezes o sextus dies (bis sextus) antes das calendas de março. Desses dois sextos é que se originou a expressão "ano bissexto".

Nas modificações efetuadas por Numa Pompílio no calendário de Rômulo, o ano civil tinha um erro de dez dias em relação ao ano solar. Ele tentou corrigir o erro acrescentando um mês de dez dias entre 23 e 24 de fevereiro. Mas essa solução trouxe tantos problemas que, em 44 a.C., Júlio César resolveu modificar novamente o calendário, dando ao ano a duração de 12 meses, ou 365 dias, de acordo com o calendário egípcio. Foi um astrônomo de Alexandria, chamado Sosígenes, que descobriu que o ano civil tinha seis horas a menos que o ano solar. Assim, Roma instituiu que a cada quatro anos seria acrescentado um dia em fevereiro. Como vimos, o dia 24 de fevereiro era chamado "sexto das calendas". Com o dia adicional (acrescentado após o dia 24, com a mesma numeração), houve dois sextos (=bissexto) das calendas.


Texto de José Augusto Carvalho retirado da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, número 17, Escala Educacional, São Paulo, 2008.


* abril - Abril vem de aprilis, nome de um dos espíritos que seguiam o carro de Marte, deus da guerra, que deu nome ao mês de março. Assim, aprilis não se relaciona com abrir (latim: aperire), mas com o grego Apros ou Afros, designativo de Afrodite, nome grego da deusa Vênus, a quem abril era dedicado, ou em sânscrito áparah, que significa "posterior" (aparentado com o gótico afar ou aftra, que significa "depois"), pois abril era o segundo mês do ano, no calendário civil de Rômulo (daí os nomes setembro, outubro, novembro e dezembro para os meses sete, oito, nove e dez, respectivamente.

** lupercálias -  O nome "Luperca" designa a loba que amamentou os gêmeos Rômulo e Remo na gruta chamada Lupercal. Na realidade, "lupus", lobo, em latim, primitivamente, não tinha feminina. A loba-animal era "lupus femina". "Lupa" designava a cortesã, daí o nome "lupanar" para designar o prostíbulo. A "lupa" que amamentou os gêmeos era, na verdade, uma cortesã chamada Aca Laurentia ou Laurentina. Os sacerdotes romanos é que "purificaram" o origem de Roma, atribuindo à loba-animal a amamentação dos gêmeos que fundaram a cidade.

*** Lupercal - Lupercus se teria originado da justaposição de lupus (lobo) com hircus (bode), mas como era outro nome de Pã, deus dos pastores e dos rebanhos, presume-se que lupercus signifique também "o que afasta o lobo".

**** a partir daqueles três nomes - Por exemplo: o dia 3 de abril era chamado "o terceiro dia antes das nonas de abril" ("ante diem tertium nonas Apriles"); o dia 9 é o "quinto antes dos idos de abril" (os idos de abril caem no dia 13); o dia 26 de abril era o "sexto dia das calendas de maio".


O MÊS DA MENTIRA

A reforma que Carlos IX empreendeu na França em 1564 apenas obrigava os franceses a seguir o calendário juliano (com o ano começando a primeiro de janeiro). Até então, e desde Carlos Magno, era o calendário de Rômulo (com o ano começando a primeiro de março) que vigorava na França. O papa Gregório XIII, em 1582, realizou uma nova reforma, ao verificar que o calendário juliano havia incorrido num erro anual de 11 minutos e 8 segundos. Desde o ano 44 A.C. até 1582, por causa desse erro, havia uma diferença de dez dias. Para compensar esses 10 dias e regularizar a contagem do tempo, o papa determinou que, ao dia 5 de outubro de 1582, deveria seguir-se o dia 15 de outubro, e não o dia 6. A reforma gregoriana causou confusão com as datas e as comemorações tradicionais - além de bagunçar a astrologia. O dia 21 de março corresponderia ao fim do signo de peixes. A confusão de 10 dias fez crer que o dia primeiro de abril era ainda de peixes, isto é, o signo pularia dez dias para terminar no dia primeiro de abril. Em francês, a expressão poissons d'avril, isto é, peixes de abril passou a designar as mentiras de primeiro de abril, porque até o nome abril, por engano, teria passado a ser considerado como o primeiro dia do ano, a abrir o ano. Da França, o dia dos enganos se estendeu ao resto do Ocidente.

domingo, 28 de janeiro de 2024

A gramática e o ensino de Língua Portuguesa

 ENSINAR LÍNGUA MATERNA NÃO DEVE 

SER SINÔNIMO PERFEITO DE ENSINAR GRAMÁTICA


A gramática é um instrumento eficaz para o ensino da Língua Portuguesa? Essa é uma pergunta que existe desde o surgimento dos primeiros materiais didáticos produzidos para a disciplina e que depois inspirou as reflexões arrebatadoras da Linguística. O termo gramática remete a uma palavra grega adaptada pelo latim que significa, inicialmente, a arte de escrever. Tal denominação parece ter se incorporado de tal maneira que até hoje temos um manual que prioriza a linguagem escrita. Sua função principal é servir ao registro e ao estudo de uma Língua, representados, principalmente, pelas vertentes das Gramáticas Descritiva e Normativa.


OS TIPOS DE GRAMÁTICA

A Gramática Descritiva se presta a registrar uma Língua em sua totalidade, considerando as variáveis recorrentes que fazem a regularidade da estrutura linguística. Tem como função, também, evitar o desconhecimento, por falta de documentação, de Línguas antigas, como no caso da gramática escrita por Panini para o Sânscrito, considerada a primeira gramática produzida pela civilização. É relativamente fácil registrar um idioma que já não é mais utilizado, pois este não sofre mais alterações. Mas documentar uma Língua que ainda é utilizada por pessoas que estão sujeitas às diferenças sociais, geográficas e econômicas é uma tarefa delicada.

A gramática utilizada nas escolas é denominada Normativa, ou seja, estabelece, como o próprio nome já diz, regras, leis para uma comunicação aceitável naquela Língua. Menos científico e mais pedagógico, esse tipo de manual se restringe a prescrever como se deve falar e escrever em nosso idioma. Encerrar em um manual todas as possibilidades comunicativas dos falantes de uma Língua é uma tarefa bastante complicada. Só o fato de registrar regras já se opõe a uma característica peculiar das Línguas: a mudança. Não há Língua imutável, ela é de domínio de seus falantes, de seu contexto social.


AS REFLEXÕES DA LINGUÍSTICA

A Linguística trouxe reflexões mais aprofundadas sobre o estudo das Línguas. Contrariando a crença gramatical da imutabilidade linguística, referenciou a importância do estudo diacrônico, ou seja, da evolução da linguagem verbal no decorrer do tempo. Contribuições ainda mais inovadoras foram apresentadas pela Sociolinguística, pela linguística textual, pelo funcionalismo, entre outros que, de certa forma, humanizaram e ampliaram os estudos dos fatos da Língua.

A tradição dita que as escolas devem ensinar obrigatoriamente a norma culta, a Língua padrão. Fugir a isso poderia prejudicar a imagem da instituição e, consequentemente, afastar seus clientes. O aluno chega à escola já dotado de um conhecimento linguístico, fruto de sua exposição às realizações linguísticas concretas de falantes de sua Língua materna. A escola, entretanto, descarta esse conhecimento prévio e tenta, de certa forma, reparar a Língua do aluno ingressante.

O ensino de Língua Portuguesa (e o de qualquer outra Língua) deve transpor as limitações fincadas pelo tradicionalismo, e o professor deve mediar a aprendizagem explorando o imensurável campo da comunicação verbal.


LÍNGUA X GRAMÁTICA

Ensinar Língua materna não deve ser sinônimo perfeito de ensinar gramática, há um campo muito vasto a ser explorado em nosso vernáculo. A Gramática Normativa tem o seu valor positivo, contanto que não seja tomada como verdade absoluta e incontestável. Por apresentar registros amplos sobre a Língua, pode servir de base para estudar fenômenos não citados oficialmente, mas que estão em pleno uso. É o caso do hipertexto, atualmente tão presente na sociedade, principalmente depois do advento globalizante da internet e que permite um uso não-linear e multissemiótico da linguagem.

O professor deve estimular uma necessidade natural de investigação linguística, lecionando com entusiasmo e discernimento para aceitar e respeitar as diversidades linguísticas de seus alunos, que se tornarão sujeitos mais conscientes de sua Língua materna e de maior competência para absorver mais plenamente o que é expresso em nosso vernáculo.


Texto de Cláudio Cavalcanti retirado da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, número 18, Escala Educacional, São Paulo, 2010.

sábado, 27 de janeiro de 2024

Cada Qual (4)

 "Ora, há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo." - Paulo. (I  CORÍNTIOS, 12:4)


Em todos os lugares e posições, cada qual pode revelar qualidades divinas para a edificação de quantos com ele convivem.

Aprender e ensinar constituem tarefas de cada hora, para que colaboremos no engrandecimento do tesouro comum de sabedoria e de amor.

Quem administra, mais frequentemente pode expressar a justiça e a magnanimidade.

Quem obedece, dispõe de recursos mais amplos para demonstrar o dever bem cumprido.

O rico, mais que os outros, pode multiplicar o trabalho e dividir as bênçãos.

O pobre, com mais largueza, pode amealhar a fortuna da esperança e da dignidade.

O forte, mais facilmente, pode ser generoso, a todo instante.

O fraco, sem maiores embaraços, pode mostrar-se humilde, em quaisquer ocasiões.

O sábio, com dilatados cabedais, pode ajudar a todos, renovando o pensamento geral para o bem.

O aprendiz, com oportunidades multiplicadas, pode distribuir sempre a riqueza da boa-vontade.

O são, comumente, pode projetar a caridade em todas as direções.

O doente, com mais segurança, pode plasmar as lições da paciência no ânimo geral.

Os dons diferem, a inteligência se caracteriza por diversos graus, o merecimento apresenta valores múltiplos, a capacidade é fruto do esforço de cada um, mas o Espírito Divino que sustenta as criaturas é substancialmente o mesmo.

Todos somos suscetíveis de realizar muito, na esfera de trabalho em que nos encontramos.

Repara a posição em que te situas e atende aos imperativos do Infinito Bem. Coloca a Vontade Divina acima de teus desejos, e a Vontade Divina te aproveitará.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

A linguagem jurídica como escudo

 Os exageros do mundo do Direito são exemplos de quando a linguagem é usada para prejudicar o entendimento.


É notório tanto que o uso do jargão é uma necessidade insuperável dos profissionais de certas áreas quanto que toda a profissão tem seus próprios termos técnicos. Quem atua em determinado campo do conhecimento lida com um tipo de linguagem a ele pertinente e que pretende "encurtar caminho", dizer e esclarecer com um termo aquilo para o qual, sem o termo técnico, necessitaríamos de uma frase inteira, v.g. (v.g. é a abreviatura do latim verbi gratia, que significa "por exemplo".)

Contudo, há excessos, sempre. No caso do ramo jurídico, em particular, o abuso é evidente. Não raro os chamados "operadores do Direito" (advogados, juízes, procuradores) fazem uso de uma terminologia que, embora não seja técnica - virtualmente, muitos desses termos poderiam ser aplicados a qualquer ramo do conhecimento - é muito singular, muito própria e muito estranha para quem não é "do ramo". Não se cuida do uso do jargão; trata-se de uma utilização que seria "normal" do idioma pátrio, porém, realizada de forma singular, muito particular, distanciada da linguagem usual. A questão é agravada quando se considera que poucas profissões precisam tanto da palavra escrita como aquelas ligadas ao Direito. Talvez por isso, a busca pela "originalidade", de parte, sobretudo, dos subscritores das petições, bem como o gosto pelos neologismos e por em desuso ainda encontrem lugar em nossos foros.


ALGUNS EXEMPLOS

Segundo exemplos retirados de petições diversas, constatamos, por exemplo, que o advogado disse que o seu adversário X, na ação de usucapião, não foi "negligente"; foi "indiligente". Ainda que o significado do termo seja de fácil compreensão, ele não é de uso regular - e sequer consta do dicionário Aurélio. Verificamos, noutro caso, que a sentença do juiz não foi "impugnada" pela parte; em vez disso, foi pedida a "modificação da sentença objurgada". Mais uma vez, o meio mais difícil para se expressar foi eleito: vale notar que objurgado é palavra de raríssimo uso e, mais uma vez, não consta do dicionário Aurélio.

Do mesmo modo, constou de outra petição a descrição de um advogado inconformado a respeito do comportamento de determinada pessoa: "como sói acontecer, Y não atendeu aos termos do decisório vergastado". Traduzindo: como de hábito, Y não cumpriu a decisão judicial. A vergasta (vara fina, de açoitar) deve ter sido bem utilizada...

É certo que nosso idioma oferta incontáveis variantes terminológicas. A riqueza e a variedade de sinônimos são grandes e podem ser usadas seja como um fator de estipulação de um estilo pessoal - como marca própria, subjetiva - seja para evitar repetições aborrecidas - Z alegou..., alegou ainda que..., alegou, também. De outro lado, uma faceta dessa variedade é o uso para dificultar o acesso, deliberadamente, do que poderia ou haveria de ser fácil, talvez pelo sentimento geral de que a informação dificilmente compreendida é erudita ou valiosa. É o uso da palavra como escudo, como barreira, ao oposto do seu fito primeiro, que é exatamente derrubar barreiras interpessoais e promover a comunicação.


USO CONSCIENTE

Há mais. A insistência no uso do latim ainda remanesce, nas petições. Ainda que isso advenha do costume, também parece uma forma de alienar o leitor dito 'comum'. E isso ocorre mesmo que se considere que o Código de Processo Civil diz, em seu artigo 156, que "em todos os atos e termos do processo é obrigatório o uso do vernáculo".

Que o jargão se use quando necessário, parece-me perfeito, quando feito de modo oportuno. Mas o exagero ao lançar mão, de forma desnecessária, de termos incomuns, estranhos ou mesmo inexistentes caracteriza mais do que um estilo pessoal: oculta a intenção de alienar o outro, sobretudo o leitor "comum", menos acostumado com tais termos. Caracteriza o uso da palavra como barreira, detrás da qual se colocam os profissionais pelos mais diversos motivos. Não é um objetivo nobre, certamente. Utilizar-se da linguagem, no processo judicial, como escudo apenas contribui para disseminar uma noção popular segundo a qual, de regra, "não dá para entender nada" do que está numa petição jurídica. Se um processo judicial não é, por natureza, leitura popular, nem por isso deve-se contribuir para que seja antipopular.



Texto de Rogério Feijó (assessor do tribunal de justiça do Rio Grande do Sul) retirado da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, número 19, Escala Educacional, São Paulo, 2009.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Uma reflexão sobre ser professor

A língua é um bem comum a todos e constitui-se uma atividade essencialmente social. Participamos em nosso dia a dia de diversas situações comunicativas, nas mais variadas práticas sociais: uma aula, uma conversa ao telefone, um bilhete ou um e-mail que escrevemos, um artigo que lemos no jornal e assim por diante. A linguagem está presente em quase tudo o que fazemos. A criança desde cedo já observa, antecipa, interpreta, interage com o mundo, dando significado aos seres, objetos e situações que a cercam. O professor deve, portanto,  considerar essa experiência do aluno e desenvolver atividades que contribuam para o aperfeiçoamento de sua forma de dar sentido às coisas do mundo. Um dos modos de enriquecer esse processo é utilizar textos dos mais variados gêneros, que divirtam, emocionem, envolvam o aluno.

Uma tarefa que cabe às escolas de Ensino Fundamental é a formação de leitores e escritores autônomos, ou seja, que consigam lidar com as exigências do texto escrito de maneira voluntária, consciente e intencional, seguindo definição dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs): "um projeto educacional comprometido com a democratização social e cultural atribui à escola a função e a responsabilidade de garantir a todos os seus alunos o acesso a saberes linguísticos necessários para o exercício da cidadania".

A leitura é um processo de construção de sentido; não é apenas decifrar palavras escritas, mas também ter competência para decifrar a realidade. O leitor competente é aquele que compreende o que lê, identifica elementos implícitos, relaciona o texto que lê a outros textos já lidos, sabe que vários sentidos podem ser atribuídos a um texto, justifica e valida a sua leitura a partir da localização de elementos discursivos. Este amadurecimento só pode constituir-se mediante uma prática constante de leitura de textos diversos.

A leitura sempre será um tema de preocupação para os educadores. Devemos sempre procurar novas formas de incentivo, principalmente no Ensino Fundamental, pois é nessa etapa da vida que os alunos desenvolverão a criatividade e o senso crítico. A função do professor é avaliar os procedimentos de busca de sentido que os alunos já utilizam e incorporá-los à prática de leitura em sala de aula, contribuindo para ampliar a competência deles nessa área.

A leitura está intimamente relacionada com a escrita. Por meio de diferentes atividades de leitura, o aluno vai adquirir o hábito de observar como os textos são construídos e isso influenciará na forma com que eles produzirão seus próprios textos. Assim como o ato de ler, escrever é um processo de construção e reconstrução de sentidos em relação ao que se vê, ao que se ouve, sente e pensa. Por isso, é muito difícil para o aluno escrever sobre um assunto sobre o qual ele não faz nenhuma leitura. Quanto mais experiências de leitura ele tiver, mais fácil será o processo de criação textual. Além disso, escrevemos um texto pensando no leitor. Marcos Bagno afirma no livro "Pesquisa na Escola - o que é, como se faz" que "saber que seu texto não será lido apenas pelo professor ou por um grupo de colegas certamente levará o aluno a querer preparar um texto bem elaborado, bem escrito, agradável de ler, coerente e interessante".

Tenho visto que algumas instituições insistem em separar as aulas de "Português" e "Produção Textual", o que leva na maioria das vezes ao ensino puro de gramática na primeira e a produção descontextualizada da outra. O entendimento dessa relação leitura/escrita mostra que a escola deve diversificar as leituras e práticas de produção textual, oferecendo situações que estejam relacionadas às necessidades de uso da linguagem, assim como acontece na vida cotidiana, além de promover a reflexão sobre os diversos gêneros e o uso da língua. O aluno deve encontrar na escola espaço aberto para expor suas ideias, opiniões, experiências vividas. Aprender a escrever, no sentido de construção do discurso, requer uma prática constante que somente é aperfeiçoada com o tempo e por meio de muitas leituras. As aulas de Língua Portuguesa, portanto, podem e devem fomentar inúmeras propostas de trabalho que possibilitem a leitura, a produção de textos em consequentemente, a produção de sentidos. Assim, a escola estará contribuindo para a formação de sujeitos autônomos, capazes de agir sobre a sociedade em que vivem.


Texto de Glayci Kelli Reis da Silva Xavier retirado da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, número 20, Escala Educacional, São Paulo.

sábado, 20 de janeiro de 2024

Na Grande Romagem (3)

"Pela fé, Abraão, sendo chamado, obedeceu, indo para um lugar que havia de receber por herança; e saiu, sem saber para onde ia." - Paulo. (Hebreus, 11:8)


Pela fé, o aprendiz do Evangelho é chamado, como Abraão, à sublime herança que lhe é destinada.

A conscrição atinge a todos.

O grande patriarca hebreu saiu sem saber para onde ia...

E nós, por nossa vez, devemos erguer o coração e partir igualmente.

Ignoramos aas estações de contacto na romagem enorme, mas estamos informados de que o nosso objetivo é Cristo Jesus.

Quantas vezes seremos constrangidos a pisar sobre espinheiros da calúnia? Quantas vezes transitaremos pelo trilho escabroso da incompreensão? Quantos aguaceiros de lágrimas nos alcançarão o espírito? Quantas nuvens estarão interpostas, entre o nosso pensamento e o Céu, em largos trechos da senda?

Insolúvel a resposta.

Importa, contudo, marchar sempre, no caminho interior da própria redenção, sem esmorecimento.

Hoje, é o suor intensivo; amanhã, é a  responsabilidade; depois, é o sofrimento e, em seguida, é a solidão...

Ainda assim, é indispensável seguir sem desânimo.

Quando não seja possível avançar dois passos por dia, desloquemo-nos para diante, pelo menos, alguns milímetros...

Abre-se a vanguarda em horizontes novos de entendimento e bondade, iluminação espiritual e progresso na virtude.

Subamos, sem repouso, pela montanha escarpada:

Vencendo desertos...

Superando dificuldades...

Varando nevoeiros...

Eliminado obstáculos...

Abraão obedeceu, sem saber para onde ia, e encontrou a realização da sua felicidade.

Obedeçamos, por nossa vez, conscientes de nossa destinação e convictos de que o Senhor nos espera, além da nossa cruz, nos cimos  resplandecentes da eterna ressurreição.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Canção de Protesto

 A estrutura, a composição e o impacto das músicas contra a ditadura militar


A canção/música  é um objeto artístico-cultural marcante em nossa sociedade, quer como criação e manifestação de grupos sociais, quer como entretenimento, quer como produto da indústria cultural. No entanto, apesar de sua relevância, a canção é pouco explorada como objeto de estudo, seja pela sociologia, história, antropologia ou linguística. E não basta apenas se concentrar na letra: a canção é um objeto de grande complexidade. Seu  caráter não é puramente sonoro, verbal, (inter)subjetivo, cultural, artístico, social ou industrial. A canção é simultaneamente tudo isso, objeto heterogêneo, dinâmico, complexo.


MEIOS DE ANÁLISE

Aqui, procuramos expor um breve estudo utilizando a proposta de análise defendida por M. Bakhtin/V. Voloshinov*, para quem "a análise sociológica só pode tomar como ponto de partida, naturalmente, a conformação linguística, puramente verbal, de uma obra, mas ela não deve e não pode se confinar dentro desses limites, como faz a poética linguística".

Um estudo dessa ordem não se limita às formas linguísticas empregadas, mas, sim, considera-as como ponto de partida para, por exemplo, compreender o processo referencial desenvolvido na canção, o emprego da metáfora, a "artimanha" do compositor/letrista para driblar a censura, a entonação/interpretação empregada pelo intérprete conforme o contexto, a interação entre compositor, ouvinte e governo/censura, a relação entre formas linguísticas e o contexto sócio-histórico que integram (e em que se inserem) as canções.

A análise sociológica bakhtiniana evitaria, por exemplo, uma "abordagem da música popular centralizada unicamente nas 'letras' das canções, levando a conclusões problemáticas e generalizando aspectos parciais das obras e seus significados", para lembrar uma crítica feita pelo historiador e professor Marcos Napolitano, que alerta acerca do trabalho com a canção: "a única exigência é a audição repetida, atenta e minuciosa do material selecionado, tendo como apoio a leitura da letra impressa".


CONTEXTO DA CANÇÃO DE PROTESTO

Ao lançarmos mão da canção produzida e veiculada durante a ditadura militar no Brasil nos anos de 1960-70, o contexto sócio-histórico torna-se tópico crucial a essa reflexão. O contexto seria o espaço da rua, do espetáculo artístico, da redação e leitura jornalística. Seria o controlo da polícia e censores, o temor, a ação e "não-ação" dos brasileiros em geral, a aura que paira, intimida e "agride" a população, especialmente as pessoas que se opuseram ao governo. O contexto constitui-se de aspectos da sociedade brasileira concernentes à política, à cultura, à arte.

Embora o governo de então tivesse como uma de suas ações camuflar esse contexto - aliás, o próprio contexto - e inibir que a produção da canção se condicionasse a ele (contexto), ainda é possível identificar o contexto como fator condicionante da canção de protesto. Na verdade, contexto e canção integram-se e se autorrevelam. Na "borbulha" do contexto ditatorial é que surgiu a canção de protesto, em diálogo e resposta ao governo (entendido como políticos, censores, militares).

Uma vez instaurada a censura, coube aos compositores, artistas em geral e sujeitos da imprensa driblarem os censores, com pseudônimos, com metáforas. Tal estratégia dificultou aos censores avaliar previamente a interpretação, a recepção, o valor de uma metáfora. Com efeito, apenas depois da (re)ação do público face ao objeto artístico, eles perceberiam o valor social da canção liberada. Só a (re)ação do receptor apontaria à censura a posição valorativa de dada canção. Noutra perspectiva, poderíamos dizer, uma vez ocorrido o contato do público com determinada canção, seria tarde demais querer retirá-la da vida social.

Na tríade governo-músico-público, surgiu uma constatação política, em parte, traduzida nas canções de protesto. Trata-se de um processo em que o povo, ainda que veladamente, foi um importante promotor de ideias. Nesse sentido, o professor Joaquim Alves de Aguiar observa que a ótica da pequena burguesia esclarecida iria formar a canção de protesto, gênero, por assim dizer, dissidente da bossa nova. Eram principalmente universitários os agentes dessa linha de canção que apontava para os problemas da desigualdade social, da miséria no campo e nas cidades.


A CANÇÃO PARA BAKHTIN

No ensaio "A construção da enunciação", capítulo do livro Estética da Criação Verbal, Mikhail Bakhtin argumenta que a compreensão do processo ocorrente no discurso da vida cotidiana conduz à compreensão do processo ocorrente no discurso artístico. Embora a proposta bakhtiniana seja a de pensar especialmente a literatura, seus estudos oferecem suporte teórico pertinente para pensar a canção - também objeto do discurso artístico.

Para pensar a canção, tomamos o conceito de enunciação de Bakhtin: "cada enunciação é composta de certo modo de duas partes: uma verbal e uma extraverbal".

A parte extraverbal constitui-se de três aspectos, que se acham implícitos, subentendidos na enunciação:

a) o espaço e o tempo em que ocorre a enunciação - o onde e o quando,

b) o objeto ou tema sobre o que ocorre a enunciação - aquilo de que se fala,

c) a atitude dos falantes frente ao que ocorre - a valoração.

Parece-nos que a parte extraverbal (que não envolve a parte musical da canção) pode ser aproximada da "série informativa" de que fala Marcos Napolitano**. Em face dessa correlação, a canção é tida como objeto constituído nas relações sociais, por fatores políticos, artísticos, ideológicos, sociais e históricos, pela negociação dos indivíduos que a circundam, pela interação entre compositor/intérprete e público/consumidor, pelo seu modo de veiculação e repercussão.

Compreendemos a canção de protesto como enunciação, gerada no âmago das relações entre governo militar e sociedade brasileira. Gerada a partir da repressão, da negociação e do diálogo - de encontro e confronto - entre compositores, ouvintes e governo, a partir da vontade de os artistas expressarem-se contra a censura para um público predisposto a ouvi-los.

Esses encontros e confrontos de vozes dizem respeito à características que tem a enunciação de ser uma arena axiológica, arena de expressão de valores do falante/autor e do ouvinte/leitor. A canção de protesto concentra e revela, de forma explícita ou implícita, os valores e pontos de vista dos indivíduos que a envolvem (incluindo o compositor, intérprete, público, governo).


CÁLICE, CALE-SE ETC.

Dos três aspectos componentes da parte extraverbal, parece-nos que dois podem ser entendidos como integrantes do contexto sócio-histórico: o onde e o quando, e a valoração dos sujeitos para com as coisas e fatos da realidade. O contexto não se constitui apenas por esses dois aspectos, mas por outros também, como expusemos anteriormente.

Tomamos o contexto sócio-histórico como elemento constituinte da canção e também determinante do sentido das palavras. O que vai determinar o sentido da enunciação não é a parte verbal, as formas linguísticas, mas a parte  extraverbal, o contexto.

Uma canção de protesto emblemática é Cálice, de Chico Buarque e Gilberto Gil, de 1973. Pensamos aqui na gravação original, em estúdio ou ao vivo, na interpretação/ veiculação durante a ditadura militar.

Os versos Pai, afasta de mim este cálice/ de vinho tinto de sangue, por exemplo podem ser pensados como súplica ao pai (Deus na concepção cristã) para que este afastasse a repressão sofrida pelo povo. Outro sentido seria pensar a palavras cálice (cale-se) como ordem do governo ao povo para este se calar. Esses dois sentidos são possíveis e fazem parte dessa canção porque o contexto ditatorial condicionava essa construção semântica, mas também graças ao trabalho do intérprete, como provocador da ambiguidade do vocábulo cálice: com a pronúncia cálice ou cale-se.

Para Bakhtin, "a diferença das situações determina a diferença dos sentidos de uma mesma expressão verbal". Noutros termos, o onde e o quando e a valoração, entre outros elementos do contexto, diferenciam-se a cada  enunciação, sem que a parte verbal e o tema sofram qualquer mudança. Isso nos sugere a existência de "subcontextos". Acerca de Cálice, podemos pensar diferentes "subcontextos" em que foi executada durante a ditadura, os quais, por conseguinte, geravam diferentes sentidos dessa canção. Apontaríamos quatro "subcontextos": durante a elaboração do compositor em casa, a gravação em estúdio, a veiculação em determinado festival, a veiculação em rádios.

Dentro de um contexto sócio-histórico amplo, pode haver "subcontextos" - diferentes situações - em que a mesma canção é enunciada e valorada de forma distinta. Tais "subcontextos" integram o processo de produção, interpretação, veiculação e audição da canção em geral. Tais "subcontextos" devem ser explorados quando se propõe a compreender o sentido da canção.


CÁLICE HOJE

Hoje, quando se ouve Cálice (a mesma gravação/interpretação), ela já não pode ter o(s) sentido(s) de antes, não se consegue atribuir-lhe o(s) sentido(s) "originalis". Executar ou ouvir essa canção é submetê-la ao contexto atual, atribuindo-lhe sentido condizente com esse contexto.

Mas havemos de levar em conta o ouvinte de hoje: se ele ouviu a canção no período ditatorial e/ou tem ciência de seu sentido naquele contexto, é provável que mescle o sentido anterior com o atual. Se o ouvinte, porém, for um jovem que desconheça tanto a canção quanto seu sentido atribuído durante a ditadura, e a ouve pela primeira vez, o sentido será orientado apenas pelo contexto atual.

Essas nuanças semânticas corroboram a ideia de que o sentido é condicionado também pela valoração do ouvinte sobre o que o letrista e a canção falam, independente do contexto sócio-histórico em que esse ouvinte se encontra. Tal fenômeno, no mínimo, sugere que a valoração do letrista/intérprete pode se perder devido à mudança de contexto, prevalecendo, assim, a valoração do ouvinte. A parte extraverbal da canção são elementos que se alteram ou  dissociam-se historicamente da canção, enquanto a parte verbal (e a musical) é a que se mantém e é absorvida pelo jovem que ouve Cálice no contexto de hoje.

  

* M. Bakhtin/V. Voloshinov: "No estudo da literatura, o método sociológico tem sido aplicado quase que exclusivamente para tratar de questões históricas, enquanto permanece virtualmente intocado com relação aos problemas da assim chamada 'poética teórica' - toda a área de enunciados envolvendo a forma artística e seus vários fatores, estilos, etc. Um ponto de vista falacioso, mas encontrado mesmo em alguns marxistas, entende que o método sociológico só se torna legítimo naquele ponto em que a forma poética adquire complexidade através do fator ideológico (o conteúdo) e começa a se desenvolver historicamente nas condições da realidade social externa. A forma em si e por si, de acordo com este ponto de vista, possui sua própria natureza e sistema de determinação de caráter não sociológico, mas especificamente artístico. Tal visão contradiz fundamentalmente as bases primeiras do método marxista - seu monismo e sua historicidade. A consequência disso e de pontos de vista similares é que forma e conteúdo, teoria e história, são deixados separados. Mas não podemos descartar esta visão equivocada sem uma investigação mais detalhada; ela é muito característica de todo o estudo moderno das artes."


** Para Marcos Napolitano, "uma canção, estruturalmente, opera com séries de linguagem (música, poesia) e implica em séries informativas (sociológicas, históricas, biográficas, estéticas)". A canção se constitui da linguagem musical e da verbal: ambas permeadas por elementos extracanção, oriundos do contexto cultural e sócio-histórico, da economia e da política, da evolução estético-musical, da formação musical e ideológica do compositor, arranjador e intérprete. Napolitano complementa: "a canção vai além de todas estas linguagens e informações específicas, realizando-se como um artefato cultural que não é nem música, nem poesia (nos sentidos tradicionais), nem pode ser reduzida a um reflexo da totalidade que a gerou (da sociedade, da história, do autor ou do estilo musical)."


CANÇÃO DE PROTESTO: O QUE É?

O conceito de canção de protesto não é assim simples e não está de todo resolvido. Mas, em geral, seus pesquisadores compartilham que seu auge foi nos primeiro cinco anos do regime militar. O historiador e professor Arnaldo Daraya Contier, em artigo de 1998 intitulado Edu Lobo e Carlos Lyra: o Nacional e o Popular na Canção de Protesto (Os Anos 60), utiliza o termo canção de protesto para se referir às "canções de 1960-70", entre elas as de esquerda, as que se opunham à ideologia do governo, à ditadura no Brasil. O sociólogo e professor José Roberto Zan, no artigo Música Popular Brasileira, indústria cultural e identidade, de 2001, argumenta que a canção continuou, na década de 1970, "ligada a uma tradição de engajamento vinda da década anterior", mantendo, assim, "a aura de segmento crítico e intelectualizado no contexto da ditadura militar". Parece-nos que a canção de protesto se estendeu pela década de 1970: porque a pressão militar sobre o povo imperava, porque a censura nos meios de comunicação continuava, porque ainda havia nas canções influência de ideias revolucionárias do meio universitário, porque os compositores não se calaram, porque mesmo calada a boca, resta o peito, resta a cuca.


Texto de Milton Francisco, professor da Universidade Federal do Acre. Retirado da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, Escala Educacional, São Paulo, número 20, 2009.

domingo, 14 de janeiro de 2024

As antigas saudações populares

No velho sertão nordestino, que as rodovias modificaram pela incessante aproximação com o litoral, até o Ano do Centenário (1922), conservavam-se, quase imutáveis, as linhas-mestras da sociedade setecentista. Chefes políticos, vigários, professores locais mantinham, pelo exemplo natural da vocação obstinada, a fisionomia cultural de outrora, fiéis à herança poderosa do regímen antigo no qual haviam nascido.

Regime, rejume, era uma norma inalterável,  forma de vida estável e natural. Vivendo, há meio século, nessa região do Rio Grande do Norte e da Paraíba, justamente no sertão mais típico e severo, sertão de pedra, o oeste norte-rio-grandense e as ribeiras paraibanas do Rio do Peixe e do Piancó, sou uma testemunha, uma memória sobrevivente desse ciclo que desapareceu quase por completo.

Essas reminiscências constituem o fundamento de estudos que a biblioteca e a viagem completaram no plano da atualização e do confronto.

Um desses motivos de pesquisa tem sido a saudação, a cortesia do sertão velho, aos visitantes, hóspedes, familiares.

A lição etnográfica é que a primeira saudação humana seria pela voz tranquilizadora ou aliciante. Nasceram as fórmulas da polidez milenar, troca de palavras numa convenção insubstituível. Alusão à presença física, à saúde, ao perpassar do tempo. Ainda vivem essas perguntas, estabelecendo a confiança pelo interesse cordial. É o modo internacional de saudar.

Pelo litoral atlântico onde vivia o indígena tupi, os cronistas registraram a troca ritual das palavras indispensáveis, rápido comento pela vitória da jornada até a aldeia fraternal.

ERE-UI PE? Vieste então? PA-AIUT, sim, vim. É o nosso íntimo: - Então? Por aqui? - É verdade, estou por aqui! Hans Staden saúda Cunhambebe: - Vives tu ainda? - O grande soberano selvagem responde apenas: - Sim, vivo ainda! - No mundo caraíba nas cabeceiras do Xingu, Karl von den Steinen fixou o cerimonial: - Ama: tu! Úra: eu! - Nada mais. Eu e tu estamos diante um do outro, individualizados, reais, autênticos. Vamos viver juntos como amigos. Entretermo-nos. Para que maiores circunlóquios?

Antes da palavra expressiva haveria o primeiro gesto, ainda contemporâneo, de mostrar as mãos, uma só mão no mínimo, visivelmente sem armas, agitada na homenagem ao advena. E deste àquele. Desarmados, na confiança cordial. Mudamos milhares de coisas, mas essa saudação ficou.

Andei uns tempos indagando sobre o aperto de mão (Superstições e costumes, ed. Antunes, Rio de Janeiro, 1958). Não havia no Brasil ameraba. É uma presença europeia. Em 1884 os bacairis "mansos" do Mato Grosso não compreendiam a significação da mão estendida.

O mesmo ocorrera na África Ocidental e Oriental. O preto não sabia apertar a mão como um cumprimento. Presentemente é um índice de aculturação. A saudação normal do brasiliense consistia nas frases: - Vieste? Vim! Eu! Eu bom! Eu amigo! Nenhum gesto acompanhava. Havia nalgumas malocas a saudação lacrimosa, de uso vasto e velho fora do Brasil. Seguia-se, em qualquer dos casos, a entrega de alimentos e das ofertas do estrangeiro. Receber o hóspede, chorando, era um processo de cordialidade feminina. O estrangeiro devia chorar também.

O sertão, mesmo do século XIX e primeiras décadas do XX, conheceu o aperto de mão para pessoas de sociedade, gente letrada, de importância. O sertanejo antigo não apertava a mão. Falava saudando. Ouvia, sorrindo, a resposta. Ainda hoje não é comum entre populares. Batem no ombro, nas costas, no deltoide. Fazem ar de riso. Mesmo o abraço é um toque de mão num ou em ambos os ombros. Bater no ombro é símbolo clássico de intimidade. Local de cerimônias fidalgas e sagradas. Andam de mão no ombro, amigos.

A saudação velha era essencialmente a palavras e não o gesto. Assim vi, há cinquenta anos passados. Identicamente entre o povo português, lavradores, gente do interior, fiel às regras de outrora.

No alpendre da fazenda velha, Lampião aceso. Conversava-se nas primeiras horas da noite. Os recém-vindos não vinham apertar a mão do dono da casa.

Entravam dizendo e ouvindo os períodos do preceito.

- Boa! Boa noite pra todos! Boa! Tome assento!

Na saída: - Bem. Vou indo! Até! Intante!...

E a resposta: - Intantin!... Instante, instantezinho, até breve, até logo.

Nas feiras via o encontro dos compadres, semanalmente avistados. Batiam nos ombros, com empurrões afetuosos que semelhavam provocações. Nunca aperto de mão ou abraço. Este, quando em raro surgia, era um breve apertão na altura do deltoide. Entre nós, meninos, a educação mandava salvar, mas consistia infalivelmente nas frases: - Tá bom? Então Como li vai?

As pesquisas posteriores nas cidades não modificaram o registro sertanejo. Bem poucos apertos de mão entre gente do povo. Batida no ombro, "a mão no ombro", denunciadora amistosa.

Vezes a roda já estava formada quando aparecia um amigo. Sorria, abanando a mão na direção de cada um de nós. Vinha dar a mão ao mais graduado, ao de respeito, não íntimo. Entre as mulheres, nenhuma diferença do observado. A saudação com a cabeça nunca vi ou dificilmente vi fora da igreja. E mesmo nos templos os sertanejos e agrestinos são desajeitados, esquerdos, com um ar de cumprir encargo acima das possibilidades ginásticas.

Alguns vaqueiros de Campo Grande (Augusto Severo, RN) só sabiam bater nos peitos ou fazer o sinal da cruz diante do altar. O Vigário Velho Manuel Bezerra Cavalcanti (1814-1894), 54 anos vigariando a mesma  paróquia, afirmava que o sertanejo só sabe baixar a cabeça procurando rasto de bicho!...

Meus tios e primos nas festas da rua (Vila) cumprimentavam o grupo numa busca sacudidela de ombros e cabeça ao mesmo tempo. Estiravam a mão hirta, dura, de pau, sem apertar. Quem aperta a mão é praciano. Do sertão de São Paulo afirma o mesmo Cornélio Pires.

O adeus a distância era estender o braço, curvo, pouco acima da cabeça, a mão direita agitada, abanando com a palma voltada para dentro. Mostrando a palma da mão é influência moderna e das cidades. E fazendo o gesto de quem lava vidraça, mexendo a mão como limpador de para-brisa, é recentíssimo.

Esses eram os estatutos da cortesia sertaneja, no tempo em que vintém era dinheiro.

Os Drs. Arthur Neiva e Belisário Pena (Viagem científica, 1916) registraram uma aculturação. Já apertavam as mãos, mas a mão no ombro era indispensável. Informam os dois sábios: "Na zona percorrida da Bahia, Pernambuco e Piauí existe curioso modo de saudação entre os recém chegados; apertam as mãos e em seguida pousam uma das mãos sobre o ombro do amigo, enquanto fazem perguntas de estilo. É cumprimento obrigatório e provavelmente representa hábito de etiqueta usada em outras épocas". A observação é de 1912. A etiqueta antiga seria a mão no ombro, unicamente. Assim saudavam os fidalgos cavaleiros da Idade Média.


Texto de Luís da Câmara Cascudo retirado do livro "Coisas que o povo diz", Global Editora, São Paulo, 2009.

sábado, 13 de janeiro de 2024

Vassoura atrás da porta

Uma das fórmulas aconselhadas para abreviar as visitas intermináveis é colocar a vassoura atrás da porta. Com a palha para cima e o cabo para baixo, ao inverso da posição em que é usada.

As informações vêm de todo o Brasil, porque ninguém ignora essa curiosa técnica com que os importunos são despedidos, ou obrigados a sair por uma força de impulsão mágica e livrar as vítimas de uma presença monótona e sonolenta.

Naturalmente os indígenas e os escravos africanos não conheceriam esse processo aliviador dos amigos insensíveis ao valor do tempo e menos ainda atendendo ao trabalho dos pacientes visitados.

Tivemos a vassoura de Portugal e com ela o complexo supersticioso ainda mantido. Expedir as visitas de permanência indefinida é uma dessas  funções simbólicas. Não há quem desconheça essa aplicação da vassoura em qualquer recante do Brasil.

Negros e amerabas varriam suas moradas, mas não sabemos se possuíam crendices decorrentes. No Brasil houve, ou ainda há no interior do Maranhão, uma Nossa Senhora da Vassoura.

Em Portugal verifica-se o mesmo hábito e de lá recebemos a crença em que muita gente acredita, além e aquém Atlântico.

Quando alguém encontrar uma vassoura atrás da porta, convença-se de estar presenciando um ato supersticioso com mais de vinte séculos de existência. J.A. Hild, estudando o deus Silvanus, e M.L. Barré, analisando as lucernas de Pompeia, permitiram que tomasse faro e rumo para identificação do costume, através da quarta dimensão. Identificar a origem.

Silvanus, divindade campestre na campanha de Roma, confundia-se com Faunus, para introduzir-se nas moradas campesinas e praticar pequenos e grandes malefícios e diabruras desagradáveis, como o nosso Saci-Pererê. Para afastar Silvanus, informa Santo Agostinho, três deuses rurais socorriam família ameaçada. Cada uma dessas entidades compareceria conduzindo um atributo de sua função profissional. Bastaria o dono da casa dispor em lugar bem visível os três objetos representativos dos três deuses, para Silvanus fugir e não voltar, tentando as proezas malandras. Esses objetos eram um machado, uma mão de pilão e uma vassoura. Como Silvanus vivia a vida selvagem, primitiva e rústica, déteste ces outils hostiles à son empire*. Pilão, machado e vassoura são utensílios denunciadores de uma organização social regular, normal e acima dos costumes errantes de Silvanus. Era obrigado a deixar esse clima, bem acima e irrespirável para suas narinas de bosque umbroso e roçaria deserta. Restava-lhe apenas a fuga, afirma Hild. M.L. Barré, citando esse Silvano doméstico, autor de visões noturnas, aterrador de crianças, "et l'on croyait paralyser l'influence funeste de cette divinité en mettant un balai en travers de la porte de la maison"**. Paul Sébillot registra a vassoura atrás da porta, atravessada e sempre invertida, espavorindo as bruxas na Baviera, Hesse, França, etc. Essas bruxas tinham, coitadas, recebido a herança romana de Silvanus.

Hild e Barré morreram, sem saber da existência dessa vassoura supersticiosa no Brasil contemporâneo.

Mas a origem, até prova expressa e convincente em contrário, é essa que tomei a liberdade de expor...


* odeia essas ferramentas hostis à seu Império.

** e acreditava-se que paralisava a influência nociva dessa divindade ao colocar ao colocar uma vassoura na porta da casa.


Texto de Luís da Câmara Cascudo retirado do livro "Coisas que o povo diz", Global Editora, São Paulo, 2009.

Modo de Fazer (2)

 "De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus." - Paulo. (FILIPENSES, 2:5.)


Todos fazem alguma coisa na vida humana, mas raros não voltam à carne para desfazer quanto fizeram.

Ainda mesmo a criatura ociosa, que passou o tempo entre a inutilidade e a preguiça, é constrangido a tornar à luta, a fim de desintegrar a rede de inércia que teceu ao redor de si mesma.

Somente constrói, sem necessidade de reparação ou corrigenda, aquele que se inspira no padrão de Jesus para criar o bem.

Fazer algo em Cristo é fazer sempre o melhor para todos:

Sem expectativa de remuneração.

Sem exigências.

Sem mostrar-se.

Sem exibir superioridade.

Sem tributos de reconhecimento.

Sem perturbações.

Em todos os passos do Divino Mestre, vemo-lo na ação incessante, em favor do indivíduo e da coletividade, sem prender-se.

Da carpintaria de Nazaré à cruz de Jerusalém, passa fazendo o bem, sem outra paga além da alegria de estar executando a Vontade do Pai.

Exalta o vintém da viúva e louva a fortuna de Zaqueu, com a mesma serenidade.

Conversa amorosamente com algumas criancinhas e multiplica o pão para milhares de pessoas, sem alterar-se.

Reergue Lázaro do sepulcro e caminha para o cárcere, com a atenção centralizada nos Desígnios Celestes.

Não te esqueças de agir para a felicidade comum, na linha infinita dos teus dias e das tuas horas. Todavia, para que a ilusão te não imponha o fel do desencanto ou da soledade, ajuda a todos, indistintamente, conversando, acima de tudo, a glória de ser útil, "de modo que haja em nós o mesmo sentimento que vive em Jesus-Cristo".


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

A Miséria, pela mão da miserável

 Carolina de Jesus foi a primeira autora a contar como era a favela sob o ponto de vista de quem vivia nela


Depois de passar uma temporada morando na rua, com três filhos a tiracolo - o mais novo ainda bebê - a mineira Carolina Maria de Jesus conseguiu um teto para a família. Era um barracão de madeira às margens do Rio Tietê, na zona norte de São Paulo. Atrás da casa havia um lixão, onde um frigorífico jogava carne com creolina, para evitar que alguém comesse. Em dia de chuva forte, a lama do rio avançava para dentro da casa, junto com ratos, dejetos e todo tipo de lixo. Carolina gostava de tudo limpo. Vaidosa, criava os próprios colares e brincos, mas a ocupação de catadora de papel fazia com que andasse maltrapilha e suada pelas ruas, com um saco nas costas. O dinheiro mal dava para a comida dos filhos, que não tinham pai. Um dia, cansada, começou a escrever tudo que lhe acontecia.

Assim nasceu Quarto de Despejo, publicado em 1960, a partir de cadernos preenchidos com os "desabafos" de Carolina. Os registros vão de 15 de julho de 1955 a 1º de janeiro de 1960, época em que era uma das 50 mil moradores da Favela do Canindé, onde hoje está o Estádio da Portuguesa.

Aos 46 anos, ela revelou a miséria de sua comunidade, invisível para a sociedade. Carolina foi a primeira mulher negra, pobre, mãe solteira e semianalfabeta - ela não completou o primário - a publicar uma autobiografia. Onze mil exemplares foram  vendidos em uma semana. Seguiram-se duas reedições, traduções para 13 línguas e venda em mais de 40 países. Foi assunto de escritores renomados, como Rachel de Queiroz e Manuel Bandeira.

Carolina era convidada para programas de auditório, palestras e até para almoçar na casa da tradicional família Matarazzo. "Saiu do lixo para o estrelato", diz o jornalista Audálio Dantas, que descobriu a autora e editou Quarto de Despejo, preservando o estilo de Carolina e até os erros ortográficos.

"Eu trabalhava como repórter e me ofereci a escrever sobre a favela que estava crescendo na bairro do Canindé", diz Dantas, que trabalhava para a Empresa Folha da Manhã, que hoje publica a Folha de São Paulo. "Disse ao chefe de reportagem que acompanharia, pelo tempo que fosse necessário, o dia a dia da comunidade". Dantas se embrenhou durante três dias nos labirintos dos barracos, "pisando o chão lamacento, sentindo o fedor das valas de esgoto, ouvindo lamentos, xingamentos e blasfêmias". Uma briga entre Carolina e um grupo de marmanjos, que insistiam em ocupar o parquinho das crianças, chamou a atenção do repórter. Ela queria que os grandalhões saíssem dali e, como não teve sucesso, gritou: "Vou botar o nome de vocês no meu livro". Aos poucos, os ocupantes foram se esgueirando por um canto com medo da ameaça. Todos sabiam que ela escrevia num caderno tudo o que acontecia na favela. "Ela olhou para mim e também disse que ia me colocar no livro dela. Estava mostrando que tinha força. E o livro era uma grande arma", diz o jornalista. Dantas quis saber o que ela estava escrevendo. Carolina então lhe mostrou mais de vinte cadernos guardados em seu barraco, num armário de caixotes.


POEMAS E TEATRO

Parte do material, primeiro, virou matéria de jornal, depois, numa edição mais cuidadosa e completa, Quarto de Despejo. Mas ela gostava mesmo  de fazer poemas, alguns inclusive já havia conseguido publicar em jornais, antes do encontro com o repórter. "Determinada, ela costumava andar pelas redações anunciando-se  poetisa", afirma Dantas.

Quando o livro foi publicado, muitos duvidaram que uma mulher com tão pouca instrução fosse capaz de escrever uma obra assim relevante e questionadora. Outros acharam impossível. O que não impediu que surgissem admiradores e defensores. O poeta Manuel Bandeira escreveu no jornal O Globo que o preconceito era a principal razão de as pessoas não acreditarem que uma "negra favelada" pudesse ter escrito Quarto de Despejo. Foi além, dizendo que ninguém seria capaz de "inventar" um texto como o de Carolina.

"Minha mãe era assediada na rua. Era uma loucura. Todo mundo queria falar com ela e pedir autógrafo", diz a filha caçula da autora, Vera Eunice de Jesus, de 61 anos, que hoje trabalha  como professora de Português na rede pública de São Paulo. "Durante três anos, minha mãe não parou em casa. Viajamos a convite para vários lugares do país. Minha mãe foi uma febre". Carolina carregava a filha caçula para qualquer lugar aonde fosse.

Em 1961, um ano depois do lançamento, o livro virou argumento para o teatro, e estreou com a atriz Ruth de Souza no papel de Carolina. No mesmo ano, a escritora lançou um disco de 12 faixas com sambas e marchinhas de sua autoria - Carolina Maria de Jesus, Cantando Suas Composições. A todo esse barulho seguiu-se o esquecimento. A escritora que havia chacoalhado o mundo literário morreu no anonimato e na pobreza, num sítio em Parelheiros, no extremo sul de São Paulo, em 1977. Os filhos tiveram de emprestar dinheiro de uma vizinha para comprar o caixão. "Ficamos com o modelo mais simples e barato, mas o dinheiro não deu para a coroa de flores. E, assim mesmo, demorei um ano para quitar o empréstimo", diz Vera Eunice.

No ano passado, os inúmeros tributos realizados pelo centenário de Carolina tinham um quê de resgate da autora. "As homenagens fizeram com que eu fosse melhor apresentada à Carolina escritora. Conhecia muito pouco a história da minha mãe", diz a filha, que participou da maioria dos eventos. Em um deles, Vera assistiu pela primeira vez o documentário alemão Favela: A Vida na pobreza, de 1971. O filme, dirigido por Christa Gottman-Elter, foi lançado em 1971.


PÉ NA ESTRADA

A escritora reproduziu uma visão de mundo inovadora, sem o filtro dos intelectuais, mas de forma pungente. Muito antes, em 1890, O Cortiço trouxe o retrato de uma vida de pobreza, com histórias de furtos e homossexualidade. O autor Aluísio Azevedo não pertencia ao mundo sobre o qual escreveu. Era formado em Artes Plásticas, e mais tarde virou cônsul.

Carolina compara a favela a um quarto de despejo, daí o nome do livro. "Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo". E sobre o centro de São Paulo: "Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita, com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludo,(sic), almofadas de sitim (sic). Quando estou na favela, tenho a impressão que sou objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo". Na época do lançamento do livro, a TV era o mais novo meio de comunicação e os jornais traziam as notícias mais quentes. São Paulo tinha um terço da população atual, 4 milhões de habitantes, e surgia, sob a gestão de Adhemar de Barros - governador de 1947 a 1951, conhecido pelas grandes obras públicas e pelo mote "rouba, mas faz" -, como destino para migrantes que buscavam oportunidades de trabalho e uma vida melhor.

Carolina saiu de Sacramento (MG), aos 17 anos, a pé e decidida a nunca mais voltar. Vítima de preconceito e de abuso de autoridade, Carolina fora presa como suspeita de ter roubado dinheiro da igreja. Na delegacia apanhou da polícia. Não deu certo. Prenderam então sua mãe, que também foi surrada. As duas ficaram detidas até que o padre encontrou o dinheiro. Ao sair da cadeia, colocou o pé na estrada. Em cada cidade que chegava, arrumava um trabalho temporário, que rendia o dinheiro da comida, e pegava a estrada novamente. Isso se repetiu até alcançar o destino final, São Paulo.


DOMÉSTICA

"Quando minha mãe chegou a São Paulo, conseguiu uma vaga de empregada doméstica na casa de Euryclides de Jesus Zerbini (o cirurgião que em 1968 realizou o primeiro transplante de coração da América Latina)", conta a filha, Vera Eunice. O médico tinha uma excelente biblioteca. Carolina pediu e conseguiu permissão para ler as obras durante as folgas de fim de semana. Mas logo foi demitida. Vieram os namoros e quatro gestações indesejadas. O primeiro filho ela abortou. Era uma menina, que ganhou o nome de Carolina. Depois nasceram João José, José Carlos e Vera Eunice. A essa altura, Carolina já estava morando na rua. "Ninguém empregava mãe solteira. Então ela começou a catar papel para conseguir algum dinheiro", diz Vera. "Um dia, um político teve a ideia de 'limpar' a cidade. Um caminhão passou recolhendo todos os mendigos. Embarcamos na caçamba e, como dizia minha mãe, 'fomos despejados' às margens do Rio Tietê."

Carolina saiu à procura de madeira para levantar o próprio barraco. Conseguiu uma doação na Igreja Nossa Senhora do Brasil, nos Jardins, a 9 quilômetros da favela. Colocou as tábuas na cabeça e começou a caminhar, como estava acostumada. A extinta Canindé era uma favela com barracos construídos sobre a lama.

Na favela a família sofria todos os tipos de carência. "Sonhei que eu residia numa casa residível (sic), tinha banheiro, cozinha, copa e até quarto de criada. Eu ia festejar o aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu ia comprar-lhe umas panelinhas, que há muito ela vivia pedindo... Sentei para comer... Eu comia bife, pão com manteiga, batata frita e salada. Quando fui pegar o bife, despertei. Que realidade amarga!", escreveu em Quarto de Despejo.

A miséria era tanta que comida é uma questão do início ao fim do livro. "O dinheiro não deu para comprar carne, fiz macarrão com cenoura. Não tinha gordura, ficou horrível. A Vera é a única que reclama e pede mais. E pede: Mamãe, vende eu para a dona Julita, porque lá tem comida gostosa". Como atrás do barraco de Carolina tinha um lixão, na intenção de proteger os filhos, e sabendo da fome que todos passavam, vivia dizendo que ninguém podia pegar comida de lá. Mas, algumas vezes, não tinha  escapatória. "Eu ontem comi aquele macarrão do lixo com receio de morrer".


POLÍTICOS

Carolina tinha de fato esperança que um dia os políticos dariam um jeito para mudar a vida dos pobres. Uma crença que, em parte, veio de uma experiência inusitada. "Quando minha mãe saía para catar papel, usava um saco na cabeça, segurava outro apoiado nas costas, e com o braço livre me carregava no colo", conta Vera. Não importava se estivesse fraca, por falta de comida, ou doente. Desde jovem, ela sofria com feridas que costumavam surgir nas pernas. "Uma vez, estava tão mal, quase se arrastando pela rua, comigo no colo, que um carro parou." Vera relata que um homem desce, perguntou o nome de sua mãe e pediu que ela entregasse a criança.

O homem disse que Carolina precisava ser levada a um hospital. Segundo Vera, era Jânio Quadros, então governador de São Paulo. O político internou Carolina em um hospital e deixou a menina aos cuidados de uma família até que sua mãe tivesse alta. A escritora gostava mesmo de Adhemar de Barros e deixou isso bem claro em Quarto de Despejo: "Eu sempre fui ademarista. Gosto muito dele, e de Dona Leonor. Florencia (vizinha de barraco) então perguntou a Carolina:

- Ele já te deu esmola?

- Já. Deu o Hospital das Clínicas".


APEDREJADOS

"Negrinha feia e chata." Com essas palavras, Carolina registrava como as pessoas se referiam a ela desde criança. Na Favela do Canindé não foi diferente. "As pessoas não gostavam muito dela", diz Dantas. Carolina não era como a maioria e não conseguia socializar. "Minha mãe tinha um vocabulário mais erudito. Nós (os filhos) muitas vezes não entendíamos direito o que ela dizia", diz Vera, que conta que os vizinhos chegaram a colocar fogo no barraco deles. "Eu me lembro até hoje que eu chorava que meu carrinho de boneca estava pegando fogo".

Quando Quarto de Despejo foi publicado, os moradores da favela não gostaram. "Muitos deles estavam registrados naquelas páginas, com nome e tudo, como ela havia ameaçado durante todo o período que moramos ali", conta a filha. A vizinhança chamava Carolina de "escritora vira-lata". O sucesso da edição aumentou a tensão na comunidade. "Acharam melhor tirar minha família da favela. No dia da mudança, fomos apedrejados. Meu irmão ainda tem a cicatriz perto do olhos", diz Vera. Os quatro foram levados para o porão de uma grande empresa de açúcar. "Era o máximo aquele porão. Os empregados levavam comida, que era ótima. Um dia serviram lagosta."


VIDA BURGUESA

Uma casa de alvenaria, no Alto de Santana, bairro de classe média na zona norte, foi o novo destino da família Jesus. O sucesso do livro tinha proporcionado um dos sonhos da autora, morar numa casa "residível", como escrevia sempre. Só que a adaptação não foi fácil, nem para a escritora e os filhos, nem para a vizinhança. "Ela reclamava que as pessoas não gostavam dela porque era negra", afirma Dantas. Havia outras questões além do preconceito. A fama da escritora tumultuou a rua pacata. "As emissoras de TV chegavam de ônibus, lotados de equipamentos para transmissão. Na porta de casa formava fila de gente pobre que surgia do nada para pedir coisas", diz Vera. Carolina ainda levava mendigos para dentro de casa, por pena. "A gente acordava e tinha um estranho dormindo na sala, que depois ainda roubava nossas coisas", afirma a filha. Os vizinhos reclamavam do som alto. Carolina escutava valsas no último volume e dançava até cansar. "Ela ficava com raiva e dizia que era inveja da vizinhança", diz Dantas. "Carolina tinha um gênio difícil. Não aceitava que ninguém dissesse o que devia fazer."

A vida em Santana se transformou no livro Casa de Alvenaria (1961) - depois ela ainda publicou Pedaços de Fome e Provérbios (1963). Três anos depois que a família estava enfim bem-acomodada e em residência própria, Carolina comunicou que havia comprado um sítio próximo a São Paulo, em Parelheiros, e que eles iriam se mudar. "O lugar era péssimo. Não tinha nem luz", conta Vera. "Então a vida começou a piorar muito. Meus irmãos ficaram revoltados. O dinheiro era curto."

A filha diz que a mãe não sabia administrar o que ganhava, e que também assinava muito papel em branco. "Ela deu um jeito para todo mundo estudar, mas não tínhamos como comprar coisas básicas, como sapatos. Íamos descalços para a escola. A professora colocava a gente no sol para esquentar", lembra Vera. "Também não havia dinheiro para óleo, café e manteiga. Só não passávamos fome porque criávamos galinhas e porcos. A vida voltou a ser dura".

Carolina estava novamente nas ruas recolhendo papel. "Não foi sensacionalismo, como disseram na época. Foi necessidade mesmo". Depois das morte da autora, foram publicados Diário de Bitita (1982) e Onde estaes felicidade (2014). Há mais de 5 mil páginas de textos inéditos de Carolina de Jesus.

No ano passado, até as escolas municipais festejavam a autora, o que fez com que os alunos de Vera, assim como os próprios estudantes, passassem a enxergá-la com outros olhos. "Foi engraçado. Parecia que eles estavam me vendo pela primeira vez. Numa reunião com os pais, uma das mães se levantou e disse que sentia muito orgulho de o filho ter como professora a filha da Carolina Maria de Jesus. Fiquei surpresa. Isso nunca tinha acontecido".

Apesar do sucesso efêmero, a escritora deixou um legado literário importante, objeto de estudo de pesquisadores no Brasil e no mundo. "Ela é precursora da Literatura Periférica", diz Fernanda Rodrigues de Miranda, da Universidade de São Paulo, uma das dezenas de pesquisadores cuja tese de mestrados tratou da autora. "Carolina traz o cotidiano periférico não somente como tema, mas como maneira de olhar a si e a cidade", diz Fernanda.


PERIFERIA

Hoje a periferia tem voz. A internet e as redes sociais ajudaram a democratizar o acesso à informação do que se produz longe dos olhos da parte rica das grandes cidades. Racionais MC's, grupo de rap formado em 1989, e o romancista Ferrez são exemplos de artistas da periferia da zona sul de São Paulo, que construíram a carreira longe do centro. O cotidiano dos jovens, a violência e a pobreza estão presentes nas músicas do Racionais e nos poemas e livros de Ferrez. Trata-se da chamada arte marginal, gênero que tem espaço e importância na construção da identidade cultural do país

Carolina foi pioneira do estilo, mas caiu no ostracismo. Por quê? "Ela se transformou em artigo de consumo, que as pessoas queriam ver e conhecer. Quase como algo curioso", diz Dantas, que acompanhou a escritora por vários anos. "E, como toda curiosidade, com o tempo perdeu a graça."


NO MORRO DAS FAVAS

As origens das favelas brasileiras

O dicionário define favela como conjunto de habitações toscas e miseráveis, geralmente em morros, onde habita gente pobre. A palavra surgiu com a Guerra de Canudos, no fim do século 19. Em Os Sertões, o jornalista e escritor Euclides da Cunha descreve o Morro da Favela, ponto estratégico da região do sertão baiano onde o beato e líder Antônio Conselheiro e seus fiéis estavam assentados. Favela é diminutivo de fava, planta abundante na encosta do morro. "Quando os veteranos do conflito voltaram ao Rio de Janeiro, pediram permissão ao Ministério da Guerra para construir casas no Morro da Providência", conta o sociólogo Nestor de Goulart Reis, professor da Universidade de São Paulo. "Talvez pela semelhança com o morro baiano ou pela posição geográfica estratégica que ocupava, os soldados apelidaram o local de favela." Consequência da má distribuição de renda e do crescimento das cidades, o processo de favelização é anterior à industrialização do Brasil. "Sempre houve problema problema de habitação nas regiões urbanas", diz Reis. Nas bordas de Salvador e Recife, por exemplo, moradias precárias já eram comuns desde o século 19. "Com teto de palha, as casas dos negros eram chamados de mucambos", diz Reis. Em São Paulo isso também aconteceu. As áreas inundáveis eram as terras mais fáceis de ser ocupadas pelos escravos. A Favela de Canindé, onde morou Carolina de Jesus, surgiu nas margens do Rio Tietê. Hoje, vivem em Comunidades, o nome politicamente correto que rebatizou as favelas, 11 milhões de brasileiros. Há 11 mil moradias em lixões, aterros sanitários e áreas contaminadas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.


Texto de Valéria França retirado da revista Aventuras na História, Editora Caras, São Paulo, Edição 139, Fevereiro de 2015.