terça-feira, 30 de janeiro de 2024

O Irresistível Baião

 Uma música lançada em 1946 possuía um ritmo binário, buliçoso, contagiante, quase impossível de resistir - no título, o nome do ritmo "baião", e a letra, muito simples, prometia ensinar a dançar 'quem quiser aprender'.


O baião realmente revolucionou - foi a primeira grande sacudida que a música brasileira urbana tomou da música regional. O lançamento do baião foi cuidadosamente urdido pelo compositor e radialista Humberto Cavalcanti Teixeira (1915-1979), um advogado cearense que se dedicou inteiramente à música, mesmo no seu mandato político posterior, quando foi eleito deputado federal. São de Teixeira as leis originais brasileiras de proteção ao direito autoral na música - e é dele também a autoria da chamada 'Lei Humberto Teixeira', que financiou excursões de artistas brasileiros ao redor do mundo em missões de divulgação de nossa cultura.


LUIZ GONZAGA

Modesto, Teixeira creditou o sucesso do lançamento do baião ao seu parceiro Luiz Gonzaga (1912-1989), então um cantor/acordeonista anônimo, pernambucano de Exu, que já vivia no Rio de Janeiro há alguns anos, tocando em shows de rádio e em casas noturnas. Num lampejo, Gonzaga decidiu incluir no seu repertório variado de polcas, serestas, valsas, sambas e foxes algumas "coisinhas" da música sertaneja nordestina. O encontro de Teixeira e Gonzaga, no Rio de Janeiro, resultou numa das parcerias mais profícuas da história da música popular brasileira.

O sucesso do baião foi imediato e avassalador. A fórmula simplificada de tocá-lo, com três instrumentos - acordeão (sanfona), zabumba e triângulo - isto, sim, uma invenção de Luiz Gonzaga, favoreceu o aparecimento de centenas de 'trios nordestinos' em todo o País, grupos musicais que tocavam baião e similares, como coco, embolada, xote, toada. A lembrar que, na época, a cultura do Nordeste e a sua música, inclusive, eram completamente desconhecidas no eixo Rio-São Paulo, o que reforçava a aceitação do baião pelo viés "exótico". Desconhecíamos completamente o baião, que o folclorista Luis Câmara Cascudo (1898-1986) associa aos termos 'baiano' e 'rojão' - sendo 'baiano', no caso, uma dança popular nordestina (derivada do verbo 'baiar', forma popular de bailar) e o segundo o pequeno trecho musical executado pelas violas no intervalo dos desafios da cantoria. O baião, que todo o resto do Brasil começaria a conhecer apenas em 1946, já existia no Nordeste desde o século anterior.


COQUELUCHE NACIONAL

Ninguém ficou indiferente ao baião, pois os artistas de São Paulo e do Rio de renome aderiram em massa à "coqueluche nacional", conforme foi chamado pela influente revista carioca Radar, em 1949. Entre os mais célebres, Carmen Miranda, Isaura Garcia, Marlene, Emilinha Borba, Dircinha Batista, Ademilde Fonseca, Stelinha Egg, Ivon Curi e Dalva de Oliveira gravaram baião. A partir de 1950, Carmélia Alves foi aclamada 'Rainha do Baião'; a revelação Claudete Soares passou a se apresentar como 'A Princesinha do Baião'. A verdade é que, até pelos menos 1957, a música brasileira e tudo mais que se referia a ela giraram principalmente em torno do baião: os sucesso radiofônicos, as edições em partitura, a produção industrial de discos, o rendimento das editoras e das gravadoras de discos.

O sopro de modernidade da bossa nova e da 'Era Juscelino' colocaram o baião, seus intérpretes e compositores num ostracismo tal que o próprio Luiz Gonzaga, cujo epíteto era 'O Rei do Baião', desapareceu por completo, só vindo ressurgir em meados dos anos 1970, alçado por uma nova geração de músicos e compositores que o veneravam como mestre.


RECONHECIMENTO

Graças a cantores como Gal Costa, Gilberto Gil e Alceu Valença, Luiz Gonzaga ganhou um merecido reconhecimento do público brasileiro nascido após o baião mergulhar no esquecimento. Todos passamos a ligar o nome de Gonzaga ao clássico 'Asa Branca', mas o parceiro Humberto Teixeira teria de esperar mais um bom tempo pelo reconhecimento. Ele morreria antes de sua memória começar a ser recuperada, em 2006 com os livros 'O Cancioneiro Humberto Teixeira', em 2008 com o cine-documentário 'O Homem Que Engarrafava Nuvens' - projetos com efetiva participação de Denise Dumont, a atriz, filha única de Teixeira, nas pesquisas e na produção.


BAIÃO INTERNACIONAL

Já no começo dos anos 1950, o baião se internacionalizou. 'Delicado', de Waldir Azevedo, recebeu diversas regravações nos EUA e Europa; não faltaram imitações: no filme italiano 'Arroz Amargo' (1951), Silvana Mangano imita Carmélia Alves em 'O Baião de Ana'; na verdade uma conga cubana, com um "baião" no título, para aproveitar a onda.

Em New York, por volta de 1956, Ahmeth Ertegun queria revitalizar sua gravadora Atlantic, especializada em jazz, existente desde 1948; chamou seu irmão Neshui, que transformou a Atlantic na Meca da moderna música black urbana - segundo uma história boa demais para não ser verdade, os Ertegun se reuniram com seu staff de produtores e lhes deram uma pilha de discos brasileiros de baião, pedindo que tirassem de lá algo que desse personalidade ao som da nova Atlantic. E, então, começaram a ser editados os discos de Ruth Brown, LaVern Baker, Drifters, Coasters, Ray Charles, Ben E. King, etc, produzidos por Ahmet Ertegun, Jerry Leiber & Mike Stoller, Phil Spector, Jerry Wexler, com o inequívoco apelo do ritmo do baião bem misturado ao rhythm & blues. Em Los Angeles, um compositor que se tornaria um dos mais importantes da história, Burt Bacharach, temperava de baião seu som pop, uma fórmula que ele iria seguir, com enorme sucesso, nas décadas seguintes. O som da Atlantic e de Bacharach seria uma influência decisiva em tod rock e pop produzido no mundo do princípio dos anos 1960 em diante.

Lamentavelmente, os mestres do baião não souberam aproveitar a viagem do ritmo pelo mundo. Sequer tiveram ânimo para reclamar a autoria - erros que os mentores e feitores da bossa nova não quiseram repetir.


Texto de René Ferri retirado da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, número 17, Escala Educacional, São Paulo, 2008.

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