terça-feira, 16 de junho de 2020

Trecho 381 de O Livro do Desassossego

"Ninguém ainda definiu, com linguagem com que compreendesse quem o não tivesse experimentado, o que é o tédio. O a uns chamam tédio, não é mais aborrecimento; o que a outros o chamam, não é senão mal-estar; há outros, ainda, que chamam tédio ao cansaço. Mas o tédio, embora participe do cansaço, e do mal-estar, e do aborrecimento, participa deles como a água participa do hidrogênio e oxigênio, de que se compõe. Inclui-os sem a eles se assemelhar.
Se uns dão assim ao tédio um sentido restrito e incompleto, um ou outro lhe presta uma significação que em certo modo o transcende - como quando se chama tédio ao desgosto íntimo e espiritual da variedade e da incerteza do mundo. O que faz abrir a boca, que é o aborrecimento; o que faz mudar de posição, que é o mal-estar; o que faz não se poder mexer, que é o cansaço - nenhuma destas coisas é o tédio; mas também o não é o sentimento profundo da vacuidade das coisas, pelo qual a aspiração frustrada se liberta, a ânsia desiludida se ergue, e se forma na alma a semente da qual nasce o místico ou o santo.
O tédio é, sim, o aborrecimento do mundo, o mal-estar de estar vivendo, o cansaço de se ter vivido; o tédio é, deveras, a sensação carnal da vacuidade prolixa das coisas. Mas o tédio é, mais do que isto, o aborrecimento de outros mundos, quer existam quer não; o mal-estar de ter que viver, ainda que outro, ainda que de outro modo, ainda que noutro mundo; o cansaço, não só de ontem e de hoje, mas de amanhã também, da eternidade, se a houver, e do nada, se é ele que é a eternidade. Nem é só a vacuidade das coisas e dos seres que dói na alma quando ela está em tédio: é também a vacuidade de outra coisa qualquer, que não as coisas e os seres, a vacuidade da própria alma que sente o vácuo, que se sente vácuo, e que nele de si enoja e se repudia.
O tédio é a sensação física do caos, e de que o caos é tudo. O aborrecido, o mal-estante, o cansado sentem-se presos numa cela estreita. O desgostoso da estreiteza da vida sente-se algemado numa cela grande. Mas o que tem tédio sente-se preso em liberdade fruste numa cela infinita. Sobre o que se aborrece, ou tem mal-estar, ou fadiga, podem desabar os muros da cela, e soterrá-lo. Ao  que se desgosta da pequenez do mundo podem cair as algemas, e ele fugir, ou doer de as não poder tirar, e ele, com sentir a dor, reviver-se sem desgosto. Mas os muros da cela infinita não nos podem soterrar, porque não existem; nem nos podem sequer fazer viver pela dor as algemas que ninguém nos pôs.
E é isto que eu sento ante a beleza plácida desta tarde que finda imperecivelmente. Olho o céu alto e claro, onde coisas vagas, róseas, como sombras de nuvens, são uma penugem impalpável de uma vida alada e longínqua. Baixo os olhos sobre o rio, onde a água, não mais que levemente trêmula, é de um azul que parece espelhado de um céu mais profundo. Ergo de novo os olhos ao céu, há já, entre o que de vagamente colorido se esfia sem farrapos no ar invisível, um tom algendo de branco baço, como se alguma coisa também das coisas, onde são mais altas e frustes, tivesse um tédio material próprio, uma impossibilidade de ser o que é, um corpo imponderável de angústia e de  desolação.
Mas quê? Que há no ar alto mais que o ar alto, que não é nada? Que há no céu mais que uma cor que não é dele? Que há nesses farrapos de menos que nuves, de que já duvido, mais que uns reflexos de luz materialmente  incidentes de um sol submisso? que há em tudo isto senão eu? Ah, mas o tédio é isso, é só isso. É que em tudo isso - céu, terra, mundo, - o que há em tudo isto não é senão eu!"

Trecho número 381 do Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa.

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