terça-feira, 30 de junho de 2020

Comportamento Geral

Você deve notar que não tem mais tutu
E dizer que não está preocupado
Você deve lutar pela xepa da feira
E dizer que está recompensado
Você deve estampar sempre um ar de alegria
E dizer: "Tudo tem melhorado"
Você deve rezar pelo bem do patrão
E esquecer que está desempregado

Você merece
Você merece
Tudo vai bem, tudo legal
Cerveja, samba e amanhã, seu Zé
Se acabarem o teu carnaval?

Você deve aprender a baixar a cabeça
E dizer sempre: "Muito obrigado!"
São palavras que ainda te deixam dizer
Por ser homem bem disciplinado
Deve, pois, só fazer pelo bem da nação
Tudo aquilo que for ordenado
Pra ganhar um fuscão no juízo final
E diploma de bem-comportado

Você merece
Você merece
Tudo legal, tudo vai mal
Cerveja, samba e amanhã, seu Zé
Se acabarem o teu carnaval?

Você merece
Você merece
Tudo vai mal, tudo legal
Cerveja, samba e amanhã, seu Zé
Se acabarem o teu carnaval

Você merece
Você merece
Tudo vai bem, tudo legal
Cerveja, samba e amanhã, seu Zé
Se acabarem o teu carnaval?

Você merece, você merece
Você merece, você merece
Tudo vai mal, tudo vai bem
Tudo vai bem, tudo vai mal, mas... você merece

Música do CD Planeta Fome, de Elza Soares, lançado em 2019.

Na Contramão do Mundo

Na contramão do mundo
Ideias podemos ouvir
Objetivos claros
Que já não querem discutir
Mentes que não conversam não
Que não concordam entre si
Quero entender a vida
Porque querem mentir
Palavras tão incertas
Querem fazer a guerra
Tão inseguros de si
E matam pra se distrair
Planejam uma vida
Vida individualista
O mundo, uma bola de gude
Que eles querem conduzir
Eu só quero entender porque
Porque querem agir assim
Mas um dia isso acaba
E tudo fora em vão
Querem sujar suas mãos de sangue
Para lograr uma ambição sem fim
Mas um dia isso acaba
E tudo fora em vão
Na contramão do mundo
Querem fazer a guerra
Tão inseguros de si
Que já não querem discutir

Palavras tão incertas
Que não concordam entre si
Quero entender a vida
Que eles querem conduzir
Eu só quero entender porque
Porque querem agir assim
Mas um dia isso acaba
E tudo fora em vão
Querem sujar suas mãos de sangue
Para lograr uma ambição sem fim
Mas um dia isso acaba
E tudo fora em vão

Música de Myrella Nascimento, do seu CD Tempoética, lançado em 2011.

Construção

Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego...
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público...
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado...

Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça desgraça que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair
Deus lhe pague...
Pela mulher carpideira, pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague

Música de Chico Buarque que deu título (Construção) ao seu então LP de 1971. Citação de Deus lhe Pague, do mesmo disco...

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Ensinar Português?

Comecemos a conversa, a meio caminho entre o sério e o cômico (também trágico), imaginando um diálogo. Alguém chega e pergunta a um professor de Português...
- Ensina-se mesmo Português, esta língua que a gente usa todo o dia?
- É claro, em escolas do primeiro ao terceiro graus. Há aulas de Português, portanto...
- A quem se ensina Português?
- Ora, além de estrangeiros interessados, ensina-se principalmente a brasileiros...
- ... que já falam Português!... Ah! Então eles não falam Português?!
- Bem, claro que falam, desde crianças...
- Ah! Entendi... Existem duas línguas com o mesmo nome "Português", uma nacional, natural, que todo mundo já nasce falando e uma outra, estrangeira, que é preciso ir à escola aprender...
- ... epa, pera aí! Num é bem assim... Desculpe-me, deixe-me começar novamente a frase:um momento, você está equivocado, este assunto não é exatamente como você está colocando.
- Ué, isto que você acabou de me falar está nessa língua estrangeira?
- Claro que não, pô! Você não entendeu?
- Entendi... Soou um pouco estranho, mas até que bonito. Você fala assim na sua casa, também?
- Claro que não, somente em alguns lugares e com algumas pessoas.
- Ah! Então você troca de língua como troca de roupa, às vezes mais chique, outras mais esportivo, outras mais popular...
- Sim, claro! Você não quer que eu vá falar com o Diretor daquela indústria ali, por exemplo, mal vestido e falando de qualquer jeito, não?
- Como assim?
- Ora, se eu vou falar com um cara tão importante, preciso falar corretamente, palavras bonitas e gramaticalmente bem colocadas...
- ... mesmo se você vai lá pra dizer pra ele que os salários estão horríveis, que tá todo mundo passando fome, que enquanto ele viaja de Mercedes, você anda a pé, que a indústria dele joga todo dia esse cheiro de bosta no nariz de todo mundo...
- Ô meu, para né?! Você já tá baixando o nível... É claro que você precisa falar direitinho... Até pra reclamar...
- Ah!... Então é por isso que se ensina Português... Para as pessoas aprenderem a falar direitinho com os patrões!
- Não simplifica, né?! Não é só isso, não.
- Tem mais?
- Claro, por exemplo. Se você não souber falar e escrever direito, corretamente, você não arranja um bom emprego, não consegue passar num concurso, nem uma boa colocação...
- Poxa, agora estou entendendo melhor; pra arranjar um bom emprego a língua que a gente usa não serve...
- Serve sim, mas só pra coisinhas, conversinhas banais, mas pra subir na vida, ganhar bem, não!
- Ah! Entendi. Então esses milhões de desempregados que estão por aí foram despedidos porque não sabiam escrever e falar corretamente! Eles não podem voltar pra escola?
- Ô meu. Lá vem você de novo com questões que não dizem respeito ao ensino de Português... Quando esses caras quiserem novamente emprego, eles vão ter que saber Português...
- Então você poderia abrir um cursinho de Português para desempregados!
- Vê se não goza, vá!
- Agora me lembrei; você é professor de Português, não é?
- Sou.
- Então você sabe Português perfeitamente, não?
- Claro. Tenho diploma, cursos de aperfeiçoamento, trabalhos publicados, etc...
- Ah! Quer dizer que você deve ganhar superbem, não? Fiquei até com vontade de fazer um curso de Letras...
- Bem... Não é bem assim, você sabe, ehr, hum, ahn... O Estado paga mal...
- ... não quero te deixar chateado, mas sabe, o Diretor daquela indústria que você mostrou agorinha, não sabe falar Português nenhum, nem aquele vulgarzinho, nem esse da escola... E ele ganha muito mais que nós todos juntos...
- Pô, você tá um saco hoje. Vamos mudar de assunto...
- ... não querendo te gozar, mas você que sabe tantos tipos de Português, pode arranjar um bom emprego lá. Assim, conforme a categoria da pessoa que vai ser mandada embora, você vai lá e explica pro sujeito na língua dele. Garanto que eles ficarão menos chateados...
- Chega, meu!
- Tá legal. Mas me lembrei de outra coisa. Um vizinho meu foi procurar emprego de office-boy e deram um teste de gramática pra ele, cheio de perguntas sobre orações subordinadas, colocação de pronomes, onde vai a vírgula, os tempos verbais, um monte de coisas, tudo isso pra ganhar metade de um salário mínimo.
- E ele passou?
- Nem sei direito. Parece que tinha uns mil na fila...
- Poxa, então devem ter selecionado só os muito bons! Tá vendo? Se ele tivesse sido meu aluno...
- É mesmo... Sabe que um amigo meu foi contratado numa indústria prum cargo ótimo, com chofer, mordomias, ordenado altíssimo, tudo mais, e nem fez teste de Português?
- Ah... é?
- As únicas coisas que ele teve que demonstrar era que ele ia ser um Diretor bom, obediente e fazer tudo para o bem da empresa...
- ... bem, ele não precisou fazer teste de Português porque decerto só no contrato já perceberam que ele era uma pessoa educada.
- Ah! Então só se fala bem nas boas famílias? ... Que é uma boa família?
- Você sabe, não se faça de bobo! Você, por exemplo, é de uma boa família, todo mundo é educado, leem bastante, têm muita cultura...
- ... têm dinheiro para comprar livros, frequentar faculdades, fazer mil cursinhos...
- ... então, é isso aí uma boa família...
- ... mas os mais ricos são os que menos leem, estudam, só tem tempo para ganhar e gastar...
- ... mas continua sendo uma boa família...
- Então, já sei! Boa família é uma família com dinheiro, bastante dinheiro... que pena... em nosso país há pouquíssimas boas famílias e milhões de péssimas...
- Pô, você não aguenta mesmo levar um papo sério, vem logo ironizando, exagerando, radicalizando... Parece que você ainda é adolescente... Gente imatura é que é assim, rebelde, enxergando só um lado das coisas... Tudo tem seu lado ruim e seu lado bom.
- Bem, tá legal, mas me diga só uma outra coisa. Você dá aulas, ou melhor, vende aulas em duas escolas, uma particular, e outra, estadual. O Português que você ensina é o mesmo, numa e noutra?
- Claro que é, o Português é uma língua só, todo mundo tem que falar igual.
- Quer dizer que os alunos das duas escolas são iguais, aprendem tudo igualzinho?
- Não. É evidente que não! Na escola estadual, onde dou aula à noite, eles vêm cansados, trabalharam o dia inteiro, quase dorme na aula; não têm tempo de ler, estudar, não têm base, vão passando de ano sem saber nada...
- E daí?
- ... eu tenho que dar um curso mais fraco, ensinar menos coisas, dar mais bases e...
- E na escola particular?
- Ah! Lá é diferentes. Eles leem muito mais, já vêm com muitas informações, o curso anda bem, eles falam e escrevem bem...
- ... então suas aulas na escola estadual são mais baratas, você capricha menos, usa menos material e...
- Pera aí, não é isso, não... Eu quero que os meus alunos cheguem até onde estão os alunos ricos, que eles consigam acompanhar o meu curso, que na escola particular tem um nível mais alto...
- Ah! Agora entendi bem... Você acha que a língua dos ricos é melhor e que os alunos mais pobres devem se esforçar para chegar lá, onde estão aqueles, é só falar e escrever; bem, o resto não é necessário...
- Não, não, também é necessário que eles saibam muitas outras coisas sobre a sociedade, a vida, etc, etc... Mas isso não é problema meu... Isso é com o professor de História, de Estudos Sociais.
- Puxa! Já vi que você pode entender muito de Português, mas não entende quase nada de Educação... Nesse ponto, você está no mesmo ponto do seu aluno que não sabe ler...
- Bem. Chega! Não quero mais papo com você hoje; está muito agressivo e complicado...
- Ah!...
- Agora, falando um pouco mais sério...

A língua é produzida socialmente. Isto que dizer que a sua produção e reprodução é fato cotidiano, localizado no tempo e no espaço da vida dos homens: uma questão dentro da vida e da morte, do prazer e do sofrer. Numa sociedade, como a brasileira, que por sua dinâmica econômica e política divide e individualiza as pessoas, isola-as em grupos, distribui a miséria entre a maioria e concentra os privilégios nas mãos de poucos, a língua não poderia deixar de ser, entre outras coisas, também a expressão dessa mesma situação.

Miséria social e miséria da Língua confundem-se e uma engendra a outra, formando o quadro triste da vida brasileira, vale dizer, o quadro deprimente da fala brasileira. A economia desumana praticada no Brasil mata antes de nascer milhares de futuros falantes. A taxa de mortalidade infantil no Brasil é uma das maiores do mundo. A voz de milhares de brasileiros é calada antes mesmo de conseguir dar o primeiro choro. Mas alguns ainda conseguem chegar até os dois anos e aí apropriar-se de um instrumental importante, a Língua, a Linguagem. Para esses, começa uma nova luta. Uma boa parte não terá muito tempo para falar, pois no mercado da miséria, alguns cruzeiros a mais no salário representarão certamente alguns anos a mais de vida. Por exemplo: segundo o IBGE, 1984, para quem ganha até 1 salário mínimo, a esperança de vida é de 54,8 anos, mas para quem ganha mais de 5 salários mínimos, a esperança de vida aumenta para 69,6 anos. Portanto, salários mínimos a mais representam anos de vida a mais.

Vemos que conseguir falar, hoje, já é uma proeza fantástica para a multidão que não desfruta das riquezas econômicas (que ela mesma produz). Agora, a pergunta que se segue é "esses sobreviventes conseguem falar"? Não meramente grunhir uns sons para suprir necessidades básicas, mas falar mesmo, dizer o mundo, suas vidas, seus desejos, prazeres, dizer coisas para transformar coisas, dizer o seu sofrimento e suas causas, dizer o que fazer para mudar, lutar. Pobres falantes! O seu trabalho não tem palavras, tem ferramentas e isolamento. É um trabalho mecânico, infeliz, repetido, ao lado dos companheiros, mas longe deles, sua conversa é como a máquina, a enxada. Em pequenos intervalos permitem-lhe abrir a boca para comer a ração diária que  lhe mal repõe as energias para durar aqueles 30/35 anos que lhe deu a graça de ter nascido do lado errado do rio.

Chegando em casa, esgotado, mal ouve as palavras domésticas ditadas pela TV ou gritadas pelos filhos, o rebanho doméstico, peças de futuras reposições. Se tem sorte, chega cedo, pode ouvir a vida nas novelas, no mundo dos auditórios. Ele, ela, pobretões, podem ouvir. De posse do instrumento Língua, eles não podem usá-lo integralmente. À maioria é permitido ouvir, não falar. O professor do ouvir é a TV, monopólio e concessão do Estado e das empresas privadas. A TV é professora antiga, autoritária, só fala, fala, nunca ouve. O aluno, espectador, é também aquele antigo, passivo, conformado, só ouve. A TV é como uma escolinha, a cada horário corresponde uma série, de acordo com o "desenvolvimento mental do aluno". Quanto mais cedo o horário, mais primária a programação, mas a quantidade dos alunos/espectadores é imensa. Com o subir das séries muda o nível do programa, os espectadores também. E assim, nas últimas séries/programas a evasão é enorme, há poucos alunos. Só que a educação é a inversa da escola, pois aqui se trata de prazer: sobram os que a sociedade já selecionou que podem ouvir e ver qualquer coisa, pois não vão fazer nada, seus estômagos estão tranquilos, sua vida arrumada.

É claro que comer é importante, e no Brasil todos comem. Verdade? Alguns comem muito, outros nada. Ora, ouvir, entendendo, e falar, fazendo-se entender, são habilidades estreitamente ligadas ao desenvolvimento mental, vale dizer, relacionadas à alimentação, principalmente nos primeiros anos de vida. Também nessa área o Brasil é triste. Sua população é, na maioria, mal alimentada, desnutrida, doente. Podendo deduzir, então, que somente uma pequena quantidade de pessoas tem condições naturais de falar, pensar e usufruir de literatura, poesia, textos importantes, teatros, cinema.

E a escola? Muitas vezes ela esquece que a educação é um problema social e encara-o como problema cultural, pedagógico. Sem o menor respeito pelas condições de vida de seus frequentadores impõe-lhes modelos de ensino e conteúdo justamente produzidos para conservação dessa situação injusta, indecente, que esboçamos anteriormente. Sem fazer a crítica verdadeira, histórica, do saber que coloca aos alunos, a escola considera todo e qualquer conteúdo válido, muitas vezes baseado em preconceitos, ignorâncias, verdades incontestáveis, dogmáticas. E assim vemos muitos professores de Português, tragicamente, ensinando análise sintática a crianças mal alimentadas, pálidas, que acabam depois de aulas onde não faltam castigos e broncas, condicionadas a distinguir o sujeito de uma oração. Estas crianças passarão alguns anos na escola sem saber que elas poderão acertar o sujeito da oração mas nunca serão o sujeito das suas próprias histórias. A menos que...

Texto de Milton José de Almeida.

domingo, 28 de junho de 2020

De La Amistad

Y un joven dijo: "Háblanos de la amistad".

Y é respondió:

"Vuestro amigo es la respuesta a vuestras necesidades.

El es el campo que sembráis con amor y cosecháis con agradecimiento.

El es vuestra mesa y el fuego de vuestro hogar.

Porque os acercáis a él con vuestro hambre, y le buscáis sedientos de paz.


Cuando vuestro amigo os manifieste su pensamiento, no temáis el "no" en vuestra cabeza, ni retengáis el "sí".

Y cuando él permanezca en silencio, que vuestro corazón no deje de oír su corazón.

Porque en la amistad, todos los pensamientos, todos los deseos, todas las esperanzas nacen y se comparten con gozo y sin alardes.

Cuando os alejéis de vuestro amigo, no sintáis dolor.

Porque lo que más amáis en él quizá esté más claro en su ausencia, igual que la montaña es más clara desde el llano para el que quiere subirla.

Y no permitáis que haya en la amistad otro interés que el que os lleve a profundizar en el espíritu.

Porque el amor que no busca más que la revelación de su propio misterio no es amor, sino una red tendida que sólo recoge la pesca inútil.


Que lo mejor de vosotros sea para vuestro amigo.

Si ha de conocer el flujo de vuestra marea, que también conozca su reflujo.

Porque, qué amigo sería aquel que tuvierais que buscaros para matar las horas?

Buscadlo para vivir la horas.

Porque existe para colmar vuestra necesidad, no vuestro vacío.

Y haced que en la dulzura de la amistad haya risa e placeres compartidos.

Porque en el rocío de las cosas pequeñas, el corazón encuentra su alborada y se refresca."

Del libro "El Profeta", de Gibrán Jalil Gibrán, traducción de Mauro Armiño. Biblioteca Edaf.

sábado, 27 de junho de 2020

Desde Quando

Já não dói mais, porque enfim eu te encontrei
Se te vejo eu sinto mil coisas de uma vez
Veja se busquei, veja se busquei
Tenho tanto que aprender
Tudo o que tenho é o seu olhar

Das lembranças saem brisas a bailar
Minhas loucuras que eu insisto em demonstrar
Veja se busquei,  veja se busquei
Tenho tanto para amar
Vejo portas que eu tranquei
Que abrem somente uma vez
Me perco aos poucos

Desde quando eu tive te esperando
Desde quando estou buscando
Palavras do pensamento e vou sonhando
Te buscando em um milhão de auroras
Me cubra e me namora
E nem sabes que eu possa ir embora
Pode parecer atrevimento, é puro sentimento
Diga, por favor, teu nome?

Eu te levo pelas ruas a correr
Muito longe pra ver o sol acender
Se pergunto bem, se pergunto mal
Tenho tanto pra oferecer
Abro portas que alguém fechou
E não busco mais sentido a minha dor
Vou me enlouquecendo aos poucos

Desde quando eu tive te esperando
Desde quando estou buscando
Palavras do pensamento e vou sonhando
Te buscando em um milhão de auroras
Me cubra e me namora
E nem sabes que eu possa ir embora
Pode parecer atrevimento, é puro sentimento
Diga, por favor, teu nome
E não me deixe louco

Desde quando eu tive te esperando
Desde quando estou buscando
Palavras do pensamento e vou sonhando
Te buscando em um milhão de auroras
Me cubra e me namora
E no fim quando te encontrei
Estava tão só

Música de Alejandro Sanz e versão de Mr. John, com gravação apenas digital deste.

Conto Erótico da Língua Portuguesa

Era a terceira vez que aquele substantivo e aquele artigo se encontravam no elevador. Um substantivo masculino, com um aspecto plural, com alguns anos bem vividos pelas preposições da vida. E o artigo era bem definido, feminino, singular: era ainda novinha, mas com um maravilhoso predicado nominal. Era ingênua, silábica, um pouco átona, até ao contrário dele: um sujeito oculto, com todos os vícios de linguagem, fanático por leituras e filmes ortográficos.

O substantivo gostou dessa situação: os dois sozinhos, num lugar sem ninguém ver e ouvir. E sem perder essa oportunidade, começou a se insinuar, a perguntar, a conversar. O artigo feminino deixou as reticências de lado, e permitiu esse pequeno índice.

De repente, o elevador para, só com os dois dentro: ótimo, pensou o substantivo, mais um bom motivo para provocar alguns sinônimos. Pouco tempo depois, já estavam bem entre parênteses, quando o elevador recomeça a se movimentar: só que em vez de descer, sobe e para justamente no andar do substantivo. Ele usou de toda a sua flexão verbal, e entrou com ela em seu aposto. Ligou o fonema, e ficaram alguns instantes em silêncio, ouvindo uma fonética clássica, bem suave e gostosa.

Prepararam uma sintaxe dupla para ele e um hiato com gelo para ela. Ficaram conversando, sentados num vocativo, quando ele começou outra vez a se insinuar. Ela foi deixando, ele foi usando seu forte adjunto adverbial, e rapidamente chegaram a um imperativo, todos os vocábulos diziam que iriam terminar num transitivo direto.

Começaram a se aproximar, ela tremendo de vocabulário, e ela sentindo seu ditongo crescente: se abraçaram, numa pontuação tão minúscula, que nem um período simples passaria entre os dois. Estavam nessa ênclise quando ela confessou que ainda era vírgula: ele não perdeu o ritmo e sugeriu um longo ditongo oral e, quem sabe, talvez, uma ou outra soletrada em seu apóstrofo.

É claro que ela se deixou levar por essas palavras, estava totalmente oxítona às vontades dele, e foram para o comum de dois gêneros. Ela totalmente voz passiva, ele voz ativa.

Entre beijos, carícias, parônimos e substantivos, ele foi avançando cada vez mais: ficaram uns minutos nessa próclise, e ele, com todo o seu predicativo do objeto, ia tomando conta dela inteira. Estavam na posição de primeira e segunda pessoas do singular, ela era um perfeito agente da passiva, ele todo paroxítono, sentindo o pronome do seu grande travessão forçando aquele hífen ainda singular.

Nisso a porta abriu repentinamente. Era o verbo auxiliar do edifício. Ele tinha percebido tudo, e entrou dando conjunções e adjetivos nos dois, que se encolheram gramaticalmente, cheios de preposições, locuções e exclamativas.

Mas ao ver aquele corpo jovem, numa acentuação tônica, ou melhor, subtônica, o verbo auxiliar diminuiu seus advérbios e declarou o seu particípio na história. Os dois se olharam, e viram que isso era melhor do que uma metáfora por todo o edifício. O verbo auxiliar se entusiasmou, e mostrou o seu adjunto adnominal.

Que loucura, minha gente. Aquilo não era nem comparativo: era um superlativo absoluto. Foi se aproximando dos dois, com aquela coisa maiúscula, com aquele predicativo do sujeito apontando para seus objetos. Foi chegando cada vez mais perto, comparando o ditongo do substantivo ao seu tritongo, propondo claramente uma mesóclise-a-trois. Só que as condições eram estas: enquanto abusava de um ditongo nasal, penetraria ao gerúndio do substantivo, e culminaria com um complemento verbal no artigo feminino.

O substantivo, vendo que poderia se transformar num artigo indefinido depois dessa, pensando em seu infinitivo, resolveu colocar um ponto final na história: agarrou o verbo auxiliar pelo seu conectivo, jogou pela janela, e voltou ao seu trema, cada vez mais fiel à língua portuguesa, com o artigo feminino colocado em conjunção coordenativa conclusiva.

Esta foi uma redação feita por uma aluna do curso de Letras da UFPE - Universidade Federal de Pernambuco - Recife, que obteve vitória em um concurso interno promovido pelo professor titular da cadeira de Gramática Portuguesa. Antes do Acordo Ortográfico!!

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Republicação do Abaporu - versão masculina


A fonte de inspiração do famoso quadro Abaporu de Tarsila do ...

Menino

Me agarro nesse menino, que tem os olhos tranquilos
Os olhos mais lindos, a boca aguada de tamarindo

Me agarro nesse menino, que tem os dias sadios
Que é peixe no rio, que é bicho acuado sem meus carinhos

Me agarro nesse menino, que tem o campo cerrado
Um baio selado e fogoso esperando por meus domingos

Me agarro nesse menino, com cola, com visgo de figo
Que brinca comigo, enquanto meus filhos estão dormindo

Será que ele cresce?
Me faz pouco caso
E um dia me esquece?

Preciso desse menino, que tem na sua algibeira
Segredos e chaves, que abrem porteiras pros meus caminhos

Preciso desse menino, de sua água de mina
Que lava meus dias e os deixa quarando num sol a pino

Preciso desse menino, que tira ouro do milho
Da vida o destino, com seu canivete cor de alumínio

Preciso desse menino, que eu carrego aqui dentro
Sem ele eu perco todo encantamento por ter crescido

Será que ele cresce?
Me faz pouco caso
E um dia me esquece?

Música de Ivan Lins e Vitor Martins, que faz parte do CD Anjo de Mim, lançado em 1995.

Anjo de Mim

O meu amor
Vida pulsar
Dentro de mim

Meu quero mais
Meu querer bem
Meu querubim

Anjo de mim
Me faz amor
Abraçadinho

Meu coração
Começo e fim
Meu pôr-de-mim

O meu amor
É meu luar
Em noite Jobim

É tanto céu
Dedo de Deus
Em meu caminho

Porto de mim
Meu sol, meu ar
Meu tudo enfim

Água é do mar
Como eu sou teu
Cuida de mim

Me leva, me leva

Música de Ivan Lins e Vitor Martins que dá título ao CD Anjo de Mim, lançado em 1995.

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Natal na Barca

Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu.

O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.

Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com a barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio.

Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.

A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resvalou para o rio. Agachei-me para apanhá-la. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água.

- Tão gelada - estranhei, enxugando a mão.

- Mas de manhã é quente.

Voltei-me para a mulher que embalava a criança e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado.  Tinha belos olhos claros, extraodinariamente brilhantes. Vi que suas roupas puídas tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade.

- De manhã esse rio é quente - insistiu ela, me encarando.

- Quente?

- Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de roupa, pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem por estas bandas?

Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta:

- Mas a senhora mora aqui por perto?

- Em Lucena. Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não esperava que justamente hoje...

A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a niná-la com um brando movimento de cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era tranquilo.

- Seu filho?

- É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu devia consultar um médico hoje mesmo. Ainda ontem estava bem, mas de repente piorou. Uma febre, só febre... - Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo, mas o olhar tinha a expressão doce. - Só sei que Deus não vai me abandonar.

- É o caçula?

- É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar! A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito... Tinha pouco mais de quatro anos.

Atirei o cigarro na direção do rio, mas o toco bateu na grade e voltou, rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfregá-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo.

- E esse? Que idade tem?

- Vai completar um ano. - E, noutro tom, inclinando a cabeça para o ombro: - Era um menino tão bonzinho, tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito engraçado... Só a última mágica que fez foi perfeita, vou voar! - disse abrindo os braços. E voou.

Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços - os tais laços humanos - já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. Mas agora não tinha forças para rompê-los.

- Seu marido está à sua espera?

- Meu marido me abandonou.

Sentei-me novamente e tive vontade de rir. Era incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta, mas agora não podia mais parar.

- Há muito tempo?

- Faz uns seis meses. Imagine que nós vivíamos tão bem, mas tão bem! Quando ele encontrou por acaso com essa antiga namorada, falou comigo sobre ela, fez até uma brincadeira, a Duca enfeou, de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito... E não falou mais no assunto. Uma manhã ele se levantou como todas as manhã, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda me acenou, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me acenou através da tela de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela de arame no meio... Mas eu estava com a mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora.

Fixei-me nas nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter participado deles realmente. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, e ainda via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Intocável. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos e aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma obscura irritação me fez sorrir.

- A senhora é conformada.

- Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.

- Deus - repeti vagamente.

- A senhora não acredita em Deus?

- Acredito - murmurei. E, ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por que, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela confiança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas...

Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro direito para o esquerdo. E começou, com voz quente de paixão:

- Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada que saí pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele... Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, só se mostrasse um instante, ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto... Era tal sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim.

Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale novamente e voltei o olhar para o chão. O menino estava morto. Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto.

Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim.

- Estamos chegando - anunciou.

Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir antes que ela descobrisse, era terrível demais, não queria ver. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia:

- Chegamos! Ei! Chegamos!...

Aproximei-me, evitando encará-la.

- Acho melhor nos despedirmos aqui - disse atropeladamente, estendendo a mão.

Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um movimento como se fosse pegar a sacola. Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho.

- Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre.

- Acordou?!

Ela teve um sorriso.

- Veja...

Inclinei-me. A criança abrira os olhos - aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face de novo corada. Fiquei olhando sem conseguir falar.

- Então, bom Natal! - disse ela, enfiando a sacola no braço.

Encarei-a. Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosamente. E acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na noite.

Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim reiniciando seu afetuoso diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.

Texto de Lygia Fagundes Telles, do livro Venha Ver O Pôr-do-Sol e Outros Contos, da Editora Ática, publicado em 1988.

Escutatória

Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.

Escutar é complicado e sutil. Diz o Alberto Caeiro que "não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma". Filosofia é um monte de ideias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os olhos. Diante de nós, fora da cabeça, nos campos e matas, estão as árvores e as flores. Ver é colocar dentro da cabeça aquilo que existe fora. O cego não vê porque as janelas dele estão fechadas. O que está fora não consegue entrar. A gente não é cego. As árvores e as flores entram. Mas - coitadinhas delas - entram e caem num mar de ideias. São misturadas nas palavras da filosofia que mora em nós. Perdem a sua simplicidade de existir. Ficam outras coisas. Então, o que vemos não são as árvores e as flores. Para se ver é preciso que a cabeça esteja vazia.

Faz muito tempo, nunca me esqueci. Eu ia de ônibus. Atrás, duas mulheres conversavam. Uma delas contava para a amiga os seus sofrimentos. (Contou-me uma amiga, nordestina, que o jogo que as mulheres do Nordeste gostam de fazer quando conversam umas com as outras é comparar sofrimentos. Quanto maior o sofrimento, mais bonitas são a mulher e a sua vida. Conversar é a arte de produzir-se literariamente como mulher de sofrimentos. Acho que foi lá que a ópera foi inventada. A alma é uma literatura. É nisso que se baseia a psicanálise...) Voltando ao ônibus. Falavam de sofrimentos. Uma delas contava do marido hospitalizado, dos médicos, dos exames complicados, das injeções na veia - a enfermeira nunca acertava -, dos vômitos e das urinas. Era um relato comovente de dor. Até que o relato chegou ao fim, esperando, evidentemente, o aplauso, a admiração, uma palavra de acolhimento na alma da outra que, supostamente, ouvia. Mas o que a sofredora ouviu foi o seguinte: "Mas isso não é nada..." A segunda iniciou, então, uma história de sofrimentos incomparavelmente mais terríveis e dignos de uma ópera que os sofrimentos da primeira.

Parafraseio o Alberto Caeiro: "Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma." Daí a dificuldade: a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. No fundo somos todos iguais às duas mulheres do ônibus. Certo estava Lichtenberg - citado por Murilo Mendes: "Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas." Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...

Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos, estimulado pela revolução de 64. Pastor protestante (não "evangélico"), foi trabalhar num programa educacional da Igreja Presbiteriana USA, voltado para as minorias. Contou-me de sua experiência com os índios. As reuniões são estranhas. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, como se estivessem orando. Não rezando. Reza é falatório para não ouvir. Orando. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as ideias estranhas. Também para se tocar piano é preciso não ter filosofia nenhuma). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito. Pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que julgava essenciais. Sendo dele, os pensamentos não são meus. São-me estranhos. Comida que é preciso digerir. Digerir leva tempo. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se falo logo a seguir são duas as possibilidades. Primeira: "Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado". Segunda: "Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou." Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: "Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou". E assim vai a reunião.

Há grupos religiosos cuja liturgia consiste de silêncio. Faz alguns anos passei uma semana num mosteiro na Suíça, Grand Champs. Eu e algumas pessoas ali estávamos para, juntos, escrever um livro. Era uma antiga fazenda. Velhas construções, não me esqueço da água no chafariz onde as pombas vinham beber. Havia uma disciplina de silêncio, não total, mas de uma fala mínima. O que me deu enorme prazer às refeições. Não tinha a obrigação de manter uma conversa com meus vizinhos de mesa. Podia comer pensando na comida. Também para comer é preciso não ter filosofia. Não ter obrigação de falar é uma felicidade. Mas logo fui informado de que parte da disciplina do mosteiro era participar da liturgia três vezes por dia: ás 7 da manhã, ao meio-dia e às 6 da tarde. Estremeci de medo. Mas obedeci. O lugar sagrado era um velho celeiro, todo de madeira, teto muito alto. Escuro. Haviam aberto buracos na madeira, ali colocando vidros de várias cores. Era uma atmosfera de luz mortiça, iluminado por algumas velas sobre o altar, uma mesa simples com um ícone oriental de Cristo. Uns poucos bancos arranjados em "U" definiam um amplo espaço vazio, no centro, onde quem quisesse podia se assentar numa almofada, sobre um tapete. Cheguei alguns minutos antes da hora marcada. Era um grande silêncio. Muito frio, nuvens escuras cobriam o céu e corriam, levadas por um vento impetuoso que descia dos Alpes. A força do vento era tanta que o velho celeiro torcia e rangia, como se fosse um navio de madeira num mar agitado. O vento batia nas macieiras nuas do pomar e o barulho era como o de ondas que se quebram. Estranhei. Os suíços são sempre pontuais. A liturgia não começava. E ninguém tomava providências. Todos continuavam do mesmo jeito, sem nada fazer. Ninguém que se levantasse para dizer: "Meus irmãos, vamos cantar o hino..." Cinco minutos, dez, quinze. Só depois de vinte minutos é que eu, estúpido, percebi que tudo já se iniciara vinte minutos antes. As pessoas estavam lá para se alimentar de silêncio. E eu comecei a me alimentar de silêncio também. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. É música, melodia que não havia e que quando ouvida nos faz chorar. A música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem. No silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós - como no poema de Mallarmé, A Catedral Submersa, que Debusssy musicou. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Me veio agora a ideia de que, talvez, essa seja a essência da experiência religiosa -  quando ficamos mudos, sem fala. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar. Para mim Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto...

Texto de Rubem Alves, do livro O amor que acende a lua, da Editora Papirus, 13ª Edição, 2008.


quarta-feira, 24 de junho de 2020

A Carroça dos Cachorros

Quando de manhã cedo, saio da  minha casa, triste e saudoso da minha mocidade que se foi infecunda, na rua eu vejo o espetáculo mais engraçado desta vida.

Amo os animais e todos eles me enchem do prazer da natureza.

Sozinho, mais ou menos esbodegado, eu, pela manhã, desço a rua e vejo.

O espetáculo mais curioso é o da carroça dos cachorros. Ela me lembra a antiga caleça dos ministros de Estado, no tempo do império, quando eram seguidas por duas praças de cavalaria de polícia.

Era no tempo da minha meninice e eu me lembro disso com as maiores saudades.

- Lá vem a carrocinha! - dizem.

E todos os homens, mulheres e crianças se agitam e  tratam de avisar os outros.

Diz Dona Marocas e Dona Eugênia:

- Vizinha! Lá vem a carrocinha! Prenda o Jupi!

E toda a "avenida" se agita e os cachorrinhos vão presos e escondidos.

Esse espetáculo tão curioso e especial mostra bem de que forma profunda nós homens nos ligamos aos animais.

Nada de útil, na verdade, o cão nos dá; entretanto, nós o amamos e nós o queremos.

Quem os ama mais, não somos nós os homens; mas são as mulheres e as mulheres pobres, depositárias por excelência daquilo que faz a felicidade e infelicidade da humanidade - o Amor.

São elas que defendem os cachorros dos praças de polícia e dos guardas municipais; são elas que amam os cães sem dono, os tristes e desgraçados cães que andam por aí à toa.

Todas as manhãs, quando vejo semelhante espetáculo, eu bendigo a humanidade em nome daquelas pobres mulheres que se apiedam pelos cães.

A lei, com a sua cavalaria e guardas municipais, está no seu direito em persegui-los; elas, porém, estão no seu dever em açoitá-los.

Conto A Carroça de Cachorros, de Lima Barreto, escrito em 20.09.1919, do livro Crônicas Escolhidas.

A Professora de Desenho

Falando a verdade, escola é uma chatice. Pelo menos a minha era uma chatice. Essa história de aprender tabuada, fazer prova, lição de casa... Eu não gostava. Ficava feliz quando aparecia uma gripe. Existe coisa melhor? Eu juntava todos os brinquedos em cima da cama. Traziam revistinhas. Chocolates. Televisão no quarto. Era ótimo.

Disse que a escola era muito chata, mas esqueci de uma coisa: as aulas de desenho. Eram legais.

Toda sexta-feira, depois do recreio, a Dona Marisa (naquele tempo a gente não chamava a professora de "tia", nem usava só o nome dela, sem nada, assim: "Marisa"; tinha de ser "dona Marisa") - enfim, a dona Marisa saía da sala, e entrava a professora de desenho. A dona Andréia.

A dona Marisa era meio gorducha, usava coque no cabelo, e se pintava feito uma louca. Batom. Sombra azul nos olhos. Meio perua. Eu não gostava da dona Marisa.

Mas aí entrava a professora de desenho. A dona Andréia era mocinha. Tinha cabelos castanhos. Lisos e compridos.

A aula de desenho era uma farra. A gente abria os cadernos, que não tinham linhas, só folhas de papel em branco, para a gente fazer o que quisesse. Podia. Dona Andréia deixava.

Ela era linda.

Um dia, ela se atrasou. O tempo ia passando, e ela não chegava. Todo mundo estava louco para ter a aula de desenho.

Por que será que ela estava atrasada?

Nessa idade, a gente sabe muito pouco da vida dos adultos. Talvez tivesse brigado com o namorado. Pode ser que o diretor da escola estivesse dando uma bronca nela. Vai ver que tinha alguém doente na família.

Mas a gente não queria saber de nada. Só queria ter aula de desenho.

Foi quando a dona Andréia apareceu. Todos nós ficamos contentes.

Não foi só ficar contente. Foi uma espécie de alegria total, de gritaria, de explosão.

Ele entrou na classe.

Alguém gritou:

- É a Andréia!!

Não era o jeito certo de falar. Tinha de dizer "dona Andréia". Mas àquela altura ninguém estava ligando.

Todo mundo começou a gritar:

- É a Andréia! É a Andréia!!

O berreiro foi ganhando um ritmo. Como se fosse torcida de futebol.

- An-dré-ia! An-dré-ia!

Parecia um jogador entrando em campo. Ou um cantor de rock.

- An-dré-ia! An-dré-ia!

Ela começou a ficar alegre com a zoeira. Deu um sorriso. O sorriso dela era lindo.

- An-dré-ia!

Depois, ela ficou um pouco assustada. Não estava entendendo a bagunça.

- An-dré-ia!

Foi então que eu vi. Ela começou a chorar.

E saiu da sala.

Na hora, eu não entendi.

Fiquei pensando.

Quem sabe ela se assustou muito. Talvez não imaginasse que a gente gostava tanto dela. E, às vezes, muito amor assusta as pessoas.

Pode ser que ela tivesse ficado brava. Tínhamos de dizer "dona Andréia", e não dissemos. Era meio chocante só dizer "Andréia", como se ela fosse irmã da gente, ou apresentadora de televisão, ou empregada.

Ela também pode ter chorado por outro motivo qualquer. Estava triste com o namorado, ou com alguma doença na família, e toda aquela alegria da gente atrapalhou os sentimentos dela.

A Andréia nunca mais voltou.

As aulas de desenho acabaram.

Comecei a perceber uma coisa.

É que às vezes, quando a gente gosta demais de uma pessoa, não dá certo. Dá uma bobeira na gente. A gente começa a gritar:

- Andréia! Andréia!

E a Andréia fica sem jeito. Não sabe o que fazer. Se assusta. Se enche.

Ouça este conselho.

Se você gosta muito de alguém, tome cuidado antes de fazer escândalo. Não fique gritando "Andréia! Andréia!". Finja que você só está achando a pessoa legal, nada mais. Senão a Andréia sai correndo.

Quando a gente gosta de alguém, tem de fazer como sorvete. Dá uma mordidinha. Mas não enfia o nariz e a boca na massa de morango. Senão, vão achar que a gente é idiota.

As pessoas da minha classe gostavam tanto da Andréia, que ela foi embora. Se a gente fosse mais esperto, fingia que não gostava tanto.

Conto "A Professora de Desenho", do livro A Professora de Desenho e Outros Contos de Marcelo Coelho, Editora Companhia das Letrinhas, de 1995.