quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Os embalos de uma dança muito brasileira

 Por volta de 1910, começaram a aparecer discos na Europa com a palavra 'mattschiche' acompanhando os títulos das músicas, para definir seu ritmo.


A palavra, cuja grafia costumava variar um pouco (mattcheche, mattchichi, etc), tentava traduzir foneticamente o som de maxixe, que batizava um determinado tipo de música e dança que começou a existir aqui pelo menos desde 1880.

Como gênero musical, o maxixe nasceu quando músicos populares passaram a tocar polca, que era de origem europeia e sempre executada no piano (e restrita aos salões imperiais da alta sociedade carioca), com outros instrumentos, como o violão, a viola e a flauta. Aquela nova forma de tocar polca logo se misturou a outros gêneros, como o lundu e o chorinho, a  habanera cubana e o tango argentino, presentes no repertório de grupos que animavam bailes - e tal tipo de mistura viria a ser dançada com requebrados, movimentos exagerados e sensuais, semelhantes aos do batuque, do cateretê e da embolada, que chegaram com os escravos e eram consideradas "danças pecaminosas" pelos europeus porque "envolviam o contato de umbigos".

A origem do nome (na época, grafado com 'ch') é obscura: talvez tenha sido batizado machiche porque essa palavra designava coisas de baixo valor, atestando sua gênese entre as pessoas pobres daquele quase fim de século; já Heitor Villa-Lobos (1887-1959) divulgou uma versão segundo a qual a dança foi inventada na sociedade Estudantes de Heidelberg por alguém assim apelidado. Em seu livro Maxixe - A Dança Excomungada, de 1974, Jota Efegê desmente essa versão. Segundo esse autor, a primeira vez que o nome apareceu escrito com 'x' foi numa quadrinha, em fevereiro de 1883, no Jornal do Comércio, numa publicidade do Club dos Democráticos, anunciando um baile de carnaval:

Cessa tudo quanto a musa antiga canta

Que do castelo este brado se alevanta

Caia tudo no maxixe, na folgança

Que com isso dareis gosto a Sancho Pança


O MAXIXE NO TEATRO DE REVISTA

Até então, o maxixe era somente uma dança que rapidamente se tornou sensação, imitada nos salões de baile com seus passos de nomes nada sofisticados: carrapeta, balão, parafuso, corta-capim, saca-rolha. A criação da música além da dança se deu seguindo "a forma malandra e exagerada de dançar a polca-tango que acabaria por fazer surgir o maxixe como gênero musical autônomo", nas palavras do crítico e historiador José Ramos Tinhorão, que cita o maestro César Guerra-Peixe (1914-1993) e seu artigo 'Variações Sobre o Maxixe' para descrever como aconteceu o processo: "a melodia contrapontada pela baixaria (a exageração dos baixos mesmo nos instrumentos de tessitura grave das bandas), passagens melódicas à guisa de contraponto ou variações e, em alguns casos, baixaria tomando importância capital".

Somente depois de a dança ter se caracterizado plenamente é que começou o registro de músicas com o nome maxixe - as primeiras partituras com tal designação surgiram em 1902/1903. Vale lembrar que o grande compositor e pianista Ernesto Nazareth (1863-1934) recusava o termo para designar suas obras, preferindo o nome 'tango brasileiro' (ou 'tanguinho') - quem sabe para não vincular sua música a uma origem marginal.

O teatro musicado logo se apropriou da nova mania, e as peças passaram a apresentar, quase todas, quadros em que o maxixe era tocado e dançado, como na revista República, de Arthur Azevedo (1885-1908), que popularizou 'As Laranjas da Sabina', o primeiro sucesso do maxixe; 'Maxixe Aristocrático', de 1904, de José Nunes, ficou famoso apresentado pela dupla Papa Delgado e Marzullo na revista Cá e Lá. A primeira composição gravada como maxixe foi 'Sempre Contigo' lançada pela Banda da Casa Edson, sem data (talvez 1902) e de autor desconhecido.


PARA EXPORTAÇÃO

Em 1909, o dançarino e compositor Antônio Lopes de Amorim, de nome artístico Duque, viajou para a Europa e se fixou em Paris. Pouco depois, o tango argentino, como dança, tornou-se a maior sensação nos salões da Europa, e Amorim, já conhecido como Monsieur Duque, resolveu mostrar le tango brésilien, o maxixe, em1912. Alguns editores começaram a promover o maxixe como uma forma renovada de tango; orquestras e bandas passaram a gravar maxixe para os fonógrafos - assim, de repente, o gênero se tornou uma febre. Da Europa, o maxixe seguiu para os EUA, onde foi muito bem acolhido. Em 1914, o dançarino americano Maurice Movet (1888-1927) escreveu: "O maxixe brasileiro pode ser dançado com qualquer acompanhamento musical de passo duplo, enquanto que o tango somente pode ser dançado com sua própria música. O maxixe é peculiarmente adaptado ao temperamento americano".

Os passos do maxixe a partir de sua exportação foram estilizados e coreografados. Os manuais de dança, que ensinavam as danças sociais, passaram a incluir o estilo. Vernon e Irene Castle, o casal de dançarinos mais famosos da época, adotou o maxixe, como atesta um filme mudo de 1915, que mostra os Castle exibindo a dança - o mesmo ocorre na cinebiografia The Story of Vernon and Irene Castle, de 1939, com Fred Astaire e Ginger Rogers representando o casal dançando 'Dengozo', de Ernesto Nazareth.

Passada a mania do maxixe, o gênero ainda foi dançado nos EUA e na Europa até o começo dos anos 1920. Houve várias tentativas frustradas de "substituir" o maxixe pelo samba, inclusive pelo próprio Monsieur Duque. Mas o samba é o único dos gêneros musicais hegemônicos das Américas que jamais ultrapassou fronteiras, nem como dança.

No Brasil, o maxixe resistiu com sucesso até o final dos anos 1920, tendo entre seus cultores principais os compositores Irineu de Almeida, Sebastião Cyrino, Sinhô, Romeu Silva, Pixinguinha, Pedro de Sá Pereira e J. Bicudo. A partir de então, estava destinado a reaparecer somente em filmes e telenovelas 'de época'.


Texto de René Ferri retirado da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, número 16 Escala Educacional, São Paulo, 2010.

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