terça-feira, 31 de maio de 2022

As Árvores

Já vi estrelas demais

e ainda estou sem saber

Se escurecer faz gear

como me faz sofrer


Só de pensar em você

as nuvens sabem de nós

E quando o vento aí bater

ouça a minha voz


Aceite gostar de mim

e o tempo dirá por nós

Ninguém vai julgar

desarma esse olhar


Adentre pelos meus jardins

aceite gostar de mim

Não lute com o que mais quer

te espero sem fim

te venero assim

As árvores morrem de pé


É quando a névoa se esvai

Que a noite vem pra valer

E a lua nova conduz

Mais um luar sem luz


Você não sabe o que faz

Do que nasceu entre nós

Então me dê sua mão

Eu sei, eu sei do que sou capaz


Aceite gostar de mim

E o tempo dirá por nós

Ninguém vai julgar

Desarma esse olhar


Adentre pelos meus jardins

Aceite gostar de mim

Não lute contra o que mais quer

Te espero sem fim

Te venero assim

As árvores morrem de pé


Música de Jorge Vercilo que faz parte do CD Livre, lançado pelo EMI em 2003.

sábado, 28 de maio de 2022

Ação Mediúnica

    A faculdade mediúnica se encontra em germe na constituição fisiológica dos homens, consoante acentuou Allan Kardec, em forma de uma certa predisposição orgânica.

    Recurso do Espírito, que é o seu portador legítimo, necessita de células especiais a fim de exteriorizar-se, como ocorre com as demais faculdades intelectuais e morais, que se expressam na convivência social e na atitude pessoal.

    Exigindo a aplicação de variado elenco de recursos morais e culturais, pode ser educada para valiosos investimentos da vida.

    Com finalidade específica estabelecida, deve ser exercitada de maneira consciente e equilibrada, sem o que não consegue alcançar a meta para a qual se destina.

    Polimorfa, na sua manifestação, expande-se de acordo com os recursos que lhe são colocados ao alcance.

    Por isso mesmo, deve ser estudada com zelo, mediante a identificação dos sintomas, da sua fisiologia, recorrendo-se a austeras disciplinas geradoras de hábitos salutares, que facilitam o seu correto exercício.

    A conduta moral é-lhe de vital importância, em razão das afinidades pessoais existentes entre aqueles que se movimentam nas equivalentes faixas vibratórias.

    A faculdade mediúnica é, todavia, neutra em si mesma, sendo, o fenômeno a que dá origem, correspondente às condições ético-morais do médium.

    Nesse sentido, a vigilância assume um compromisso de alta relevância, graças à qual a mente e a conduta selecionam o que é de mais benéfico para o melhor resultado das funções a que se propõem.

    Torna-se necessário observar algumas regras para uso imediato por parte de quem deseje atuar mediunicamente com segurança e aproveitamento.

    Certamente, o fenômeno ocorre também desordenado, tumultuoso, obsessivo, de nível inferior, perturbando e confundindo aqueles que não se encontram equipados pelos conhecimentos para bem o conduzirem.

    Assim, para a conquista de manifestações razoáveis e benéficas, tornam-se imperiosos:

    o estudo sistemático da mediunidade;

    o equilíbrio moral, especialmente no que corresponde à área da conduta sexual;

    o correto exercício da faculdade;

    a disciplina das emoções e manifestações nervosas;

    o clima de prece, meditação e pensamentos elevados;

    a ação constante no bem ao próximo, em última análise, benéfico para si próprio;

    a alimentação frugal nos dias reservados ao ministério;

    o repouso físico e a boa disposição, sem os choques intempestivos das emoções violentas...

    Não estão apresentadas aqui todas as condições para um bom desempenho mediúnico, somente logrado através do tempo e sob a supervisão cuidadosa dos Espíritos Superiores.

    Todavia, qualquer pessoa portadora de faculdade mediúnica, seguindo, à risca, as diretrizes relacionadas, conseguirá resultados expressivos e animadores, avançando para etapas mais significativas a caminho do mediunato, que somente se consegue por meio de abnegação e renúncia, ao lado do trabalho infatigável em favor do bem geral.

    Conhecida em todos os tempos da cultura sócio-histórico-antropológica, na Terra, tem-se manifestado a ação mediúnica através de complexas expressões.

    Nabucodonosor, o célebre rei da Assíria, com frequência visitado por Entidades perversas, assumia postura chocante sob a injunção de doloroso fenômeno obsessivo, que o maltratava mediunicamente.

    Akenathon, o insigne faraó egípcio, inspirado por excelentes Numes Tutelares, penetrou, psiquicamente, no mundo espiritual, oferecendo nobre visão de Deus, através da deidade Athon representada no Astro-rei, que se faz presente em tudo e sustenta a vida...

    Pitágoras, iniciado na comunicação com os Espíritos, ensinava as técnicas de educação espiritual, no seu santuário em Crotona.

    Domício Nero, déspota e alienado, sofria a visita mediúnica da genitora e da esposa, que ele assassinara.

    Na esfera do Cristianismo, as comunicações mediúnicas eram comuns, e o Apóstolo Paulo, escrevendo aos coríntios, apresentou a variedade dos dons mediúnicos que se encontram presentes nas criaturas.

    Francisco de Assis ou Teresa d'Ávila, Condorcet ou Voltaire, Schuman ou Schiller, para citar apenas alguns, foram instrumentos dos Imortais, que lhes tangiam as cordas sensíveis da alma, trazendo do Mundo maior as belas páginas de diversificada cultura e arte que ainda deslumbram e comovem a Humanidade.

    Não te escuses em fazer parte desse grupo de obreiros do bom, do bem e do belo, exercendo a caridade, que se encarregará de alterar a paisagem atual do Planeta, de forma a permitir que o amor estabeleça as regras da felicidade que parece tardar entre os homens.

    A ação mediúnica precederá o advento do reinado espiritual que está programado para breve tempo.

    Faze silêncio e ama com empenho o serviço fraternal, a fim de ouvires essas estrelas fulgurantes que são as vozes dos céus, que ora vêm à Terra buscando erguer os homens.

    Criteriosa e conscientemente, estuda, trabalha e serve, recordando-te que mesmo Jesus, que facilmente se movimentava nas mais diversas vibrações, não poucas vezes, durante o Seu ministério, buscava, após a ação caridosa, a oração e o silêncio, para falar com o Pai e depois retornar ao convívio dos homens, a fim de os elevar das baixadas das sensações terrestres às culminâncias das emoções celestes.


Texto retirado do livro Momentos de Esperança; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2014, 3ª Edição.

terça-feira, 24 de maio de 2022

Orixás, forças de Olorum

    Na tradição Iorubá, os orixás são entidades sobrenaturais, forças da natureza emanadas de Olorum, uma das divindades da criação. Guiam a consciência dos vivos e protegem as atividades de manutenção da comunidade.

    Os principais orixás cultuados no Brasil são:

OXALÁ

Nome brasileiro do orixá Obatalá, emanação direta de Olorum, uma das divindades da criação da humanidade e o mais elevado dos deuses iorubás. Sua cor é o branco, seu símbolo, o cajado e seu dia é sexta-feira.

IEMANJÁ

Grande orixá feminino das águas, reverenciadas no Brasil como mãe de todos os orixás. Sua festa é no dia 2 de fevereiro, mas é muito homenageada também na noite de 31 de dezembro nas praias. Um de seus símbolos é um colar de contas cristalinas como água. Seu dia é sábado e sua cor é o azul.

OXUM

Orixá feminino das águas doces, da riqueza e do amor. Seus principais símbolos são os seixos rolados e sua cor é o amarelo. Por causa de sua beleza, foi desejada por todos os orixás e fez vários maridos e amantes entre eles, complicando a genealogia dos orixás iorubanos. Seu dia também é o sábado.

OXÓSSI

Orixá da caça e dos caçadores. Desbravador de caminhos, é o guia de Ogum na remoção dos obstáculos ao crescimento espiritual e na indicação de atalhos para se atingir os objetivos. Tem por símbolo o arco e a flecha. Sua cor é o verde e seu dia é quinta-feira.

OGUM

Orixá das lutas e das guerras. Participou da criação provendo as montanhas e os minerais. Seu símbolo é a espada, com o qual abre os caminhos do desconhecido, contribuindo para o avanço da humanidade. Sua cor é o anil ou o vermelho. Seu dia é quinta-feira.

IANSÃ

Orixá feminino também conhecida como Oyá. Esposa de Xangô, é guerreira e suas cores são o vermelho e o branco. Seu dia é a quarta-feira e seu símbolo, o raio, pois seu domínio são os ventos e as tempestades.

XANGÔ

Poderoso orixá, senhor do raio e do trovão. Participou da criação controlando a atmosfera. É neto do Ogum e foi rei da cidade de Oyó. Seu símbolo é o machado de duas lâminas, as quartas-feiras lhe pertencem e suas cores são o vermelho e o branco. No Brasil, é tido como o senhor da justiça.

EXU

Também chamado Elegbara, "o dono da força", é o porta-voz dos orixás, o grande mensageiro, responsável por entregar aos homens as dádivas dos orixás, sejam espirituais ou materiais. Protetor do cumpridores de seus deveres, pune aqueles que ofendem os orixás ou falham no cumprimento de obrigações. Seu dia é segunda-feira, suas cores são o preto e o vermelho e seu símbolo é o tridente.


Retirado da Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 1, nº 5, Dezembro de 2005. Ministério da Cultura.

sábado, 21 de maio de 2022

Terapia da Oração

    Recurso valioso para todo momento ou necessidade, a oração encontra-se ao alcance de quem deseja paz e realização, alternando para melhor os fatores que fomentam a vida e facultam o seu desenvolvimento.

    A oração é o instrumento pelo qual a criatura fala a Deus, e a inspiração pelo qual a criatura fala a Deus, e a inspiração lhe chega na condição de divina resposta.

    Quando alguém ora, luariza a paisagem mental e inunda-se de paz, revitalizando os fulcros da energia mantenedora da vida.

    A oração sincera, feita de entrega íntima a Deus, desenvolve a percepção de realidades normalmente não detectadas, que fazem parte do mundo extrafísico.

    O ser material é condensação do energético, real, transitoriamente organizado em complexos celulares para o objetivo essencial da evolução. Desarticulando-se, ou sofrendo influências degenerativas, necessita de reparos nos intrincados mecanismos vibratórios, de modo a recompor-se, reequilibrar-se e manter a harmonia indispensável para alcançar a finalidade a que se destina.

    O psiquismo que ora consegue resistências no campo de energia, que converte em forças de manutenção dos equipamentos nervosos e funcionais da mente e do corpo.

    A oração induz à paz e produz estabilidade emocional, geradora de saúde integral.

    A mente que ora, sintoniza com as Fontes da Vida, enriquecendo-se de forças espirituais e lucidez.

    Terapia valiosa, a oração atrai as energias refazentes que reajustam moléculas orgânicas no mapa do equilíbrio físico, ao tempo que dinamiza as potencialidades psíquicas e emocionais revigorando o indivíduo.

    Quando um enfermo ora, recebe valiosa transfusão de forças, que vitalizam os leucócitos para a batalha da saúde e sustentação dos campos imunológicos, restaurando-lhes as defesas.

    O indivíduo é sempre o resultado dos pensamentos que elabora, que acolhe e que emite.

    O pessimista autodestrói-se, enquanto o otimista autossustenta-se.

    Aquele que crê nas próprias possibilidades desenvolve-as, aprimora-se e maneja com segurança.

    Aqueloutro que duvida de si mesmo e dos próprios recursos, envolvendo-se em psicosfera perturbadora, desarranja os centros de força e exaure-se, especialmente quando enfermo. Assemelha-se a uma vela acesa nas duas extremidades, que consome duplamente o combustível que sustenta a luz até sua extinção.

    A mente que se vincula à oração ilumina-se sem desprender vitalidade, antes haurindo-a, e mais expandindo a claridade que possui.

    Envolvendo-se nas irradiações da oração a que se entregue, logrará o ser enriquecer-se de saúde, de alegria e paz, porquanto a oração é o interfone poderoso pelo qual ele fala s Deus, e por cujo meio, inspirado e pacificado, recebe a resposta do Pai.

    Ao lado, portanto, de qualquer terapia prescrita, seja a oração a de maior significado e a mais simples a ser utilizada.


Texto retirado do livro Momentos Enriquecedores; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2ª Edição, 2015.

quinta-feira, 19 de maio de 2022

De escravas fugidas a mães-de-santo cultuadas

    Muitos relatos insistem na ideia de que os diversos candomblés da Bahia serviam de esconderijo para escravos fugidos e, até a metade do século XIX, jornais e relatórios policiais expressavam o temor de que batuques africanos servissem de ensaios para levantes escravos. Não é então acidental que, no início do século, o conde da Ponte tivesse confundido quilombos com candomblés. Esse ponto de vista persistiu porque os escravos continuavam a fugir para as casas de culto africano, onde buscavam especialistas religiosos para obter ervas e preparos a fim de "amansar" seus senhores e obter ajuda dos deuses para conquistar a liberdade. Com frequência pagavam consultas e oferendas com bens roubados de seus donos. O mero comparecimento a cerimônias do candomblé perturbava as relações escravistas porque prejudicava o desempenho do escravo no trabalho.

    Por isso, com frequência, a polícia recebia reclamações de senhores, e a imprensa investia contra os sacerdotes de candomblé que supostamente aprisionavam escravos em seus terreiros. No mais das vezes, tais reclamações se referiam a escravas. Se a maioria dos indivíduos em posição de liderança eram homens, eram as mulheres a vasta maioria das pessoas vistas ou presas pela polícia em candomblés, e que  reconhecidamente dançavam para os deuses ou se iniciavam para servi-los.

    Isso pode explicar por que, na virada do século, as mulheres se tornariam elemento dominante na hierarquia do candomblé. Elas estavam sendo formadas na religião em número muito superior aos homens, os quais aparentemente se recusavam a submeter-se aos complexos ritos iniciáticos - ou então esses ritos lhes eram vedados.

    De um ponto de vista sociológico, a hegemonia feminina que se estabeleceu no candomblé fora construída sob um regime escravista, particularmente em seu lado urbano, no qual elas eram mais independentes e gozavam de mais oportunidades de ascensão social. Mulheres obtinham a alforria em ritmo superior ao dos homens, por exemplo, e tornavam-se bem-sucedidos comerciantes na Bahia, em especial no setor de venda de comida. Dessa forma, a proeminência ritual em certo sentido traduziria a posição social delas. Mas razões de ordem ritual não devem ter sido desprezíveis. Grupos iniciáticos femininos se tornaram tradição em diversas casas de culto baianas, no rastro do Ilê Iya Nassô e seus rebentos: o Gantois e o Axé Opô Afonjá. Enquanto o posto exclusivamente masculino de babalaô (sacerdote-adivinho de Ifá ou Fa) declinou até quase se extinguir, as mulheres tomaram conta do negócio da adivinhação, junto com outras atribuições rituais essenciais no âmbito da religião. Com o desaparecimento dos africanos da população da Bahia e o estabelecimento da supremacia feminina entre os iniciados, a geração seguinte de líderes - a dos crioulos - tornou-se, dessa forma, predominantemente feminina. Se não predominaram em número, como alguns afirmam, destacaram-se na fama e no poder. Tornaram-se míticas e veneradas em todo o Brasil, figuras como Mãe Senhora do Axé Opô e Menininha do Gantois.


Texto de João José Reis retirado da Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 1, nº 6, Dezembro de 2005. Ministério da Cultura.

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Bahia de todas as Áfricas

A trajetória dos líderes e devotos do candomblé do século XIX revela que a história das religiões afro-brasileiras é, sobretudo, a da crescente mistura étnica e social em torno da fé.


    Foi na Bahia do século XIX que ficou estabelecido o modelo básico adotado pelo candomblé que conhecemos hoje. Segundo a tradição, o Ilê Iya Nassô - a Casa de Mãe Nassô, popularmente conhecida como Candomblé do Engenho Novo ou Casa Branca - teria sido o primeiro a celebrar diferentes deuses simultaneamente sob o mesmo teto. Essa prática refletiria alianças entre grupos étnicos diferentes, contribuindo para a consolidação de novas identidades africanas em terras brasileiras.

    Mas teria sido aquele terreiro o único com essas características no ambiente que o viu nascer? Pouco se sabe sobre a história das religiões afro-brasileiras no século XIX, inclusive sobre os indivíduos e grupos envolvidos. É a respeito de líderes, acólitos, devotos e clientes que vamos falar aqui. Informações sobre homens e mulheres participantes de formas diversas nesses rituais aparecem basicamente em dois tipos de fontes, os registros policiais e as notícias de jornal. Os indivíduos que produziam esses documentos, em geral, não eram iniciados no candomblé, não tinham interesse nele como tema de pesquisa, curiosidade ou lazer, e o estavam perseguindo e/ou condenando. Por isso, as informações se apresentam quase sempre incompletas, distorcidas ou simplesmente equivocadas. Apesar disso, revelam muito das práticas e dos praticantes ligados aos cultos de origem africana ao longo do século XIX.

    Durante esse período, na Bahia, a maior atividade do candomblé acontecia nos subúrbios de Salvador. Apesar disso, não foram poucas as denúncias de episódios acontecidos na cidade, sob as barbas da polícia, como insistia O Alabama, periódico "crítico e chistoso", publicado entre 1864 e 1871. Dedicando-se a uma dura e sistemática campanha contra os candomblés baianos, o jornal publicava, com considerável frequência, histórias de pessoas envolvidas nesses rituais.

    Os que podem ser considerados líderes do candomblé não eram apenas os indivíduos que presidiam os terreiros propriamente - ou seja, uma comunidade religiosa com seu grupo de iniciados, estrutura hierárquica e organizacional, calendário de festas e assim por diante. Eram também os auxiliares mais próximos dos chefes de terreiros, incluindo, por exemplo, o líder dos tocadores de atabaques e o responsável pelo sacrifício votivo de animais. Com frequência, adivinhos e curandeiros atendiam em casa, sem participar da hierarquia dos terreiros de candomblé. Alguns atraíam centenas de consulentes, mesmo de fora da Bahia, até da África.

    Nomes como o da sacerdotisa Nicácia, uma mulata que teria morrido em 14 de março de 1807, conforme registrado com precisão, no final do século XIX, em um Resumo chronologico e noticioso da Província da Bahia desde seu descobrimento em 1500. Segundo o autor da obra, o registro de Nicácia fora feito porque ela "tão falada foi por muito tempo e da qual inda hoje se referem factos interessantes". Infelizmente ele não relata esses "factos". Moradora no Cabula, na época periferia rural e hoje bairro popular de Salvador, Nicácia demonstrou seu carisma alguns meses antes quando uma multidão a seguira até a cidade, presa por ordem do governador da capitania da Bahia, o conde da Ponte. Esse governador desencadeou uma vigorosa campanha expressiva contra candomblés e quilombos nos arredores da capital e no recôncavo dos engenhos. Mas a perseguição aos cultos afro aconteceu durante quase todo o século XIX na Bahia.

    Amaro, um liberto africano, foi uma vítima. Preso em novembro de 1855 em incursão policial provocada por rumores de uma conspiração de escravos, era suspeito de ser "o grande sacerdote dos africanos" no distrito da Sé, populoso centro administrativo e religioso de Salvador. Com ele foi encontrada a maioria dos "vários objectos de [...] crenças" africanas confiscados em sua casa e outras da vizinhança. Alguns desses objetos foram assim descritos pelo subdelegado: "figuras, símbolos, sapos mortos e secos, chocalhos, pandeiros e algumas vestimentas". Nessa mesma ocasião, na freguesia de Santana, foi preso o crioulo (preto nascido no Brasil) Francisco Antônio Rodrigues, o Vico Papai, segundo relatório policial porque "com embustes e superstições reúne em sua casa Africanos escravos para dançar e [para] batuques com ofensa à moral pública". Nem Amaro nem Vico Papai estavam liderando conspiração alguma, mas sim cultos da religião africana, o que não deixava de ser uma forma de rebeldia.

    A maioria dos líderes identificados no período tinha nascido na África. É possível ir um pouco mais longe na tentativa de determinar a origem deles. Os escravos  importados para a Bahia ao longo da primeira metade do século XIX vieram principalmente de povos do grupo linguístico gbe, localizados sobretudo na atual República de Benin, conhecidos como jeje na Bahia; ou eram falantes do iorubá, vindos do sudoeste da atual Nigéria e chamados nagôs na Bahia. Maiores vítimas do tráfico transatlântico nos anos que antecederam sua proibição definitiva, em 1850, os nagôs alcançaram a marca de quase 80% dos escravos africanos em Salvador na década de 1860. Tradições religiosas nagôs e jejes predominaram no candomblé da Bahia oitocentista, mas, no final do século, os nagôs já tinham estabelecido sua hegemonia.

    Embora candomblé seja um vocábulo de origem banta (família linguística dos escravos chamados no Brasil angolas, congos, benguelas, cabindas etc., trazidos principalmente de território da atual Angola), poucas são as evidências escritas sobre cultos especificamente bantos no século XIX baiano. Mas temos algumas expressões, como candonga e milonga para designar feitiçaria, e calundu para definir a prática religiosa africana em geral. Este último termo, que predominou até o final do século XVIII, foi mais tarde substituído por candomblé. É possível, porém, identificar uns poucos sacerdotes angolas entre os líderes desse universo religioso. 

    O papel de líder era também desempenhado por crioulos, pardos e até brancos. Tem-se notícia que, em julho de 1859, o português Domingos Miguel e sua amásia, a parda Maria Umbelina, foram presos numa casa à rua Coqueiros d'Água de Meninos, porque ali organizavam um candomblé com "danças e objetos de feitiçaria", dele participando homens e mulheres pardos, crioulos e africanos, escravos, livres e libertos. Prenderam 16 pessoas. Parece provável que o português estivesse envolvido naquela experiência religiosa, mas talvez a batuta estivesse de fato nas mãos de sua amante parda ou de outra pessoa do grupo; talvez nas mãos de Felisarda Sulana, escrava e única africana presa com o grupo.

    A polícia não deixou nenhuma dúvida no caso da outra pessoa branca na lista de líderes. Acusou abertamente Maria Couto de ser "dona ou diretora" de um "grande candomblé! no Saboeiro, arredores de Salvador, que estivera ativo - batendo tambor e dançando para os deuses - por alguns dias em abril de 1873, até ser denunciado por vizinhos alarmados. Segundo o chefe de polícia, além de moradores locais bem conhecidos, estranhos armados e escravos fugidos frequentavam aquelas cerimônias, o que recomendava cuidado. O chefe de polícia ordenou ao subdelegado daquele distrito que prendesse Maria Couto e a levasse à sua presença - sinal de que ele achava pouco usual, talvez preocupante, ou apenas curioso, o fato de uma casa de candomblé ser liderada por uma mulher branca.

    Alguns escravos faziam parte da liderança religiosa africana. O mais antigo documento conhecido no qual o termo candomblé aparece é relativo ao escravo angola Antônio, descrito por um capitão de milícias em 1807 como "presidente do terreiro dos candomblés". Observe-se que aqui também aparece a palavra terreiro associada a candomblé, outra novidade. Sacerdote, adivinho e curandeiro, bem-sucedido Antônio vivia longe de sua senhora, em terras localizadas em um engenho no rico município açucareiro de São Francisco do Conde, onde ele tinha estabelecido seu terreiro. Ali, o escravo era procurado por "número maior [de pessoas] de alguns engenhos vizinhos nas vésperas de dias santos e domingos". Segundo um relatório policial, ele exigia, "apesar de ser moço, que lhe tomassem a bênção, e lhe prestassem obediência, inda os mais velhos". De início, Antônio conseguiu escapar às forças de milícias enviadas para capturá-lo, subornando um feitor do engenho, o que sugere que tinha acesso a algum capital obtido de sua prática religiosa. Prenderam seis escravos para obrigá-los a informar onde Antônio se escondera. Ele foi preso porque o feitor subornado não cumpriria sua parte no trato.

    Para ser chefe de terreiro, que implicava dedicação grande de tempo, um escravo tinha que ter relações especiais com seu senhor. Era o caso de Antônio, cuja senhora o deixava viver sobre si. Infelizmente não sabemos por que. É capaz que ela temesse seus poderes espirituais e se intimidasse com seus conhecimentos de ervas venenosas. Mas a explicação pode ser mais simples: como muitos outros senhores, ela o autorizava a trabalhar sem impedimentos, desde que lhe pagasse parte da renda adquirida. Há casos do período colonial de senhores que chegaram a agenciar escravos curandeiros e por isso tiveram que dar satisfação à Inquisição.

    Uma expressiva maioria dos líderes do candomblé havia nascido livre ou, principalmente, adquirido a alforria por compra ou doação. Os libertos formavam um setor importante da população africana e crioula na Bahia, sobretudo na capital, onde o sistema do ganho facilitava o acesso do escravo ao trabalho remunerado - como o de carregadores, vendedores, operários e artesãos -, que permitia a formação da poupança amiúde usada para a compra da alforria. Foram os libertos, sobretudo, os maiores responsáveis pela estruturação do candomblé baiano nesse período. Alguns deles haviam provavelmente obtido a liberdade com dinheiro ganho com práticas divinatórias, curas e outros trabalhos, ou essas práticas complementavam formas mais convencionais de ganhar a vida e a liberdade.

    Negociantes quitandeiros, ambulantes, vendedores eram algumas das ocupações de muitos dos adivinhos, curandeiros, pais e mães de terreiros. Mas não deviam ser poucos os sacerdotes africanos vivendo exclusivamente da religião, a se considerar os muitos clientes que, segundo as fontes, eles tinham. Esses clientes em geral, deixavam, individualmente, pouca coisa na esteira do adivinho ou do curandeiro, mas de vez em quando pequenas fortunas podiam ser ali gastas. Como aconteceu com a africana liberta Maria Romana, que, em 1856, acusou um certo Jorge, africano liberto como ela, de lhe tomar todo o dinheiro, joias, além de um baú de roupas e até uma casa, como remuneração pelo tratamento de seu marido, o também africano liberto Pedro Theodoro da Silva, que segundo ela teria sido lentamente assassinado com "ervas venenosas" feitas por Jorge. Depois de sete meses tentando negociar, sem sucesso, uma reparação. Maria resolveu denunciar Jorge à polícia. Não se tem notícia do desfecho dessa história. Mas, decerto, a reputação do acusado foi arruinada com o escândalo.

    Era comum que esses líderes fossem despóticos, o que podia até elevar o seu prestígio, mas eles tinham de balancear essa reputação com outra mais positiva de generosidade, proteção e sobretudo eficiência ritual. Esta última é que ajudava as religiões africanas a recrutar, desde o período colonial devotos e clientes de diversas camadas sociais.

    Apesar de sua origem remontar a grupos étnicos específicos da África, na Bahia o candomblé se caracterizou por um movimento crescente de mistura cultural, étnica, racial e social. Isso começou entre os próprios africanos de diferentes etnias. Documentos relativos ao fim do século XVIII e à primeira metade do XIX, ainda que escassos, sugerem a formação de identidades étnicas a partir dessa mistura. Em 1785, por exemplo, seis africanos foram presos em um calundu na vila de Cachoeira, no Recôncavo, onde danças, batuques e cantos eram frequentes. Foram identificados por uma testemunha africana no inquérito policial como dois "marris", dois "jejes", um "dagomé" e um "tapá" (termo iorubá que se usava na Bahia para designar os nupes, povo da África Ocidental).

    Apesar de identidades diversas e mesmo da possível hostilidade que pudesse ter havido na África entre alguns grupos ali representados, eles eram falantes, exceto o tapá, de línguas gbe. Portanto, antes da criação do Ilê Iya Nassô, a religião africana já servia como instrumento de alianças interétnicas na Bahia, sobretudo no mesmo universo linguístico. Mas aqui ainda estamos exclusivamente entre africanos.

    Em 1828, um juiz de paz prendeu mulheres, tanto africanas quanto crioulas, dançando para deuses africanos em Salvador, na freguesia de Brotas. Aquilo representava outro passo largo na formação do candomblé baiano: a incorporação ritual de negros nascidos do lado de cá do Atlântico. Considerando sua reação, o juiz que invadiu o terreiro se defrontara com algo novo. Em longos e coléricos relatórios ao presidente da província, ele argumentou que a mistura de crioulos e africanos para celebrar deuses d'além-mar era a ruptura de uma norma comportamental e prática perigosa para a ordem pública; a seu ver, negras nascidas no Brasil deviam ser exclusivamente católicas.

    Mas, de acordo com o juiz de paz, elas, ao contrário, "adoravam" deuses africanos sem muita preocupação em escondê-lo, embora fingissem ser devotas dos santos católicos. Era como se, à mistura étnica, de fato equivalesse a religiosa. O juiz não entendeu, mas testemunhava um fenômeno, novo para ele, já característico da religiosidade dos que viviam na Bahia: a circulação das pessoas através de diferentes sistemas religiosos, sem necessariamente misturá-los.

    Na segunda metade do século XIX, abundam evidências sobre africanos, crioulos, mulatos e uns poucos brancos ritualmente misturados no candomblé. Com o correr dos anos, observa-se um processo de nacionalização das bases religiosas, mesmo que a liderança continuasse predominantemente africana.

    Em 1862, tendo sabido que um grupo de crioulos havia construído terreiro em um bairro sob sua jurisdição, num local chamado Pojavá, um subdelegado escreveu que "neste distrito nunca os crioulos se deram a tal divertimento, foi a primeira vez que aqui o praticaram com admiração de [todos]". Essa mesma autoridade se vangloriou de haver acabado com todos os candomblés de africanos em sua jurisdição, que representavam - escreveu - "um modo de vida dos africanos que se não queriam empregar na lavoura". O jornal Diário da Bahia fez um perfil detalhado dos presos no candomblé do Pojavá. Dos 26 homens, um era africano, três pardos e 22 crioulos. Quanto às mulheres, duas eram africanas libertas, quatro "pardas escuras" e 29 crioulas, mas nenhuma escrava; entre os homens, apenas quatro crioulos eram escravos. Além da predominância parda e crioula, o candomblé era formado, sobretudo, por gente livre e liberta que, ao contrário do insinuado pelo subdelegado, trabalhava. Havia um tipógrafo, um escultor, um sapateiro, um pintor, um marceneiro, um aparelhador e um lavrador; dois saveiristas e dois funileiros; três alfaiates e três carpinteiros; nove pedreiros. Não listaram as ocupações das mulheres.

    A composição do candomblé do Pojavá refletia os ventos de renovação característicos do processo de nacionalização desse universo cultural no século XIX, fosse seu dirigente africano ou não. Era um candomblé predominantemente formado por gente emancipada da escravidão e, a se considerar o  perfil ocupacional dos homens, gente empregada em um setor mais especializado do mercado urbano de trabalho. Eram também jovens e nascidos no Brasil. Quanto à predominância crioula, o Pojavá não era exceção. No ano seguinte, 1863, um subdelegado da freguesia da Vitória declarou que ali os "filhos da terra" já tinham substituído os africanos nos "batuques de tabaques". Entretanto, os centros religiosos africanos continuariam a existir, pelo menos até a virada do século. E o apelo à pureza africana se tornaria índice de prestígio dos candomblés desde essa época.

    Entre os clientes ocasionais e visitantes, encontra-se mos documentos todo e qualquer grupo, fosse de cunho racial, étnico, social ou ocupacional. Havia negros, brancos e mulatos, escravos e senhores, homens de negócio e vendedores de rua, professore e estudantes, prostitutas e madames, policiais e criminosos, artesãos, empregados públicos, padres católicos, políticos. Pessoas de todos os estratos sociais consultavam adivinhos e curandeiros e compareciam a funerais, ritos de iniciação e festas que celebravam divindades específicas ao longo do ano.

    Típico nesse caso era o que acontecia em 1862, no centro de Salvador, numa casa de ladeira de Santa Teresa, ao lado do convento com o mesmo nome onde eram educados seminaristas. Na casa, libertos e libertas africanas, assim como "pessoas de gravata e lavadas", participavam de cerimônias presididas por Domingos Pereira Sodré, sacerdote nagô da cidade-porto de Onin (Lagos), que havia sido escravo num engenho do Recôncavo. Sodré era um afamado adivinho e "feiticeiro" que atendia a gente de toda sorte. Mas havia muitos outros e outras. Entre a clientela de Anna Maria, mãe de terreiro angola denunciada por O Alabama em 1864, constava uma parda que queria curar o filho de feitiço, um português e uma crioula que procuravam tirar o diabo dos corpos dos respectivos amásios, um crioulo um busca de cura para seu afilhado e uma "moça", provavelmente branca, Virgínia por acaso, que queria arrumar casamento.

    Se é lícito dizer que o candomblé baiano dessa época se identificava com africanos e era encabeçado, sobretudo, por eles, pode-se também afirmar que essa religião aos poucos deixaria de ser uma instituição ou uma forma de espiritualidade apenas africana, uma religião exclusiva de escravos.

    A história do candomblé na Bahia do século XIX é, portanto, a história de sua mistura étnica, racial e, logo, social. Um processo que ocorreu em diversas frentes: a reunião de africanos de diferentes origens étnicas para, juntos, celebrarem seus diferentes deuses, a atração dos descendentes de africanos nascidos na Bahia e a difusão de todo tipo de serviço espiritual entre clientes de diversas origens étnicas, raciais e sociais. Obviamente isso não fez do candomblé parte da cultura dominante local, pois ele continuou a ser visto - talvez pela maior parte da população e decerto pela maioria da elite - como anticristão ou incivilização e legitimamente sujeito à perseguição e à brutalidade policiais.

    Durante todo o século XIX e por muitas décadas depois, o candomblé continuou a ser identificado como uma instituição africana. Devemos admitir que, embora essa religião tenha se  difundido na sociedade, enquanto existiram africanos na Bahia, é provável que tenham existido candomblés apenas de africanos, e, mesmo entre  estes, alguns etnicamente restritos. Mas, ainda que os terreiros não tenham deixado de representar uma memória da identidade étnica - pois continuam até hoje a se definir, de acordo com sua "nação", como nagô, ket, jeje, angola -, tal identidade, em virtude da inclusão de tantos elementos estrangeiros, deixou de se basear na linhagem étnica para se basear na afiliação espiritual. Mesmo com a repressão policial e o menosprezo público, esse processo transcorria a todo vapor nas vésperas da Abolição, em 1888.  


Texto de João José Reis, professor do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia. Retirado da Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 1, nº 6, Dezembro de 2005. Ministério da Cultura.

domingo, 15 de maio de 2022

Do Calundu ao Candomblé

Presentes no Brasil durante todo período colonial, os rituais de fé africanos ganharam seu primeiro templo no início do século XIX, erguido nos fundos de uma igreja em Salvador.


    Desde o século XVII tem-se notícias de cultos africanos em terras brasileiras. De fato, há cerca de vinte anos uma imensa massa de informações sobre o que se convencionou chamar "calundu colonial" começou a ser revelada por historiadores e antropólogos brasileiros, que, investigando nos arquivos públicos e da Santa Inquisição, depararam-se não apenas com novos dados mas também com novas interpretações sobre um tema até então pouco conhecido. Os animadores desses misteriosos cultos de origem africana passaram então a ocupar a cena historiográfica: figuras como o congolês Domingos Umbata, flagrado em 1646 pelos visitadores da Inquisição na capitania de Ilhéus; a angolana Branca, ativa na cidade baiana de Rio Real, nos primeiríssimos anos do século XVIII; outra angolana, Luzia Pinta, muito bem sucedida na freguesia de Sabará, nas Minas Gerais, entre 1720 e 1740; a courana Josefa Maria ou Josefa Courá com sua "dança de Tunda", estabelecida em 1747 no arraial de Paracatu, Minas Gerais; o daomeano Sebastião, estabelecido em 1785 na cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano; e, enfim, Joaquim Baptista, ogan (uma espécie de líder de terreiro) "do culto ao deus Vodum", no Accu de Brotas, freguesia periférica da cidade da Bahia, em 1829. A esta lista poderia ser acrescentada uma significativa aquarela de Zacharias Wagener, artista que viveu no Pernambuco holandês de 1634 a 1641, representando uma festa de africanos a trazendo preciosas informações visuais sobre a variedade e a disposição dos atores, figurinos e instrumentos musicais.

    Os adeptos dos calundus organizavam suas festas públicas na residência de uma pessoa importante da comunidade, ou em casas destinadas a outras ocupações. Não tinham templos propriamente ditos, mas também não representavam simples cultos domésticos, uma vez que havia um calendário de festas, iniciavam vários fiéis em diferentes funções, e eram frequentados por um número razoavelmente grande de pessoas, inclusive brancos, vindos de diversos arraiais. Ademais, o sacerdote principal tinha condições de ganhar bem a vida com o atendimento individual e tornar-se financeiramente independente ao prestar à população serviços essenciais que o Estado colonial não assegurava satisfatoriamente.

    A documentação de época permite identificar três tipos de sacerdócio, às vezes reunidos numa mesma pessoa, como Luzia Pinta, que era "calunduzeira, curandeira e adivinhadeira". Isso significa que, além de oficiantes religiosos, esses personagens sabiam preparar tisanas, cataplasmas e unguentos que aliviavam os males corriqueiros dos habitantes da colônia, eram também capazes de curar doenças mais graves como a tuberculose, a varíola e a lepra, usando os recursos da farmacopeia tradicional e participando inclusive do combate às epidemias que assolaram a Bahia em meados do século XIX; e também sabiam curar distúrbios mentais ou espirituais, usando tratamentos combinados e complexos. Na cidade de Rio real, no interior baiano, o Santo Ofício identificou o caso de um senhor empresário que pagou caro por pelo menos duas escravas curandeiras afamadas, montando com elas uma espécie de clínica, onde se praticavam vários tipos de cura, e dividindo todos os lucros. Desses registros, surgiram notícias de curandeiros e adivinhadores sendo recebidos em monastérios, nos meios ricos, onde eram bem pagos, e até agraciados pelo rei de Portugal por bons serviços prestados. A eficiência dos saberes africanos era pública e notória, mas na prática sua existência questionava o monopólio da cura atribuído à Igreja e mesmo à medicina oficial.

    Como o escravismo configurava-se como um regime de opressão, sempre se pensou que os calundus tivessem sido duramente perseguidos. Mas, de fato, se isso fosse realidade, seus líderes jamais poderiam ter se estabelecido estavelmente, como, por exemplo, Luzia Pinta, que se manteve atuante durante vinte anos na cidade mineira de Sabará. Na verdade, existia no seio da classe governante um debate constante a respeito da melhor maneira de controlar a massa escrava e liberta. Se a política tirânica parece ter predominado nos períodos de crise, em grande parte do tempo foi a política moderada a predominante.

    Assim, desde o século XVII, os calundus funcionavam normalmente no Brasil, pelo menos até que seus líderes se tornassem muito visíveis, angariassem clientela branca ou se envolvessem em revoltas. Faziam parte da paisagem social porque eram funcionais, respondiam a várias necessidades de uma população carente e não pretendiam ser seitas secretas. Sua vocação era se tornar, como na África, instituições públicas reconhecidas.

    Desse lado do Atlântico, os calundus de diversas origens africanas, banta (das regiões ao sul da África, como Angola, Congo, Moçambique) e jeje (da África Ocidental, atual República de Benin), por exemplo, acabaram aderindo ao catolicismo. Já o sincretismo com os cultos ameríndios deu-se apenas com os bantos. Alguns, como o de Luzia Pinta, misturaram tradições africanas, católicas e indígenas no mesmo ritual, dando origem ao que se convencionou chamar umbanda.

    Ao contrário dos anteriores, o calundu jeje do Pasto da cidade de Cachoeira era uma organização tipicamente urbana, e o primeiro a ter como endereço uma rua, embora de periferia. Já o candomblé do Accu é um dos vários cultos jejes que começaram a funcionar no Recôncavo Baiano em meados do século XIX, situados em freguesias urbanas apenas nos nomes - eram, na verdade, chácaras cercadas de mata atlântica.

    Esses cultos jejes eram mais marcadamente comunitários e com forte tradição litúrgica, implantada na Bahia. Nesse processo, receberam apoio dos calundus bantos existentes, que detinham um saber ritual acumulado, bem adaptado ao meio. O próximo passo, ousado, nessa trajetória de constituição da religião afro-brasileira, seria precisamente organizar o culto na cidade, exibi-lo como instituição urbana legítima, buscar sua oficialização. Foi em Salvador, no bairro da Barroquinha, que essa transição foi tentada com relativo sucesso.

    Segundo as tradições orais do nagôs (africanos iorubás, originários de regiões da Nigéria, Benin e Togo) baianos, o primeiro candomblé de sua linhagem foi fundado em terras situadas atrás da capela de Nossa Senhora da Barroquinha, no centro histórico de Salvador. Conta-se que existia uma irmandade de negros ali funcionando, cujos associados teriam sido os fundadores africanos. Hoje, esse candomblé é um dos maiores e mais respeitados do Brasil, chama-se oficialmente Ilê Axé Iyá Nassô Oká, em homenagem à sua fundadora principal, mas é popularmente conhecido como Casa Branca do Engenho Velho da Federação.

    Não há nas tradições orais referências à data de fundação do candomblé da Barroquinha. Mas se tem conhecimento de três momentos importantes do local: a fundação inicial de um pequeno culto na casa de uma sacerdotisa filiada à irmandade e residente em uma das ruas do bairro; o arrendamento de um terreno situado atrás da igreja, onde se fundou o candomblé propriamente dito; e um momento de perseguição policial, invasão do templo e expulsão do bairro.

    A investigação sobre a data inaugural motivou antropólogos ligados ao Axé Opô Afonjá, filial do candomblé da Barroquinha, os quais fizeram estimativas que vão do final do século XVIII a meados do século XIX. Em 1943, por ocasião do I Congresso Afro-Baiano, teve lugar na Casa Branca uma exposição comemorativa dos 154 anos de sua fundação, segundo a qual o candomblé teria então sido fundado em 1789. Essa data coincide com a chegada à Bahia dos primeiros escravos nagôs do reino de Ketu (território cortado em dois pela fronteira Nigéria-Benin), de onde teriam vindo os fundadores, bem como a oficialização da irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios, em 1788.

    Entre os primeiros escravos provenientes do reino de Ketu vieram parar na Bahia alguns membros da família real Arô, capturados na cidade de Iwoyê, saqueada em janeiro de 1789 pelo exército do reino Daomé (atual República de Benin). A mãe do Aláketu Akibiorru, o rei então entronado, era natural daquela cidade, que tinha relações rituais muito estreitas com a capital. Tudo indica que a primeira das fundadoras do candomblé da Barroquinha, Iyá Adetá, veio nessa leva de escravos provenientes de Iwoyê. Após cerca de nove anos de cativeiro, Iyá Adetá teria conquistado a alforria e ido morar na Barroquinha, onde fundou, no finalzinho do século XVIII, um culto doméstico a Oxóssi na sua casa, semelhante a alguns dos calundus coloniais passados em revista.

    Ora, no princípio do século XIX, começa a crescer a população escrava baiana proveniente da região jeje-nagô, aumentando o contingente de frequentadores do calundu de tia Adetá e despertando o desejo, naquele grupo desenraizado, de possuir um espaço apropriado à fundação de um verdadeiro terreiro. Essa possibilidade existia no próprio bairro, pois as terras devolutas atrás da igreja se prolongavam em uma área arborizada e um pântano que confinava com as hortas do mosteiro de São Bento. O terreno contíguo à capela pertencia a um casal filiado à irmandade branca de Nossa Senhora da Barroquinha, que dividia com a irmandade negra do senhor dos Martírios a administração da igrejinha. O arrendamento começou a ser negociado em 1804 e foi concluída em 1807, e é nesse momento que se concretizou a possibilidade de passar de culto doméstico a terreiro.

    A virada do século XVIII para o XIX foi na Bahia uma época de prosperidade e descontração política, porém, de 1805 a 1809, o governo tirânico do conde da Ponte se lança em implacável perseguição a africanos, criando um clima de tensão na capitania, inadequado aos voos da imaginação. Em 1810 começaria, contudo, o governo reformista e liberal do conde dos Arcos, enviado pela família real para modernizar a Bahia. O novo governador tornou-se irmão honorário da irmandade dos Martírios logo em 1811, partidário da corrente moderada da ideologia colonialista, cuja estratégia era encorajar as manifestações culturais das diversas "nações" africanas, pequena liberdade que estimularia a diferença entre elas - pensava ele - impedindo-as assim de se unir contra a ordem colonial.

    Nessa conjuntura, o projeto de fundação do terreiro da Barroquinha ganhou fôlego. Em 1812 um requerimento assinado pelos diretores dos Martírios pediu licença à Câmara de Vereadores para construir um salão nobre, anexo à igreja, obtendo assim o consentimento oficial para manter um espaço para as suas reuniões. A comunidade jeje-nagô, que estava crescendo na Bahia e provavelmente ganhando importância na irmandade dos Martírios, deve ter, se não comandado, pelo menos se associado a esse esforço. Nesse momento de prosperidade, o terreiro ampliou-se, ganhando mais equipamentos, mais espaço e mais confiança. Eis o cenário que viu surgir na Barroquinha o Iyá Omi Axé Airá Intile, dirigido por Iyá Akalá, a segunda das fundadoras apontadas pela tradição.

    Segundo as tradições orais da Casa Branca, a grande novidade introduzida pelo terreiro da Barroquinha foi ter organizado, pela primeira vez, o candomblé "como sociedade". Que poderia significar isso? Vamos dar uma voltinha na África, para ter uma visão mais abrangente dessa história. Em meados da década de 1830, a capital maior dos Estados nagô-iorubás, o império de Oyó, foi saqueada pelas tropas fundamentalistas do califado de Sokotô e do emirado de Ilórin. Começaria então um grande êxodo da população dessa região, fundando uma nova capital e reorganizando as forças do império em um território mais ao sul.

    De fato, a queda da capital de Oyó provocou uma guerra civil destruidora, que se prolongaria até o final do século. Verdadeiras multidões de prisioneiros dessa guerra vieram parar na Bahia como escravos de modo que, em meados do século XIX, mais da metade da população escrava baiana já era nagô-iorubá. Subgrupos étnicos de todas as regiões ocupadas pelos iorubás na África Ocidental, a chamada Iorubalândia, como oyós, ijexás, ketos, efans, dentre vários outros, trouxeram suas divindades para o exílio, as quais foram sendo "assentadas" no terreiro da Barroquinha. Ao mesmo tempo algumas associações urbanas daquela origem, chamadas egbés, organizaram-se clandestinamente na Bahia, desde as primeiras décadas do século XIX. A maioria desapareceu com o tempo, deixando, entretanto, alguns traços visíveis, títulos, máscaras, cantigas ou objetos de culto, associações femininas cívico-religiosas. Além do bem sucedido culto dos orixás, também ficou para contar história o culto dos eguns (almas de mortos), preservado apenas em alguns terreiros, mas que ainda hoje dá mostras de vitalidade.

    Por causa desse grande contingente nagô-iorubá, a Bahia foi levada em consideração pelos estrategistas da reorganização do Império. As tradições contam que vieram pessoas dos escalões superiores dos estados iorubás, em missão secreta, para organizar os cultos assentados na Barroquinha e articulá-los aos egbés baianos. A mais importante delas foi Iyá Nassô, personalidade do primeiro escalão do cerimonial do palácio de Oyó. Essas pessoas criaram uma nova forma de organização, ao estruturar o grande candomblé de Ketu tal qual é conhecido hoje.

    O candomblé da Barroquinha foi o espaço que abrigou um grande acordo político reunindo os nagô-iorubás da Bahia, sob a liderança dos partidários das divindades Oxóssi de Ketu e Xangô de Oyó. Lembremos das duas festas principais do calendário da Casa Branca que comemoram sua fundação: a principal, dedicada a Oxóssi, no dia de Corpus Christi, e a segunda, dedicada a Xangô, no dia de São Pedro. O compromisso da elite dirigente foi firmado na estrutura espacial básica do candomblé: o terreiro, no seu conjunto, pertence a Oxóssi, o onilé, o senhor da terra, enquanto que o barracão central, lugar da festa pública, pertence a Xangô, o onilê, o senhor do palácio. O acordo entretanto contou com vários outros subgrupos iorubanos aliados.

    Do ponto de vista ritual, o caráter fundamentalmente inovador do candomblé da Barroquinha caracterizou-se pelo fato de que, pela primeira vez na história da religião africana, reuniu-se o culto de todos os orixás no mesmo templo, o que pressupõe uma ordem unificada das hierarquias dos diversos cultos, sob o comando da iyalorixá, a sacerdotisa suprema. Além do mais, as lideranças dos egbés iorubanos da Bahia foram convocadas recebendo títulos no culto dos principais orixás. Essas lideranças eram eventualmente dirigentes de organizações oficiais, como a irmandade do Senhor dos Martírios ou a devoção feminina da Senhora da Boa Morte, fundada na igreja da Barroquinha. O candomblé deixou portanto de ser apenas uma casa de culto para tornar-se uma organização político-social-religiosa complexa.

    Na composição do candomblé da Bahia, as diferentes etnias da Iorubalândia, como os ijexás e efans, numericamente mais expressivos do lado de cá, não poderiam ser ignoradas. Assim, no barracão da festa pública, plantaram-se quatro pilares centrais representando os quatro cantos do país iorubá, cada pilar dedicado a um dos regentes da casa, ao Oxóssi de Kentu, ao Xangô de Oyó, à Oxum de Ijexá e ao Oxalá de Efan. Essas são as quatro tradições mantidas na Casa Branca: os candomblés de Ketu na Bahia não seguem apenas a tradição jeje-nagô, mas também as tradições de outras etnias: oyó (ou iorubá-tapá), ijexá e efan.

    A memória oral relata que, a uma certa altura, o terreiro da Barroquinha foi invadido pelas forças policiais da província, sendo o candomblé obrigado a abandonar o local, mas ninguém tem a menor ideia de quando se deu a mudança. Sabemos que, em 1855, a Casa Branca já funcionava no lugar onde atualmente se encontra, no bairro da Federação. Na década de 1850 predominou o grupo conservador liderado por Francisco Gonçalves Martins, um homem da linha dura que fora chefe de Polícia durante o grande levante dos malês, em 1835. Já 1851 foi o ano de chegada da ideologia do progresso ao Brasil, quando então as elites tentaram esquecer o passado colonial e adotar um modelo moderno de sociedade, no rastro da Europa e da América. Nesse novo contexto, precisava-se provar ao mundo que éramos ocidentais "civilizados" e para tanto  incrementamos a imigração europeia visando "limpar" nossa raça, o que segundo doutrinas científicas então prestigiadas, era a única maneira de nos habilitarmos ao progresso.

    A perseguição ao candomblé da Barroquinha  fazia parte dessa política, que o obrigou a procurar o "seu lugar". A tirania colonial, mantida mesmo depois da independência política, não poderia jamais permitir que uma organização africana se tornasse centro. Por isso, o candomblé da Barroquinha foi obrigado a recuar para a periferia, onde até hoje gloriosamente se encontra, dividindo espaço na cidade de Salvador com outros terreiros, como o Gantois e o Axé Opô Afonjá, que mantêm viva a fé que atravessou o oceano.


Texto de Renato da Silveira, que é professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e doutor em antropologia pela École de Hautes Études em Sciences Sociales da Paris. Pesquisa a história do candomblé na Bahia há 30 anos. Retirado da Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 1, nº 6, Dezembro de 2005, Ministério da Cultura.

sábado, 14 de maio de 2022

Recursos Mediúnicos

    A mediunidade é recurso paranormal inerente a todos os homens. Conquista do Espírito através do tempo, melhor se expressa naqueles que mais facilmente se liberam das constrições do instinto, normalmente predominante em a natureza humana.

    Instrumento para o intercâmbio entre as mentes desencarnadas e as criaturas ainda retidas no envoltório físico, varia em sensibilidade de captação e capacidade de filtragem, qual ocorre com as demais faculdades do ser.

    Mais aguçada em uns indivíduos do que em outros, surge, espontaneamente, requerendo educação e estudo para atingir a finalidade a que se destina, como o embrião que espera cuidados e atenção para adquirir segurança, a fim de alcançar a meta que o aguarda.

    As resistências e valores morais do médium lhe constituem a garantia indispensável para o ministério a que se propõe.

    A queda de água em desalinho produz desastres, enquanto que a canalizada gera força e energia.

    A eletricidade, para alcançar o destino que a aguarda, impõe a presença de cabos condutores à altura da sua potência.

    A segurança do edifício depende da estrutura na qual se apoia.

    A perfeição  do equipamento repousa na harmonia e na superior qualidade das suas peças.

    A mediunidade, da mesma forma, necessita de vários e indispensáveis requisitos para produzir com segurança e equilíbrio.

    médiuns e médiuns, que enxameiam por toda parte.

    Conscientemente ou não, sintonizam, por automatismo ou desejo, com as mentes que lhes são afins.

    Porque a população do mundo espiritual seja muito maior do que a do plano físico, os homens sempre se encontram acompanhados por entidades desencarnadas, consoante os compromissos de outras reencarnações ou as tarefas a que ora se vinculam.

    De acordo com a direção mental, as tendências, os hábitos e os interesses humanos, são estabelecidos os vínculos de ligação psíquica e dependência física com os Espíritos.

    Como resultados, encontramos:

    - os médiuns da insensatez e do crime, bem como os medianeiros da esperança e da ordem;

    - os médiuns da perversidade e da alucinação, assim como os portadores da bondade e do equilíbrio;

    - os médiuns dos vícios, escravizados aos tormentos que os ensandecem, assim também os veiculadores da virtude e da previdência;

    - os médiuns da ignorância e da sombra, mas, igualmente, os mensageiros da luz e do conhecimento;

    - os médiuns da ira, da calúnia, do ódio, no entanto, outros que o são do amor, da verdade, da paz...

    Diferem uns dos outros pelo comportamento a que se entregam, tornando-se, portanto, veículos daqueles com os quais estabelecem ligação.

    Identificando, ou não, a presença de recursos mediúnicos em ti mesmo, recorre à oração nos momentos de difícil decisão ou de testemunho, de trabalho ou de repouso.

    Observa-te, tentando conheceres-te em profundidade.

    Procura fixar as tuas características pessoais superiores, eliminando aquelas que se te irrompem intempestivamente, como resultado da própria impulsividade ou de inspiração negativa.

    Recorda-te da invigilância mediúnica de Pedro, que se deixou vencer pelo medo a ponto de negar o Amigo, e da obsessão em Judas, que o levou a trair o Divino Benfeitor, mantendo-te atento e digno, a fim de que as "forças do mal" não te propilam a situações lamentáveis, de que te arrependerás.


Texto retirado do livro Momentos de Coragem; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 8ª Edição, 2014.

sábado, 7 de maio de 2022

Crucificação Libertadora

    A crucificação de Jesus é mais do que um marco assinalando profundamente os fatos históricos da Humanidade.

    Representa uma luz que se expande na direção do futuro, abrangendo todos os períodos porvindouros.

    O Seu holocausto jamais se apagará da memória dos tempos, pelo motivo de ter sido Ele, o Justo por Excelência, que se doou em sacrifício de amor.

    Antes, foram inúmeros os homens crucificados sob a sanha sanguissedenta de dominadores arbitrários, que se compraziam em matanças sistemáticas, ou de governantes impiedosas que aplicavam a justiça mediante a pena capital, elegendo esse método cruel.

    Depois, prosseguiram as crucificações por paixões políticas, sociais, raciais, legalizando o crime do Estado, que pretendia cobrar delitos imaginários ou reais no organismo social e individual.

    Em Sua homenagem, muitos discípulos, fascinados pelo Seu amor, e amando, deixaram-se crucificar, queimar, devorar pelas feras, desterrar, consumir-se em cárceres infectos, dando prosseguimento ao seu programa.

    Ele, porém, fez-se o Modelo, iniciando a Era da resistência pacífica, de que Sócrates se transformara no primeiro mártir, sendo condenado à morte sem haver praticado qualquer crime, exceto o de ensinar a ética da imortalidade, da moral e do bem, numa época de abuso do poder e de dissipações.

    A Cruz do Gólgota permanece como símbolo de resistência ao mal transitório, que o tempo supera, abrindo espaço para o bem, que permanece.

    Hoje ainda prosseguem as crucificações daqueles que O amam e desejam segui-lO.

    Cruzes invisíveis são acionadas e nelas são imolados incontáveis apóstolos, que se deixam sacrificar.

    Urdem-se calúnias com as quais os azorragam.

    Acionam-se mecanismos restritivos que os impedem de avançar.

    Movimentam-se forças tenebrosas que lhes obscurecem os céus da esperança e os atingem no cerne da alma.

    Seviciam-nos com a maledicência e a suspeita sistemática, tornando quase insuportáveis as suas horas.

    Dilapidam-lhes o caráter, através de infâmias habilmente apresentadas.

    Os crucificadores também permanecem desafiando os tempos. Um dia, porém, não muito distante, arrependidos, se renovarão, iniciando as experiências redentoras do amor.

    Se pretendes identificar-te com Jesus, provarás a crucificação nas trevas imateriais da renúncia, do silêncio e da abnegação.

    Quem O ame, não transita no mundo indene ao testemunho de fidelidade.

    Experimentarás solidão, e muitos dos teus anelos se desfarão como névoa ao Sol, a fim de que nenhuma ilusão te perturbe a lucidez do amor por Ele.

    Conhecerás de perto o apodo e a humilhação, e, confiando, não te rebelarás.

    Provarás o vinagre da ingratidão e o fel do abandono.

    Terás o coração em chaga moral a doer.

    Todavia, quando parecer que não mais suportarás as aflições da cruz, Ele te aparecerá e suavemente te libertará, conduzindo-te ao Seu reino de bênçãos para sempre.


Texto retirado do livro Momentos de Alegria; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª Edição, 2014.

quinta-feira, 5 de maio de 2022

Dia Mundial da Língua Portuguesa

    Volta e meia alguém olha atravessado quando escrevo "leiaute", "becape" ou "apigreide" - possivelmente uma pessoa que não se avexa de escrever "futebol", "nocaute" e "sanduíche".

    Deve se achar um craque no idioma, me esnobando sem saber que "craque" se escrevia "crack" no tempo em que "gol" era "goal", "beque" era "back" e "pênalti" era "penalty". E possivelmente ignorando que esnobar venha de "snob".

    Quem é contra a invasão das palavras estrangeiras (ou do seu aportuguesamento) parece desconsiderar que todas as Línguas do mundo se tocam, como se falar fosse um enorme beijo planetário.

    As palavras saltam de uma Língua para outra, gotículas de saliva circulando em beijos mais ou menos ardentes, dependendo da afinidade entre os falantes. E o Português é uma Língua que beija bem.

    Quando falamos "azul", estamos falando Árabe. E quando folheamos um almanaque, procuramos um alfaiate, subimos uma alvenaria, colocamos um fio de azeite, espetamos um alfinete na almofada, anotamos um algarismo.

    Falamos Francês quando vamos ao balé usando um paletó marrom, quando fazemos um croqui ou uma maquete com vidro fumê; quando comemos uma omelete ou pedimos na boate um champanhe ao garçom; quando nos sentamos no bidê, viajamos na maionese ou quando um sutiã (sob o edredom) provoca uma gafe - ou um frisson.

    Falamos em Tupi ao pedir açaí, um suco de abacaxi ou pitanga; quando vemos um urubu ou um sabiá, ficamos de tocaia, votamos no Tiririca, botamos o braço na tipoia, armamos um sururu, comemos mandioca (aipim ou macaxeira), regamos uma samambaia, deixamos a peteca cair. Quando comemos moqueca capixaba, tocamos cuíca e cantamos Garota de Ipanema.

    Dá pra imaginar a Bahia sem a capoeira, o acarajé, o dendê, o vatapá, o axé, o afoxé, os orixás, o agogô, os atabaques, os abadás, os babalorixás, as mandingas, os balangandãs? Tudo isso veio no coração dos infames "navios negreiros".

    As palavras estrangeiras sempre entraram sem pedir licença, feito uma tsunami. E muitas vezes nos pegando de surpresa, como numa blitz.

    Posso estar falando grego e estou mesmo. Sou ateu, apoio a eutanásia, gosto de metáforas, adoro bibliotecas, detesto conversar ao telefone, já passei por várias cirurgias. E não consigo imaginar que palavras usaríamos para a pizza, a lasanha, o risoto, se a máfia da Língua Italiana não tivesse contrabandeado esse vocabulário junto com a sua culinária.

    Há, claro, exageros. Ninguém precisa de um "delivery" se pode fazer uma entrega; ou anunciar uma "sale" se se trata de uma "liquidação". Pra quê sair pra "night de bike" se dava pra tranquilamente pra sair pra noite de bicicleta?

    Mas a Língua Portuguesa também se insinua dentro das bocas falantes de outros Idiomas. Os japoneses chamam capitão de "kapitan", copo de "koppu", pão de "pan", sabão de "shabon". Tudo culpa nossa. Como o café, que deixou de ser apenas o grão e a bebida, para ser também o lugar onde é bebido. E a banana, tão fácil de pronunciar quanto de descascar e que por isso foi incorporada tal e qual a um sem-fim de Idiomas. E o caju, que virou "cashew" em Inglês (eles nunca iam acertar a pronúncia mesmo).

    "Fetish" vem do nosso fetiche e não o contrário. "Mandarim", seja o idioma, seja o funcionário que manda, vem do portuguesíssimo verbo "mandar". O americano chama melaço de "molasses", mosquito de "mosquito" e piranha de "piranha" - não chega a ser a conquista da América, mas é um começo.

    Tudo isso é a propósito do e de Maio, Dia da Língua Portuguesa, cada vez mais inculta e nem por isso menos bela. Uma Língua viva, vibrante, maleável, promíscua - vai de boca em boca, bebendo de todas as fontes, lambendo o que vê pela frente.

    Mais de oitocentos anos e com um tesão de vinte e poucos.

Texto de Eduardo Afonso.