sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

O filólogo que virou sinônimo de dicionário

 Um dos maiores eruditos brasileiros do século XX, Antônio Houaiss defendia o nacionalismo, a democracia e uma política linguística para o Português


No início de 1985, o Brasil vivia os primeiros tempos do retorno da democracia. A enciclopédia Retratos do Brasil lançou, então, um volume com 86 depoimentos sobre o significado dos anos da ditadura e o que se poderia esperar para o futuro. Em sua maioria, os convidados eram políticos, como  Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso. Mas, entre eles, figurava um estudioso de questões linguísticas, um filólogo de discurso afiado. Sem eufemismos, Antônio Houaiss afirmava que "o balanço dos 21 anos de autoritarismo militar" era "não apenas melancólico, senão que também catastrófico".

Para o futuro, ele sugeria "mudanças imediatas na estrutura da posse da terra, na estrutura da produção agrícola e na estrutura da nossa dívida externa e interna". Em particular, salientava que "do ponto de vista da educação, sem uma transformação das bases do primeiro ciclo, fazendo-o universal, gratuito e compulsório, por um mínimo de sete anos, acompanhado de atendimento alimentar, de vestuário e de habitação, tudo o que se quiser realizar, em termos de formação de gerações futuras, será tão elitista quanto tem sido a nosso História".

Nesses poucos enunciados, aparecem sintetizados alguns aspectos essenciais do pensamento e da ação pública de um dos mais eruditos brasileiros do século XX: o nacionalismo e a busca do desenvolvimento social, que Antônio Houaiss manteve atuantes quando tratou de temas relativos à Língua Portuguesa.


Múltiplos saberes e ofícios

A erudição de Houaiss era impressionante. Por vezes, desconcertante. Sem nenhum favor, podemos dizer que foi professor, linguista e filólogo, teórico da literatura e crítico literário, tradutor, bibliógrafo (e bibliófilo), incansável organizador de enciclopédias e dicionários, diplomata, homem político comprometido com o socialismo, conhecedor de culinária - enfim, um humanista na acepção clássica do termo.

E não foi um homem apenas de saberes, mas também de práticas. Como diplomata, ocupou cargos na República Dominicana e na Grécia, bem como junto à Organização das Nações Unidas, a ONU, tanto em Genebra quanto em New York. Como político, ajudou a fundar o Partido Socialista Brasileiro, do qual é presidente de honra, chegando a ministro da Cultura, em 1993, durante o governo de Itamar Franco. Suas ideias políticas valeram-lhe, inclusive, a aposentadoria compulsória do Itamarati e a cassação de seus direitos políticos após o golpe de 1964.

Como estudioso da linguagem, publicou inúmeras obras filológicas e de crítica literária. Além disso, traduziu a obra Ulisses, do escritor irlandês James Joyce, um dos marcos da literatura modernista do século XX. A tradução envolve imenso conhecimento das línguas inglesa e portuguesa, dada a necessidade de verter os incontáveis jogos de linguagem do original.

Foi também enciclopedista, tendo coordenado a Delta Larousse, a Mirador e a Barsa, além de ser um dos coautores da enciclopédia Koogan-Houaiss. Em 1973, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, instituição que viria a presidir em 1995.

Seu maior projeto, talvez seu maior sonho, foi a criação do mais completo dicionário da Língua Portuguesa, que leva o seu nome e o qual, infelizmente, não viu publicado. Com mais de 228 mil verbetes, o dicionário Houaiss saiu em 2001, mas seu idealizador havia falecido em 1999, na mesma Rio de Janeiro que o vira nascer em 1915.


TODAS AS LÍNGUAS PODEM TUDO

Embora amplos e variados, podemos pensar que os escritos linguísticos de Antônio Houaiss tiveram motivações, sobretudo, políticas. Não no sentido partidário ou propriamente ideológico. Falamos, aqui, da política linguística.

Houaiss defendia a ideia de que, do ponto de vista estrutural, todas as línguas se equivalem. Ele dizia: "As tentativas de estudar as línguas dos homens sob a luz de uma especificidade funcional (...) revelam, na verdade, apenas certo tipo de dependência dessas línguas para com o momento cultural do povo que a fala ou a escreve". Assim, não é correto dizer que haja línguas estruturalmente mais aptas para a expressão, por exemplo, da filosofia ou das ciências ou da política ou de qualquer outro universo de conteúdo.

Potencialmente, portanto, todas as línguas podem expressar todos os conteúdos. Entretanto, esse potencial pode ou não ser historicamente realizado. Por exemplo, idiomas como o japonês, o árabe, o chinês e o hindi, até o século XIX, não eram suporte para o pensamento científico moderno. O desenvolvimento do Japão, dos países árabes, da China e da Índia fez com que esse pensamento passasse a ser expresso nesses idiomas, eventualmente até como pensamento de ponta.

Mas esse fenômeno, é claro, pode não ocorrer - provavelmente não ocorrerá - para todas as línguas do mundo. Para Houaiss, "há, assim, um milagre linguageiro humano positivo: a isonomia sistêmica de todas as línguas; e há, em contrapartida, um milagre linguageiro negativo: só algumas foram eleitas".

É com essa abordagem - talvez excessivamente direta, mas nem por isso menos realista - que Houaiss pensou políticas linguísticas para a Língua Portuguesa, a principal delas, a unificação ortográfica dos países de Língua Portuguesa, que ele defendeu como um dos instrumentos imprescindíveis para o fortalecimento mundial do português.


Texto sem autoria identificada retirado da revista Discutindo Língua Portuguesa, Ano 1, número 2, Escala Educacional, São Paulo.

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