quarta-feira, 24 de junho de 2020

A Professora de Desenho

Falando a verdade, escola é uma chatice. Pelo menos a minha era uma chatice. Essa história de aprender tabuada, fazer prova, lição de casa... Eu não gostava. Ficava feliz quando aparecia uma gripe. Existe coisa melhor? Eu juntava todos os brinquedos em cima da cama. Traziam revistinhas. Chocolates. Televisão no quarto. Era ótimo.

Disse que a escola era muito chata, mas esqueci de uma coisa: as aulas de desenho. Eram legais.

Toda sexta-feira, depois do recreio, a Dona Marisa (naquele tempo a gente não chamava a professora de "tia", nem usava só o nome dela, sem nada, assim: "Marisa"; tinha de ser "dona Marisa") - enfim, a dona Marisa saía da sala, e entrava a professora de desenho. A dona Andréia.

A dona Marisa era meio gorducha, usava coque no cabelo, e se pintava feito uma louca. Batom. Sombra azul nos olhos. Meio perua. Eu não gostava da dona Marisa.

Mas aí entrava a professora de desenho. A dona Andréia era mocinha. Tinha cabelos castanhos. Lisos e compridos.

A aula de desenho era uma farra. A gente abria os cadernos, que não tinham linhas, só folhas de papel em branco, para a gente fazer o que quisesse. Podia. Dona Andréia deixava.

Ela era linda.

Um dia, ela se atrasou. O tempo ia passando, e ela não chegava. Todo mundo estava louco para ter a aula de desenho.

Por que será que ela estava atrasada?

Nessa idade, a gente sabe muito pouco da vida dos adultos. Talvez tivesse brigado com o namorado. Pode ser que o diretor da escola estivesse dando uma bronca nela. Vai ver que tinha alguém doente na família.

Mas a gente não queria saber de nada. Só queria ter aula de desenho.

Foi quando a dona Andréia apareceu. Todos nós ficamos contentes.

Não foi só ficar contente. Foi uma espécie de alegria total, de gritaria, de explosão.

Ele entrou na classe.

Alguém gritou:

- É a Andréia!!

Não era o jeito certo de falar. Tinha de dizer "dona Andréia". Mas àquela altura ninguém estava ligando.

Todo mundo começou a gritar:

- É a Andréia! É a Andréia!!

O berreiro foi ganhando um ritmo. Como se fosse torcida de futebol.

- An-dré-ia! An-dré-ia!

Parecia um jogador entrando em campo. Ou um cantor de rock.

- An-dré-ia! An-dré-ia!

Ela começou a ficar alegre com a zoeira. Deu um sorriso. O sorriso dela era lindo.

- An-dré-ia!

Depois, ela ficou um pouco assustada. Não estava entendendo a bagunça.

- An-dré-ia!

Foi então que eu vi. Ela começou a chorar.

E saiu da sala.

Na hora, eu não entendi.

Fiquei pensando.

Quem sabe ela se assustou muito. Talvez não imaginasse que a gente gostava tanto dela. E, às vezes, muito amor assusta as pessoas.

Pode ser que ela tivesse ficado brava. Tínhamos de dizer "dona Andréia", e não dissemos. Era meio chocante só dizer "Andréia", como se ela fosse irmã da gente, ou apresentadora de televisão, ou empregada.

Ela também pode ter chorado por outro motivo qualquer. Estava triste com o namorado, ou com alguma doença na família, e toda aquela alegria da gente atrapalhou os sentimentos dela.

A Andréia nunca mais voltou.

As aulas de desenho acabaram.

Comecei a perceber uma coisa.

É que às vezes, quando a gente gosta demais de uma pessoa, não dá certo. Dá uma bobeira na gente. A gente começa a gritar:

- Andréia! Andréia!

E a Andréia fica sem jeito. Não sabe o que fazer. Se assusta. Se enche.

Ouça este conselho.

Se você gosta muito de alguém, tome cuidado antes de fazer escândalo. Não fique gritando "Andréia! Andréia!". Finja que você só está achando a pessoa legal, nada mais. Senão a Andréia sai correndo.

Quando a gente gosta de alguém, tem de fazer como sorvete. Dá uma mordidinha. Mas não enfia o nariz e a boca na massa de morango. Senão, vão achar que a gente é idiota.

As pessoas da minha classe gostavam tanto da Andréia, que ela foi embora. Se a gente fosse mais esperto, fingia que não gostava tanto.

Conto "A Professora de Desenho", do livro A Professora de Desenho e Outros Contos de Marcelo Coelho, Editora Companhia das Letrinhas, de 1995.

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