sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

A linguagem jurídica como escudo

 Os exageros do mundo do Direito são exemplos de quando a linguagem é usada para prejudicar o entendimento.


É notório tanto que o uso do jargão é uma necessidade insuperável dos profissionais de certas áreas quanto que toda a profissão tem seus próprios termos técnicos. Quem atua em determinado campo do conhecimento lida com um tipo de linguagem a ele pertinente e que pretende "encurtar caminho", dizer e esclarecer com um termo aquilo para o qual, sem o termo técnico, necessitaríamos de uma frase inteira, v.g. (v.g. é a abreviatura do latim verbi gratia, que significa "por exemplo".)

Contudo, há excessos, sempre. No caso do ramo jurídico, em particular, o abuso é evidente. Não raro os chamados "operadores do Direito" (advogados, juízes, procuradores) fazem uso de uma terminologia que, embora não seja técnica - virtualmente, muitos desses termos poderiam ser aplicados a qualquer ramo do conhecimento - é muito singular, muito própria e muito estranha para quem não é "do ramo". Não se cuida do uso do jargão; trata-se de uma utilização que seria "normal" do idioma pátrio, porém, realizada de forma singular, muito particular, distanciada da linguagem usual. A questão é agravada quando se considera que poucas profissões precisam tanto da palavra escrita como aquelas ligadas ao Direito. Talvez por isso, a busca pela "originalidade", de parte, sobretudo, dos subscritores das petições, bem como o gosto pelos neologismos e por em desuso ainda encontrem lugar em nossos foros.


ALGUNS EXEMPLOS

Segundo exemplos retirados de petições diversas, constatamos, por exemplo, que o advogado disse que o seu adversário X, na ação de usucapião, não foi "negligente"; foi "indiligente". Ainda que o significado do termo seja de fácil compreensão, ele não é de uso regular - e sequer consta do dicionário Aurélio. Verificamos, noutro caso, que a sentença do juiz não foi "impugnada" pela parte; em vez disso, foi pedida a "modificação da sentença objurgada". Mais uma vez, o meio mais difícil para se expressar foi eleito: vale notar que objurgado é palavra de raríssimo uso e, mais uma vez, não consta do dicionário Aurélio.

Do mesmo modo, constou de outra petição a descrição de um advogado inconformado a respeito do comportamento de determinada pessoa: "como sói acontecer, Y não atendeu aos termos do decisório vergastado". Traduzindo: como de hábito, Y não cumpriu a decisão judicial. A vergasta (vara fina, de açoitar) deve ter sido bem utilizada...

É certo que nosso idioma oferta incontáveis variantes terminológicas. A riqueza e a variedade de sinônimos são grandes e podem ser usadas seja como um fator de estipulação de um estilo pessoal - como marca própria, subjetiva - seja para evitar repetições aborrecidas - Z alegou..., alegou ainda que..., alegou, também. De outro lado, uma faceta dessa variedade é o uso para dificultar o acesso, deliberadamente, do que poderia ou haveria de ser fácil, talvez pelo sentimento geral de que a informação dificilmente compreendida é erudita ou valiosa. É o uso da palavra como escudo, como barreira, ao oposto do seu fito primeiro, que é exatamente derrubar barreiras interpessoais e promover a comunicação.


USO CONSCIENTE

Há mais. A insistência no uso do latim ainda remanesce, nas petições. Ainda que isso advenha do costume, também parece uma forma de alienar o leitor dito 'comum'. E isso ocorre mesmo que se considere que o Código de Processo Civil diz, em seu artigo 156, que "em todos os atos e termos do processo é obrigatório o uso do vernáculo".

Que o jargão se use quando necessário, parece-me perfeito, quando feito de modo oportuno. Mas o exagero ao lançar mão, de forma desnecessária, de termos incomuns, estranhos ou mesmo inexistentes caracteriza mais do que um estilo pessoal: oculta a intenção de alienar o outro, sobretudo o leitor "comum", menos acostumado com tais termos. Caracteriza o uso da palavra como barreira, detrás da qual se colocam os profissionais pelos mais diversos motivos. Não é um objetivo nobre, certamente. Utilizar-se da linguagem, no processo judicial, como escudo apenas contribui para disseminar uma noção popular segundo a qual, de regra, "não dá para entender nada" do que está numa petição jurídica. Se um processo judicial não é, por natureza, leitura popular, nem por isso deve-se contribuir para que seja antipopular.



Texto de Rogério Feijó (assessor do tribunal de justiça do Rio Grande do Sul) retirado da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, número 19, Escala Educacional, São Paulo, 2009.

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