domingo, 18 de fevereiro de 2024

O Buraco

Nós andávamos juntos. Sempre. Era pra todo lado nós dois. Essas coisas de amigo do peito, melhor amigo, por aí. A gente nunca sabe por que o melhor amigo é o melhor entre os amigos. É, simplesmente. Uma vez me perguntaram por que o Serginho era o meu melhor amigo. Ele é legal... Legal, pô! Foi o que eu consegui responder.

Ela morava no prado, eu, na serra. A gente se encontrava no centro da cidade, praça Sete, por ali, e tomávamos refrigerante ou vitamina de aveia numa birosca ao lado do Café Pérola, fumávamos um Continental sem filtro e decidíamos o que fazer. Na maioria das vezes andávamos. Só andávamos. Pela cidade. Costumávamos ir até a Pampulha, a pé. Voltávamos também a pé. Era longe, mas a gente ia conversando, papo furado, falando mal dos outros, emitindo opiniões sobre o mundo, sobre a humanidade e sobre a bundinha das meninas.

Esses passeios serviam para que ele, o Serginho, conhecesse melhor a cidade, Belo Horizonte, pra ele, era grande pacas. Mudara-se para a cidade há pouco tempo. Nascera e se criara no interior de Minas. Bem, além desse caráter turístico-exploratório, nossas andanças tinham um motivo de força maior: éramos durangos. Preferíamos guardar o dinheiro para sabores mais significativos que os ônibus metropolitanos. Quando contávamos às pessoas nossas idas e vindas, perguntavam: "Por que não andam de ônibus?" Motivo de força maior, respondíamos. Achávamos essa expressão muito séria, troço meio radiofônico, meio Hora do Brasil - a cara da época. Gostávamos também de "Aviso aos Navegantes". Certo dia, numa roda de amigos, Serginho levantou-se solene e disse: "Aviso aos navegantes: peidei!... E fedeu". Cobriram ele de porrada, evidentemente. Ele realmente era um cara legal.

Pois então. Como eu dizia, o Serginho era do interior de Minas. A família dele tinha uma fazenda por lá. Sempre que podíamos (o que era muito frequente, porque a gente não fazia nada na vida a não ser estudar - e não éramos muito devotos dessa igreja; só dava pro gasto) nos mandávamos pra tal fazenda. O que atrapalhava um pouco era a burocracia da época. Éramos menores de idade, pra viajar precisávamos de um "papelim" do Juizado de Menores e coisa e tal. Assinatura do responsáveis (nossos pais), certidão de nascimento, "Nada Consta", declaração de renda, o diabo a quatro. Mesmo assim o "papelim" não era válido para Cuba. (Uma piadinha da época. O Brasil vivia sob a ditadura militar, e até andar com camisa vermelha era suspeito.)

Vencida a encheção de saco dos "tempos do milagre", entrávamos no ônibus e passávamos a viagem inteira comendo porcarias fantásticas, como pururuca (pele de porco frita), e bafejando a fumaça do Continental sem filtro ou do Capri na cara dos infelizes passageiros. Que por sua vez faziam a mesma coisa com a gente. Ambiente insalubre, aquele. Conhecíamos todos os milímetros (tirando o exagero...) da estrada. Tínhamos nossos pontos de parada preferidos. Que geralmente não coincidiam com os pontos de parada preferidos do meleca do motorista do ônibus.

Descíamos da "carroça" num trevo, a cerca de quatro quilômetros e meio da fazenda. E pé na estrada. Gostávamos de chegar à noite, porque dava um medão danado atravessar aquela distância no mais absoluto "breu" e uma sensação absoluta de macheza, quando a coisa terminava. Mas também havia as noites de lua, de lua cheia, em junho-julho, e era frio, e ventava, e à vezes parávamos no topo de um morro, de onde avistávamos toda a estradinha e a fazenda no vale, lá embaixo. A plantação de tomates crescendo com o rio. Água e cultura desaparecendo lá pras bandas da fazenda São Miguel, a fazenda vizinha, onde havia uma olaria de uns caras legais, gente nossa. Vez por outra íamos até lá, caçar tatu ou simplesmente conversar olhando a pilha de tijolos na queima. Lindo.

A meio do caminho da fazenda havia uma mata de eucaliptos. Era o momento mais terrível e o mais esperado. Primeiro, porque era um cagaço só, passar por lá à noite ou mesmo durante o dia. Um lugar assombrado. Diziam que um fulano, colono velho, morrera ali, de emboscada. Segundo, porque nessa mata (bom, a gente chamava aquilo de mata) as cigarras trocavam a pele - pele? A casca, sei lá! Sei que elas saíam da pele-casca velha por uma abertura logo acima da cabeça, e a pele-casca velha ficava grudadinha, inteirinha, no tronco do eucalipto. Pois catávamos essas peles- cascas que eram iguaizinhas a uma cigarra; uma cigarra anêmica, é verdade, mas nem por isso menos útil aos nossos fins. Nossos fins eram sacanagens, é claro. Não havia ninguém, menino ou menina (professora, então, nem se fala), que não borrasse de medo daquelas coisas. Sensacional. Presenciamos muitos escândalos e neurastenias deslumbrantes.

Ficávamos vários dias na fazenda. Ajudávamos no trabalho, pela manhã. Carregávamos cestos de capim para o gado, cortávamos cana-de-açúcar, levávamos os bezerros pro "pastim", limpávamos o estábulo, milho pras galinhas e etc., etc., etc. À tarde, saíamos, a cavalo ou a pé inventando o que fazer. Visitas, pescarias, explorações. Explorações: eram sem dúvida a melhor parte.

Um dia, descendo um morro (como tem na nossa terra, benzadeus!), deparamos com um buraco caprichado. Grande por demais. Paramos. Estudamos o trem (o buraco). Era serviço de erosão. Anos, talvez décadas de erosão. Monumental. Uma fenda na terra que começava estreitinha e abria-se, morro abaixo, chegando a ter uns dois metros de largura por três de fundura. Depois, afinava-se novamente. Olhei pro Serginho.. Ele estava pensando o mesmo que eu. Começamos a descer, sem precisar de muita conversa. Tentação de mais.

Descíamos. De repente, apareceu uma espécie de cascatinha. A água caía, de onde estávamos a quase dois metros, até lá embaixo. Estávamos chegando à parte mais larga do buraco. Serginho foi o primeiro. Pulou. Atolou a perna esquerda quase até o joelho na lama, mas tudo bem. Dava pra pular numa boa. Pulei também. Tive menos sorte: escorreguei e fui de bunda na lama. Um horror. Ele riu. "Tá rindo de que, pau-de-bosta?", disse eu.

Fomos em frente. O lá fora cada vez mais lá fora. Mais fundo que a gente imaginou. E aí o buraco começou a ficar estreito, outra vez. E foi ficando... ficando... fim da linha. Assim, de repente. Acabava num quase-paredão impossível de escalar. Começamos a voltar. E voltávamos cabreiros.

- Será que dá pra subir a cascatinha? - perguntou o Serginho.

- Sei lá... - respondi, olhando pro chão.

Acendi um cigarro e tinha certeza de que não dava pra subir a droga da cascatinha lamacenta. Mas não dava mesmo. "Não vou me preocupar antes da hora", disse pro meu medo. E continuamos andando. O passo apressava-se, sem que sentíssemos: cheirava a problema, a situação.

Chegamos. Observamos, andamos daqui-prali, e olha, olha, quem sabe, hummm, pode ser. Resolvemos tentar, apoiando nas saliências que havia, do lado direito da parede do buraco. Fui primeiro. Era o mais pesado, e, se as saliências me aguentassem, aguentariam também o Serginho. Qual o quê: desmancharam-se sob minhas mãos e lá fui outra vez pra lama. O bunda-mole do Serginho rindo. Acho que ria mais de medo, desta vez.

Fiquei tentando me limpar, inutilmente. E o buraco enchendo-se de silêncio. Serginho, de pé, olhava as paredes do buraco, mãos na cintura, feito um engenheiro fiscalizando a obra. Achei um cantinho razoavelmente confortável e desabei lá, sujo, puto da vida e bastante pessimista, confesso.

Pensava no meu enterro. Estava lá eu, magrinho no caixão. Comoção geral, muito choro, muita flor, comentários: "Pobres rapazes, morrer assim, de fome e sede, no fundo de um buraco... Eram meio malucos, talvez um pouco maldosos demais, é verdade, mas eram bons rapazes. Quem sabe viriam a ser famosos engenheiros, ou médicos (todo mundo achava, naquela época, que só existiam três profissões: médico, engenheiro e advogado), presidentes da República..." E mais choro. As meninas fazendo cena, arrancando os cabelos, rasgando as roupas, querendo pegar uma florzinha que fosse do caixão, ou uma mecha de cabelo. Todo mundo lá: minha mãe, meu pai, os pais do Serginho, o disciplinário do colégio, o padre-reitor, nossos amigos.

Nossos amigos. Ah, como eu sentiria falta dos caras! E eles de mim. O Diocrésio, por exemplo, sentiria falta de quem o protegesse das canalhices dos colegas. Nós o chamávamos Didi. Mas não era por causa do nome, propriamente; era por causa da gagueira. O Didi era gago. Quando lhe perguntavam o nome, ele tremelicava todo e mandava: "Di... di... diocrrrrrrrésio". Era Didi, portanto. Adorava poesia. Vez em quando, ele ficava muito nervoso com a própria gagueira e levantava-se, vermelho feito um peru, desgraçava a recitar poemas, um atrás do outro, mas não gaguejava nem uma vírgula. O pessoal adorava. Provocavam o infeliz até o desespero e ele largava a enxurrada de versos, parando somente coma exaustão. Eu achava meio mórbido a coisa e retirava o Didi da roda antes que fosse tarde.

E o "Cês Quatro". Um cara gordo, mas gordo mesmo. E alto. Mandava fazer os sapatos: 47, o número dele. Ocupava tanto espaço que recebeu este apelido: "Cês Quatro". Valia por quatro. Tinha veleidades de ator. Vivia enfiado nos grupos de teatro amador do colégio. E o "Mancada", que recebeu esse apelido por razões óbvias. E o "Meleca" (o mesmo caso), e o Nelson "Batata", e um monte de outros tubérculos, raízes, legumes, frutas, utensílios domésticos, objetos dos mais variados e órgãos sexuais que habitavam os corredores ginasianos do nosso cotidiano. Imaginei-os comentando alguma besteira, a meia voz, e rindo sufocado - risinho  safado, durante o enterro. Pegaram o boi com chifre e tudo: por causa do meu enterro (meu e do Serginho) o colégio não funcionara. "Luto porr éstes chofens e promissorres alunas da nosso educandárrio", discursava o padre-reitor, em seu sotaque tedesco.

Percebi alguma coisa se mexendo, logo à minha frente. Era um bicho muito do esquisito. Parecia um grilo. Mas eu nunca tinha visto um grilo como aquele. Um grilo dos buracos, pensei. Era grande e cinzento. "O que será que esse bicho come aqui nesse buraco?", pensei. Terra não era. Grama, só a alguns metros acima. Outros insetos? Era possível. Mas também pensei que eu e o Serginho bem que poderíamos servir de refeição pro bicho, dali a alguns dias.

Foi demais. Morrer de fome e sede, vá lá: não havia outro jeito. Até soava meio heroico, meio martírio. Dava status morrer de fome e sede. Mas servir de comida praquele bicharoco estranho não ia ser possível. Desmoralização total. Comida de grilo, nem pensar! Olhei pro Serginho. Estava na mesma posição exploratória. Levantei-me, andei pelo buraco. Vi, pouco mais abaixo, um ponto em que o buraco estreitava-se por causa de uma enorme pedra, com uma das pontas à mostra, como se a parede estivesse pondo a língua pra gente. Chamei o Serginho.

- Se a gente conseguir alcançar aquela ponta de pedra, acho que dá pra chegar até em cima - disse eu.

Agachei-me e o Serginho subiu em meus ombros. Conseguiu alcançar a pedra. De lá, deitado, estendeu-me a mão e, com alguma dificuldade, derrapando nas paredes pedras-sabão do buraco, eu também alcancei a "língua da pedra". De onde estávamos até o topo, subimos apoiando as costas numa parede e os pés na outra, uma vez que a distância entre elas era menor, naquele ponto.

Livres, enfim. Deitamos de papo pro ar, ofegantes. Eu ouvia a respiração do Serginho, o córrego chuá-chuá ao pé do morro, o mugido distante do gado. E azul e branco, nuvens e céu, sol no rosto. Ficamos assim por um bom tempo: quietos, respirando a amplitude. Depois, olhei pro Serginho e ele olhou pra mim. Desatamos a rir. E rimos, e rimos, e rimos. A gente se torcia de rir abraçados ao sem-fim da paisagem à nossa volta.

Começamos a descer o morro, em direção à sede da fazendo. Ele na frente. Calados os dois. Eu olhava meu amigo: todo sujo, cansado, mas feliz.

Pensei que buraco nenhum do mundo poderia nos segurar. Pensei que nós dois, assim, juntos, éramos imbatíveis. Mais espertos que qualquer encrenca que aparecesse. Nenhum grilo haveria de nos devorar. Ah, isso é que não!

Que enterro, que choradeira, que luto, que nada: éramos imortais.

- Amanhã a gente volta - disse eu ao meu amigo.

- Com uma corda e umas ferramentas - completou Serginho.

E rimos, outra vez. Muito bem, buraco, muito bem, mundo velho: agora vocês sabem quem é que manda por aqui. E fim de papo!


Conto de Murilo Cisalpino retirado do livro Amigos, Coleção Vínculos, Editora Atual, 2ª Edição, São Paulo, 1992.

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