domingo, 4 de fevereiro de 2024

Cada palavra, uma história

 Semelhanças entre vocábulos de idiomas diferentes nem sempre indicam parentesco entre eles


Todos já ouviram falar algo sobre o Indo-europeu e muitas vezes, por isso mesmo, existe uma ideia errônea da chamada "árvore genealógica das línguas", proposta pela Stammbaumtheorie de August Scheleicher, em meados do século 19.

Hoje, amadurecidos, os linguistas sabem que a história das línguas não se confunde com a história das culturas e, muito menos, com a das etnias. O inglês é falado por estadunidenses, nigerianos e indianos, e exemplos assim podem ser multiplicados infinitamente.

Mais que isso: nenhum idioma nunca foi falado por um povo homogêneo. A formação da identidade nacional e do seu consequente nacionalismo é fato recente na história da humanidade.

Começou, provavelmente, no final da Guerra dos Cem Anos, e no início do século 15 tínhamos suas primeiras evidências. Os renascentistas eram extremamente patriotas, e esse sentimento foi crescendo com as conquistas napoleônicas e o romantismo afora, até o final da Segunda Guerra Mundial. É um forte traço remanescente e ainda distante de seu fim.

Por isso, indo-europeus nunca existiram: o que houve de fato eram povos falantes de Indo-europeu. A miscigenação e o bilinguismo - muitas vezes promovidos por casamentos e comércio - foram os grandes motivos da expansão de uma língua desde a Antiguidade. Se não difundiam o idioma, expandiam a compreensão das palavras: empréstimos ocorrem desde a Pré-história. Assim, muitas palavras comuns entre o Indo-europeu e o Kartveliano (de onde saíram muitas línguas atuais do Cáucaso, sendo a mais conhecida o Georgiano) se devem a empréstimos mútuos. Os defensores da teoria do Nostrático - língua-mãe de inúmeros outros idiomas, protolíngua que inclui grande número de troncos - esbarram sempre nessa dificuldade.


Árvore das Línguas

Hoje se sabe que a árvore das línguas é, na verdade, a árvore das estruturas linguísticas. O léxico comum não garante afinidade genealógica entre os idiomas. Por isso, o Inglês possui muitas palavras parecidas com o Francês, Italiano, Português e não é considerada língua românica, mas germânica, isto é, aparentada com o Alemão, Holandês, Sueco, Norueguês.

Ainda assim, um falante de Português que desconheça o Inglês, lendo um texto nessa língua, tem muito mais probabilidade de entender algumas palavras - com "education", "incontestable", "laryngitis" e "submarine" - do que se estivesse diante de suas correspondentes em Alemão - "Erziehung", "Unbestreitbar", "Kehlkopfentzündung" e "Unterseeboot". Como dizer, então, que Inglês e Alemão são parentes mais próximas do que Inglês e Português?

A proximidade está na estrutura e não no vocabulário: mais de 70% das palavras inglesas vieram do Francês normando, devido a fatos históricos, como o domínio da França sobre o território inglês. Também os falantes de Árabe e de Persa são na maioria muçulmanos, usam o mesmo alfabeto, têm um grande número de palavras comuns, embora suas línguas sejam de troncos completamente diferentes: o Persa é Indo-europeu, e o Árabe é semítico.

Se compararmos, contudo, os artigos, as preposições, os numerais, as flexões verbais e outros elementos do chamado "inventário fechado" dos idiomas encontraremos aí mais semelhança entre diferentes línguas de uma mesma família do que de outras. O Português tem preposições como "de", "em", "com" e "a", e numerais como "dois", "três" e "quatro", que equivalem a formas muito parecidas em Espanhol, Italiano, Francês, Romeno. Já o Inglês "the", "out", "on", "four" e "seven" se assemelham muito ao Alemão "der", "das", "aus", "an", "vier" e "sieben". Por isso são parentes.


História individual

Voltando agora às diferenças: novamente temos aí um falso problema. Tomemos como exemplos os termos alemães que já apresentamos.

"Erziehung" ("educação") tem o radical "zieh", que quer dizer "puxar", equivalente ao "duc-" latino do qual vem "e-duc-ação". "Unbestreitbar" ("incontestável") também é palavra culta, criada na Idade Média, com radical "streit-", que quer dizer "brigar" (o radical latino equivalente é "pugn-"): as partes da palavra "Un-be-streit-bar" equivalem literalmente a algo como "in-im-pugn-ável".

A palavra "Kehlkopfentzündung" ("laringite") é claríssima para qualquer falante de Alemão - diferentemente de tantas palavras médicas em Português, formadas sobre radicais gregos e latinos como "cistotomia", "onicorrexia", "encefalopatia", que excluem os leigos. É formada de duas palavras: a primeira, "Kehlkopf", literalmente significa "cabeça da garganta", nome popular da laringe, adotada pela Medicina alemã; e a segunda "Entzündung", tem o radical "zünd-", "pôr chamas, acender". Daí novamente, temos a influência da palavra latina que gerou o termo "in-flam-ação" em Português. Em "Unterseeboot" ("submarino") também os elementos do decalque são muito claros: "Unter" significa "sub", "See" quer dizer "no mar" e "Boot", barco. Ou seja: "barco submarino".

Não são, portanto, palavras cultas, ligadas à Ciência e à Tecnologia, que nos auxiliarão a chegar mais próximo do Indo-europeu. O contato dos idiomas promove os empréstimos e as referências, embora alguns sejam difíceis de ser reconhecidos.

Se o Alemão criou muitos termos travestindo palavras latinas durante o período do Sacro Império Romano-Germânico, o Tcheco, durante o período do reino da Boêmia, já se baseou no Alemão para criar as suas: "vy-slov-nost" equivale ao Alemão "Aus-sprache", que significa "pronúncia"; "caso-pis" equivale a "Zeit-schrift", "revista"; e as partes da palavra "za-mûst-nán-i" equivalem a "An-ge-stellt-er", "empregado". Não são palavras da vida moderna que garantem que o Tcheco seja eslavo e, o Alemão, germânico.

Conclui-se que algumas palavras são universais (e o Francês contribuiu muito para que o fossem nos séculos 18 e 19), outras são restritas a algumas línguas, outras ainda, têm sua universalidade escondida. Deveríamos pensar seriamente se não há uma história individual de cada palavra ao lado de uma história das estruturas linguísticas, comumente chamada de "história das línguas".


Texto de Mário Eduardo Viaro, professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP. Material retirado da revista Discutindo Língua Portuguesa, Ano I, número 4, Escala Educacional, São Paulo.

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