segunda-feira, 29 de junho de 2020

Ensinar Português?

Comecemos a conversa, a meio caminho entre o sério e o cômico (também trágico), imaginando um diálogo. Alguém chega e pergunta a um professor de Português...
- Ensina-se mesmo Português, esta língua que a gente usa todo o dia?
- É claro, em escolas do primeiro ao terceiro graus. Há aulas de Português, portanto...
- A quem se ensina Português?
- Ora, além de estrangeiros interessados, ensina-se principalmente a brasileiros...
- ... que já falam Português!... Ah! Então eles não falam Português?!
- Bem, claro que falam, desde crianças...
- Ah! Entendi... Existem duas línguas com o mesmo nome "Português", uma nacional, natural, que todo mundo já nasce falando e uma outra, estrangeira, que é preciso ir à escola aprender...
- ... epa, pera aí! Num é bem assim... Desculpe-me, deixe-me começar novamente a frase:um momento, você está equivocado, este assunto não é exatamente como você está colocando.
- Ué, isto que você acabou de me falar está nessa língua estrangeira?
- Claro que não, pô! Você não entendeu?
- Entendi... Soou um pouco estranho, mas até que bonito. Você fala assim na sua casa, também?
- Claro que não, somente em alguns lugares e com algumas pessoas.
- Ah! Então você troca de língua como troca de roupa, às vezes mais chique, outras mais esportivo, outras mais popular...
- Sim, claro! Você não quer que eu vá falar com o Diretor daquela indústria ali, por exemplo, mal vestido e falando de qualquer jeito, não?
- Como assim?
- Ora, se eu vou falar com um cara tão importante, preciso falar corretamente, palavras bonitas e gramaticalmente bem colocadas...
- ... mesmo se você vai lá pra dizer pra ele que os salários estão horríveis, que tá todo mundo passando fome, que enquanto ele viaja de Mercedes, você anda a pé, que a indústria dele joga todo dia esse cheiro de bosta no nariz de todo mundo...
- Ô meu, para né?! Você já tá baixando o nível... É claro que você precisa falar direitinho... Até pra reclamar...
- Ah!... Então é por isso que se ensina Português... Para as pessoas aprenderem a falar direitinho com os patrões!
- Não simplifica, né?! Não é só isso, não.
- Tem mais?
- Claro, por exemplo. Se você não souber falar e escrever direito, corretamente, você não arranja um bom emprego, não consegue passar num concurso, nem uma boa colocação...
- Poxa, agora estou entendendo melhor; pra arranjar um bom emprego a língua que a gente usa não serve...
- Serve sim, mas só pra coisinhas, conversinhas banais, mas pra subir na vida, ganhar bem, não!
- Ah! Entendi. Então esses milhões de desempregados que estão por aí foram despedidos porque não sabiam escrever e falar corretamente! Eles não podem voltar pra escola?
- Ô meu. Lá vem você de novo com questões que não dizem respeito ao ensino de Português... Quando esses caras quiserem novamente emprego, eles vão ter que saber Português...
- Então você poderia abrir um cursinho de Português para desempregados!
- Vê se não goza, vá!
- Agora me lembrei; você é professor de Português, não é?
- Sou.
- Então você sabe Português perfeitamente, não?
- Claro. Tenho diploma, cursos de aperfeiçoamento, trabalhos publicados, etc...
- Ah! Quer dizer que você deve ganhar superbem, não? Fiquei até com vontade de fazer um curso de Letras...
- Bem... Não é bem assim, você sabe, ehr, hum, ahn... O Estado paga mal...
- ... não quero te deixar chateado, mas sabe, o Diretor daquela indústria que você mostrou agorinha, não sabe falar Português nenhum, nem aquele vulgarzinho, nem esse da escola... E ele ganha muito mais que nós todos juntos...
- Pô, você tá um saco hoje. Vamos mudar de assunto...
- ... não querendo te gozar, mas você que sabe tantos tipos de Português, pode arranjar um bom emprego lá. Assim, conforme a categoria da pessoa que vai ser mandada embora, você vai lá e explica pro sujeito na língua dele. Garanto que eles ficarão menos chateados...
- Chega, meu!
- Tá legal. Mas me lembrei de outra coisa. Um vizinho meu foi procurar emprego de office-boy e deram um teste de gramática pra ele, cheio de perguntas sobre orações subordinadas, colocação de pronomes, onde vai a vírgula, os tempos verbais, um monte de coisas, tudo isso pra ganhar metade de um salário mínimo.
- E ele passou?
- Nem sei direito. Parece que tinha uns mil na fila...
- Poxa, então devem ter selecionado só os muito bons! Tá vendo? Se ele tivesse sido meu aluno...
- É mesmo... Sabe que um amigo meu foi contratado numa indústria prum cargo ótimo, com chofer, mordomias, ordenado altíssimo, tudo mais, e nem fez teste de Português?
- Ah... é?
- As únicas coisas que ele teve que demonstrar era que ele ia ser um Diretor bom, obediente e fazer tudo para o bem da empresa...
- ... bem, ele não precisou fazer teste de Português porque decerto só no contrato já perceberam que ele era uma pessoa educada.
- Ah! Então só se fala bem nas boas famílias? ... Que é uma boa família?
- Você sabe, não se faça de bobo! Você, por exemplo, é de uma boa família, todo mundo é educado, leem bastante, têm muita cultura...
- ... têm dinheiro para comprar livros, frequentar faculdades, fazer mil cursinhos...
- ... então, é isso aí uma boa família...
- ... mas os mais ricos são os que menos leem, estudam, só tem tempo para ganhar e gastar...
- ... mas continua sendo uma boa família...
- Então, já sei! Boa família é uma família com dinheiro, bastante dinheiro... que pena... em nosso país há pouquíssimas boas famílias e milhões de péssimas...
- Pô, você não aguenta mesmo levar um papo sério, vem logo ironizando, exagerando, radicalizando... Parece que você ainda é adolescente... Gente imatura é que é assim, rebelde, enxergando só um lado das coisas... Tudo tem seu lado ruim e seu lado bom.
- Bem, tá legal, mas me diga só uma outra coisa. Você dá aulas, ou melhor, vende aulas em duas escolas, uma particular, e outra, estadual. O Português que você ensina é o mesmo, numa e noutra?
- Claro que é, o Português é uma língua só, todo mundo tem que falar igual.
- Quer dizer que os alunos das duas escolas são iguais, aprendem tudo igualzinho?
- Não. É evidente que não! Na escola estadual, onde dou aula à noite, eles vêm cansados, trabalharam o dia inteiro, quase dorme na aula; não têm tempo de ler, estudar, não têm base, vão passando de ano sem saber nada...
- E daí?
- ... eu tenho que dar um curso mais fraco, ensinar menos coisas, dar mais bases e...
- E na escola particular?
- Ah! Lá é diferentes. Eles leem muito mais, já vêm com muitas informações, o curso anda bem, eles falam e escrevem bem...
- ... então suas aulas na escola estadual são mais baratas, você capricha menos, usa menos material e...
- Pera aí, não é isso, não... Eu quero que os meus alunos cheguem até onde estão os alunos ricos, que eles consigam acompanhar o meu curso, que na escola particular tem um nível mais alto...
- Ah! Agora entendi bem... Você acha que a língua dos ricos é melhor e que os alunos mais pobres devem se esforçar para chegar lá, onde estão aqueles, é só falar e escrever; bem, o resto não é necessário...
- Não, não, também é necessário que eles saibam muitas outras coisas sobre a sociedade, a vida, etc, etc... Mas isso não é problema meu... Isso é com o professor de História, de Estudos Sociais.
- Puxa! Já vi que você pode entender muito de Português, mas não entende quase nada de Educação... Nesse ponto, você está no mesmo ponto do seu aluno que não sabe ler...
- Bem. Chega! Não quero mais papo com você hoje; está muito agressivo e complicado...
- Ah!...
- Agora, falando um pouco mais sério...

A língua é produzida socialmente. Isto que dizer que a sua produção e reprodução é fato cotidiano, localizado no tempo e no espaço da vida dos homens: uma questão dentro da vida e da morte, do prazer e do sofrer. Numa sociedade, como a brasileira, que por sua dinâmica econômica e política divide e individualiza as pessoas, isola-as em grupos, distribui a miséria entre a maioria e concentra os privilégios nas mãos de poucos, a língua não poderia deixar de ser, entre outras coisas, também a expressão dessa mesma situação.

Miséria social e miséria da Língua confundem-se e uma engendra a outra, formando o quadro triste da vida brasileira, vale dizer, o quadro deprimente da fala brasileira. A economia desumana praticada no Brasil mata antes de nascer milhares de futuros falantes. A taxa de mortalidade infantil no Brasil é uma das maiores do mundo. A voz de milhares de brasileiros é calada antes mesmo de conseguir dar o primeiro choro. Mas alguns ainda conseguem chegar até os dois anos e aí apropriar-se de um instrumental importante, a Língua, a Linguagem. Para esses, começa uma nova luta. Uma boa parte não terá muito tempo para falar, pois no mercado da miséria, alguns cruzeiros a mais no salário representarão certamente alguns anos a mais de vida. Por exemplo: segundo o IBGE, 1984, para quem ganha até 1 salário mínimo, a esperança de vida é de 54,8 anos, mas para quem ganha mais de 5 salários mínimos, a esperança de vida aumenta para 69,6 anos. Portanto, salários mínimos a mais representam anos de vida a mais.

Vemos que conseguir falar, hoje, já é uma proeza fantástica para a multidão que não desfruta das riquezas econômicas (que ela mesma produz). Agora, a pergunta que se segue é "esses sobreviventes conseguem falar"? Não meramente grunhir uns sons para suprir necessidades básicas, mas falar mesmo, dizer o mundo, suas vidas, seus desejos, prazeres, dizer coisas para transformar coisas, dizer o seu sofrimento e suas causas, dizer o que fazer para mudar, lutar. Pobres falantes! O seu trabalho não tem palavras, tem ferramentas e isolamento. É um trabalho mecânico, infeliz, repetido, ao lado dos companheiros, mas longe deles, sua conversa é como a máquina, a enxada. Em pequenos intervalos permitem-lhe abrir a boca para comer a ração diária que  lhe mal repõe as energias para durar aqueles 30/35 anos que lhe deu a graça de ter nascido do lado errado do rio.

Chegando em casa, esgotado, mal ouve as palavras domésticas ditadas pela TV ou gritadas pelos filhos, o rebanho doméstico, peças de futuras reposições. Se tem sorte, chega cedo, pode ouvir a vida nas novelas, no mundo dos auditórios. Ele, ela, pobretões, podem ouvir. De posse do instrumento Língua, eles não podem usá-lo integralmente. À maioria é permitido ouvir, não falar. O professor do ouvir é a TV, monopólio e concessão do Estado e das empresas privadas. A TV é professora antiga, autoritária, só fala, fala, nunca ouve. O aluno, espectador, é também aquele antigo, passivo, conformado, só ouve. A TV é como uma escolinha, a cada horário corresponde uma série, de acordo com o "desenvolvimento mental do aluno". Quanto mais cedo o horário, mais primária a programação, mas a quantidade dos alunos/espectadores é imensa. Com o subir das séries muda o nível do programa, os espectadores também. E assim, nas últimas séries/programas a evasão é enorme, há poucos alunos. Só que a educação é a inversa da escola, pois aqui se trata de prazer: sobram os que a sociedade já selecionou que podem ouvir e ver qualquer coisa, pois não vão fazer nada, seus estômagos estão tranquilos, sua vida arrumada.

É claro que comer é importante, e no Brasil todos comem. Verdade? Alguns comem muito, outros nada. Ora, ouvir, entendendo, e falar, fazendo-se entender, são habilidades estreitamente ligadas ao desenvolvimento mental, vale dizer, relacionadas à alimentação, principalmente nos primeiros anos de vida. Também nessa área o Brasil é triste. Sua população é, na maioria, mal alimentada, desnutrida, doente. Podendo deduzir, então, que somente uma pequena quantidade de pessoas tem condições naturais de falar, pensar e usufruir de literatura, poesia, textos importantes, teatros, cinema.

E a escola? Muitas vezes ela esquece que a educação é um problema social e encara-o como problema cultural, pedagógico. Sem o menor respeito pelas condições de vida de seus frequentadores impõe-lhes modelos de ensino e conteúdo justamente produzidos para conservação dessa situação injusta, indecente, que esboçamos anteriormente. Sem fazer a crítica verdadeira, histórica, do saber que coloca aos alunos, a escola considera todo e qualquer conteúdo válido, muitas vezes baseado em preconceitos, ignorâncias, verdades incontestáveis, dogmáticas. E assim vemos muitos professores de Português, tragicamente, ensinando análise sintática a crianças mal alimentadas, pálidas, que acabam depois de aulas onde não faltam castigos e broncas, condicionadas a distinguir o sujeito de uma oração. Estas crianças passarão alguns anos na escola sem saber que elas poderão acertar o sujeito da oração mas nunca serão o sujeito das suas próprias histórias. A menos que...

Texto de Milton José de Almeida.

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