quinta-feira, 19 de maio de 2022

De escravas fugidas a mães-de-santo cultuadas

    Muitos relatos insistem na ideia de que os diversos candomblés da Bahia serviam de esconderijo para escravos fugidos e, até a metade do século XIX, jornais e relatórios policiais expressavam o temor de que batuques africanos servissem de ensaios para levantes escravos. Não é então acidental que, no início do século, o conde da Ponte tivesse confundido quilombos com candomblés. Esse ponto de vista persistiu porque os escravos continuavam a fugir para as casas de culto africano, onde buscavam especialistas religiosos para obter ervas e preparos a fim de "amansar" seus senhores e obter ajuda dos deuses para conquistar a liberdade. Com frequência pagavam consultas e oferendas com bens roubados de seus donos. O mero comparecimento a cerimônias do candomblé perturbava as relações escravistas porque prejudicava o desempenho do escravo no trabalho.

    Por isso, com frequência, a polícia recebia reclamações de senhores, e a imprensa investia contra os sacerdotes de candomblé que supostamente aprisionavam escravos em seus terreiros. No mais das vezes, tais reclamações se referiam a escravas. Se a maioria dos indivíduos em posição de liderança eram homens, eram as mulheres a vasta maioria das pessoas vistas ou presas pela polícia em candomblés, e que  reconhecidamente dançavam para os deuses ou se iniciavam para servi-los.

    Isso pode explicar por que, na virada do século, as mulheres se tornariam elemento dominante na hierarquia do candomblé. Elas estavam sendo formadas na religião em número muito superior aos homens, os quais aparentemente se recusavam a submeter-se aos complexos ritos iniciáticos - ou então esses ritos lhes eram vedados.

    De um ponto de vista sociológico, a hegemonia feminina que se estabeleceu no candomblé fora construída sob um regime escravista, particularmente em seu lado urbano, no qual elas eram mais independentes e gozavam de mais oportunidades de ascensão social. Mulheres obtinham a alforria em ritmo superior ao dos homens, por exemplo, e tornavam-se bem-sucedidos comerciantes na Bahia, em especial no setor de venda de comida. Dessa forma, a proeminência ritual em certo sentido traduziria a posição social delas. Mas razões de ordem ritual não devem ter sido desprezíveis. Grupos iniciáticos femininos se tornaram tradição em diversas casas de culto baianas, no rastro do Ilê Iya Nassô e seus rebentos: o Gantois e o Axé Opô Afonjá. Enquanto o posto exclusivamente masculino de babalaô (sacerdote-adivinho de Ifá ou Fa) declinou até quase se extinguir, as mulheres tomaram conta do negócio da adivinhação, junto com outras atribuições rituais essenciais no âmbito da religião. Com o desaparecimento dos africanos da população da Bahia e o estabelecimento da supremacia feminina entre os iniciados, a geração seguinte de líderes - a dos crioulos - tornou-se, dessa forma, predominantemente feminina. Se não predominaram em número, como alguns afirmam, destacaram-se na fama e no poder. Tornaram-se míticas e veneradas em todo o Brasil, figuras como Mãe Senhora do Axé Opô e Menininha do Gantois.


Texto de João José Reis retirado da Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 1, nº 6, Dezembro de 2005. Ministério da Cultura.

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