terça-feira, 30 de novembro de 2021

Ana Belen e o Brasil

 Ana Belen apaixonou-se pela música e pelas aspirações dos brasileiros. Ela que é uma intérprete constantemente preocupada (na música e na vida particular) com os problemas sociais de seu país. O encontro de Ana com a música brasileira começou há alguns anos atrás, quando ela tomou conhecimento da MPB através de discos enviados por amigos e por sua gravadora no Brasil. "Tive na Espanha, há alguns anos atrás, um grande sucesso com a canção "Quiero ver Brasil", escrita por meu marido, Victor Manuel, onde fazia menção a todos os meus ídolos, Chico, Gil, Caetano, Milton, etc. Daí em diante aumentou ainda mais a minha vontade de conhecer esse país único no mundo". De imediato Ana amou nossa música e nossa peculiar maneira de ser. Gravou O Que Será, de Chico Buarque e o Brasil ficou mais conhecido em sua terra, como nunca antes fora. Um merecido Disco de Ouro para o sucesso de Chico na voz da Ana. Ela quis conhecer mais e mais e resolveu vir ao Brasil para gravar um LP só com músicas de nossos autores. Nos estúdios Sigla (Rio) ficou inteiramente à vontade, sob a produção de Sérgio Carvalho, supervisão de Marcos Maynard e direção musical de Lincoln Olivetti, e gravou vinte músicas, metade em português e metade em espanhol. Neste álbum duplo - apenas promocional e com edição limitada - estão todas essas canções.

Algumas dessas músicas estarão no álbum que Ana lançará brevemente na Europa. Para o disco que será lançado no Brasil em maio, foi escolhido o seguinte repertório: Volto (Ivan Lins), Noche de Máscaras "Noite dos Mascarados" (Chico Buarque, adapt. Victor Manuel San José, participação vocal: Chico Buarque), Paisagem da Janela (Lô Borges & Fernando Brant), Planeta Água (Guilherme Arantes, adapt. Victor Manuel San José), Voar, Voar (Zé Geraldo), Impossível (Fagner, em poema de Florbela Espanca, participação vocal: Fagner), Caminando "Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores" (Geraldo Vandré, adapt. Victor Manuel San José), Expresso 2222 (Gilberto Gil), Teresiña "Terezinha" (Chico Buarque, adapt. Victor Manuel San José), Canção Menina (Ruy Mauriti & José Jorge). O disco foi todo gravado somente com músicos brasileiros, para manter o nosso espírito e o nosso balanço.

ANA BELEN é a nossa embaixatriz musical na Espanha, com toda a força de seu prestígio e de sua popularidade, formando nossa arte ainda mais conhecida do outro lado do Atlântico. "Trabalhar no Brasil foi uma experiência absolutamente fascinante e emocionante, única em toda minha carreira", explica Ana, "Conheci de perto os músicos brasileiros - quentes, sensíveis, profissionalíssimos, amigos. E aumentou minha admiração por Chico Buarque quando nos encontramos e ele gravou "Noche de Máscaras" comigo. Quando Raimundo Fagner compôs especialmente "Impossível" e ele passou toda a emoção que já sentira em suas canções. Sensibilizei-me tremendamente com a música que Ivan Lins fez pra mim - "Volto" -, que tão fortemente retrata minha terra e tantas outras terras. As canções de Zé Geraldo (Voar, Voar) e da dupla Ruy Mauriti & José Jorge (Canção Menina) foram trabalhos novos que passei a conhecer e amar.

Gilberto Gil eu já conhecia, amava e respeitava muito; dele gravei duas músicas muito fortes e rítmicas: "De Onde Vem o Baião" e "Expresso 2222". E os compositores mais jovens do Brasil também estão presentes. Lô Borges (em parceria com Fernando Brant e Guilherme Arantes, um som novo que me fascinou.

E não poderia deixar de gravar o "pai" da música nova do Brasil - Luiz Gonzaga -, um grande inovador da música brasileira regional. Foi excitante ter gravado - dele e de Hervê Cordovil - "A Vida do Viajante", que fala da vida de todos nós, artistas de palco e da estrada.

Queria também mostrar a belíssima diversificação rítmica da música brasileira, especialmente para o público espanhol que a conhece penas através de antigos sambas bossa-nova e dos LPs de Roberto Carlos. Por isso inclui também "Balancê" (João de Barro & Alberto Ribeiro), uma marchinha carnavalesca, o samba-canção "Teresinha", de Chico Buarque, que tem uma linguagem tão própria do sentimentalismo brasileiro, e até mesmo a voz ousada do povo, suas aspirações e esperanças, através da belíssima canção de Geraldo Vandré, "Caminhando", acompanhada de grande coro, provavelmente a mais emocionante do meu disco."


Texto escrito por Francisco Rodrigues na parte interna do álbum lançado no Brasil por Ana Belen em 1982 pela então Gravadora CBS. Foi um disco duplo promocional...

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Santos Tradicionais no Brasil

Meu São Francisco das Chagas

Meu Santo do Canindé!

Eu sei que Santo não voga

Naquilo que Deus não qué


Durante meses em 1947 investiguei a popularidade de alguns Santos na fidelidade brasileira. Viajei e li boletins, arquivos, anuários. Muita conversa com gente velha de cidade, agreste e sertão. Não enfrentei as 3110 paróquias de 1953 quanto mais as do presente. A notícia municipalista é de 1965, IBGE. Informações de Fé, vieram das vozes populares, às quais proclamo confiança plenária.

Falarei ao de leve do orago da paróquia e do seu denominador. O Santo pode estar no altar principal mas não ser padrinho da freguesia. Padroeiro da Sé mas não titular do Bispado. São Pedro é titular da Arquidiocese de Porto Alegre mas a da Catedral é Nossa Senhora Madre de Deus. O titular do Maranhão é São Luís, Rei da França e da Sé, Nossa Senhora da Vitória. Do Recife e Olinda, Santo Antônio e da Catedral, a Transfiguração de Nosso Senhor Jesus Cristo, pouco entendida pelo beaterio. Às vezes é a mesma e única entidade: - Nossa Senhora das Neves na Paraíba, Nossa Senhora da Apresentação em Natal, ambas arquidioceses.

Preferência de Santos sobre Santas. Em 1391 paróquias, 909 Santos paraninfam para 482 padroeiras. Exceto Nossa Senhora nas incontáveis invocações, os homens distinguem o Santo do seu sexo. Leonardo Mota (Violeiros do Norte, 1925) registra a resposta desaforada de um chefe político sertanejo, referindo-se ao desafeto: - "O padroeiro da terra dele é feme, mas o da minha é macho: - mija em pé e não de coca..."

Alinho a relação no ângulo da simpatia. À esquerda as paróquias e à direita municípios e distritos.

Nossa Senhora da Conceição... 288, denominando 22 paróquias, 37 unidades municipais.

Santo Antônio - 228.62, municípios e distritos

São José - 171.80, distritos e municípios

São Sebastião - 144.43

São João - 118.62

Senhora Sant'Ana - 113.36

São Pedro, Chaveiro do Céu - 58.29

São Miguel - 37.17

São Francisco Xavier, Paula, Assis, Chagas - 31.23

Santa Rita - 30.23

Santa Teresinha - 25.7

São Gonçalo - 21.12

Tomei base na vintena das paróquias. A Santa Cruz dá nome a 25 municípios e distritos mas não constitui orago, exceto em freguesia de São Sebastião do Rio de Janeiro. Há quem debata a Santa Cruz constituir paraninfado real, atendendo apenas a participação sacrificial do Redentor, como a coroa de espinhos, a cana-verde, os cravos. São Domingos e Santa Bárbara batizam distritos e municípios em número de 12, para cada um. São Vicente atinge os 15.

São esses os nomes preferenciais da devoção brasileira. A presença do orago nem sempre coincide com a maioria devocional. Há respeitosa vênia mas não aparecem promessas. A Padroeira de Natal, desde inícios do século XVII, Nossa Senhora da Apresentação, não tem o culto assíduo e público do Padre João Maria, falecido em 1905, e que ainda não mereceu altar. Os natalenses canonizaram-no para todos os efeitos. É a mais popular das devoções na sua comovedora presença em todas as horas. 

Nossa Senhora das Neves em João Pessoa, padroeira, não é a intercessora preferida. Há os Santos terapeutas, como em todas as populações católicas do Mundo, atendendo as consultas por intermédio de orações, pagos os honorários em promessas. São Brás para garganta. São Bento contra ofídios. Santa Apolônia, odontologia. Santa Luzia, oftalmóloga. São Lázaro, úlceras, dermatoses, feridas-brabas. São Sebastião, moléstias contagiosas. São Judas Tadeu, enfermidades graves. São Vito, convulsões. São Roque, tumores. Nossa Senhora da Expectação, do Ó, Boa hora, Bom Despacho, Livramento, Bom Sucesso, Bom Parto, Boa Esperança, para a gravidez normal e parto feliz com recursos complementares a São José, Sant'Ana, São Raimundo Nonato (nonnatus, porque nasceu com cesariana). São Geraldo Magela, Santo Aluísio, evitam filhos pondo seu nome na criança. Para tornar-se mãe, Nossa Senhora da Piedade, das Dores, da Soledade, Madre-Deus, Santa Isabel, Sant'Ana dará leite. São Luís facilitará a linguagem. Santo Expedito fará andar. Santa Biliana cuidará das urinas. O Anjo da Guarda vigiará os passos de dia e o sono de noite. São José protegerá o lar. O Espírito Santo, a memória. São Cristóvão os negócios. Os "Bem-casados" (São Lúcio e Santa Bona) garantem o amor conjugal. A jaculatória "Jesus, Maria José minh'alma vossa é!" assistirá a agonia. São Miguel acompanhará o Espírito. Nossa Senhora do Carmo defenderá no Julgamento.

São Miguel é inseparável do culto das Almas, "São Miguel e Almas", como há paróquia em Santos Dumont, Minas Gerais. Santíssimo Sacramento e o Divino Espírito Santo são devoções delicadas, exigentes, cerimoniosas, populares e não vulgares. Apesar dos cortejos e trono da Festa do Divino, onde aparece Imperador coroado ou a Coroa Imperial é exibida em lenta procissão. O Sagrado Coração de Jesus e de Maria não são de emprego confiado na parte masculina. Preferências de mulheres e de área urbana e suburbana e não-corrente no mundo agropastoril. Os Santos letrados, São Tomás, Santo Inácio, São Paulo, Santa Teresa de Jesus, São Francisco de Sales, não alcançam o poviléu reverente.

Divinópolis, em Minas Gerais, tem o Divino Espírito Santo padroeiro. Merece o duplo tratamento de "Divino" e de "Santo". No Divinópolis de Goiás, orgulha-se possuindo o orago resplandecente e único no Brasil: - o Padre Eterno! permitindo muito pouca aproximação pecadora. Voltaire dizia-o esquecido na universal gratidão e ergueu-lhe igreja em Ferney, Deo erexit Voltaire, gravado na fachada.

Os Santos tradicionais na memória viva são os de Junho (Santo Antônio, São João, São Pedro) e mais São José e São Sebastião. Jesus Cristo é Nosso Senhor e Meu Deus. O Divino continua "Deus desconhecido" pela imprecisão dos atributos funcionais. A feitura de pomba não lhe imprime a devida majestade, quando todos os demais assumem formas humanas. Em Portugal, o Divino Espírito Santo já se apresenta como em Zebreira, Beira Baixa, ancião, venerando, coroado, em poltrona de espaldar, recebendo as vênias e dádivas. A devoção mais profunda, instintiva e natural é Nossa Senhora da Conceição, com sua infindável sinonímia que o Povo julga constituir outras tantas Santas distintas. As representações plásticas ajudam a manter a confusão entre os humildes fiéis nos países católicos. É a mesma observação na França, Itália, Espanha, Portugal, permitindo supor que toda a vida religiosa no Povo esteja limitada à contemplação do cerimonial litúrgico. Nas cidades a conclusão não será dessemelhante.

O culto dos Santos é o único interesse psicológico da multidão e a "alta sociedade" já não tem densidade espiritual para impeli-la ao sentimento divino. Indiferentismo que o desinteresse fundamenta pelo atrito diário, ou, nos intelectuais, uma curiosidade cerebral pela química da Fé ou anatomia das crenças. Homens e mulheres, nem mesmo pelo interior do Brasil, têm a visão litúrgica para reforço da Fé, porque vivem distantes das igrejas e da assistência sacerdotal, raramente prestante pela diminuição dos ministros em serviço dos Sacramentos. A necessidade econômica fixa esse Povo em regiões afastadas dos centros urbanos. Vezes, em larga extensão, não se avista em Capela!

Nesse ermo ardem as fogueirinhas de São João e sobem foguetes a São Pedro, Chaveiro do Céu, garantindo a entrada. Rezam a São Sebastião, defensor da Peste, Nossa Senhora da Conceição, arredando as dificuldades. Não podendo prever as modificações acolhedoras do II Concílio Vaticano, o clero moveu guerra de morte às devoções festivas mesmo nos adros das igrejas. Assim, a dança de São Gonçalo foi combatida como sacrilégio pelo Nordeste, apenas resiste no Sul. Duas fileiras devotas saudavam São Gonçalo cantando versos fervorosos, desfilando em marcha divergente, sob a direção de violeiros. Cantam no Sul ante a efígie, engalanada num telheiro rústico. É, como Sant'Antônio, Santo casamenteiro. Nesse plano, obtive na minha pensão de estudante no Recife de 1925 uma "Oração para casar", em versos, que Pereira da Costa divulgou variante em 1908.


Milagroso São Raimundo

Que casais a todo o mundo,

Vá dizer a Santo Antero

Que também casar eu quero.

Poder de São Expedito

Com um noivo bem bonito.

Permita Santo Odorico

Que ele seja muito rico.

E também Santo Agostinho

Que tenha muito carinho.

Assim como a São Roberto

Que o noivo seja esperto.


Com o poder de Santa Rosa

Quero ter nome de esposa.

Na força de Santa Inês

Chegue logo minha vez.

E com o senhor São João

Que me tenha adoração.


Também peço a São Vicente

Que isto seja brevemente.

Ao Anjo São Gabriel

Que seja bem fiel.

Assim como a São Germano

Que não passe deste ano!


Jamais foram "orações" e sim composição urbana e literária, com sua voga humorística desaparecida pela mudança das atenções psicológicas, como ocorria a uma "Ladainha das Moças", que Pereira da Costa salvou do esquecimento.


São Bartolomeu casar-me quer eu.

São Ludovico, com um moço muito rico.

São Nicolau, que ele não seja mau.

São Benedito, que seja bonito.

São Vicente, que não seja impertinente.

São Sebastião, que me leve à função.

Santa Felicidade, que me faça a vontade.

São Benjamin, que tenha paixão por mim.

Santo André, que não tome rapé.

São Divino, que tenha muito tino.

São Gabriel, que me seja fiel.

Santo Aniceto, que ande bem quieto.

São Miguel, que perdure a lua-de-mel.

São Bento, que não seja ciumento.

Santa Margarida, que me traga bem-vestida.

Santa Trindade, que me dê felicidade.


Pelas praias, agrestes, sertão, zona das matas, vales úmidos, essas produções seriam impossíveis num ângulo desinteressado de sátira. Nessas regiões o assunto é tratado a lo divino, a sério, suplicando marido, lar, filhos, legitimidade funcional feminina. A técnica aliciante é decisiva e urgente, alheia aos recursos da excitação citadina. A mulher é a mesma no poderoso instinto de conquista e fixação sexual. Toda mulher é Eva, pregava o Padre Antônio Vieira.

Nalguns sertões, Maranhão, Piauí, Mato Grosso, casavam publicamente ante a fogueira de São João, estabelecendo subsequente vida doméstica, portas adentro, respeitada e normal, até o aparecimento de um padre para "sacramentar" a união de fato. Queixam-se de tudo menos de carência da Fé. Possuem nas lembranças imediatas a presença suficiente e radiosa dos divinos recursos protetores e leais. Nosso Senhor, Nossa Senhora, o Crucificado, a corte dos Santos e Santas tradicionais, ajudam a manter essa autarquia religiosa, obstinada e sensível, na solidão do "desertão" nacional. Das representações de Cristo a de maior confiança, destino das súplicas desesperadas ou de imperioso interesse, é o Crucificado, o Cristo ferido e sangrento, morrendo na cruz. É o Bom Jesus! Centraliza as grandes romarias fervorosas, Bonfim, Lapa, Pirapora, Bom Jesus das Dores, distribuindo graças quando recebia os derradeiros ultrajes. O Povo só se comove realmente ante duas expressões físicas do Messias. O Menino-Deus no presépio e o Bom Jesus no madeiro do Gólgota. A criança determina a floração de ternura no complexo protetor da paternidade. O Crucificado provoca uma piedade de revolta e protesto pela injustiça da violência e a brutalidade da Força onipotente. Vale muito mais com sua coroa de espinhos que o Cristo-Rei no seu diadema de ouro. É o Bom Jesus com o coração aberto pela lança legionária, ampliando o caminho às misericórdias do Entendimento.

Um erudito "desencantado", Charles Guingnebert, quando professor da História do Cristianismo na Sorbonne, perguntava sem responder se La force de résistence des ignorants est-ce vraiment le dogme qui vit en eux? Visto e examinado quando vi e ouvi, documentário humano ao qual me reporto e dou fé, respondo à pergunta do Professor Guingnebert, com uma simples afirmativa: - É!


retirado do livro Superstição no Brasil, de Luís da Câmara Cascudo, Global Editora, 2ª Edição, 2002.

Marina Lima

Quando a belafera Marina Lima lançou no Teatro Ipanema o seu primeiro LP, Simples Como Fogo, em 1979, tudo ficou quente e claro como o verão: o Rio apresentava ao país a sedução de uma de suas melhores garotas de Ipanema. Esta garota é uma cantora de estilo, além de compositora, arranjadora, guitarrista e filósofa de expressões poéticas.

O compositor Caetano Veloso foi o primeiro a anunciá-la como "a cantora mais interessante de uma geração". Vieram depois outros poetas, como Haroldo de Campos, a exaltar em versos a feminilidade felina de Marina: "Deixe cantaras meninas dos olhos, olhos de fera felina, Marina."

Qual seria, então, este estilo de Marina? Os críticos tentaram em vão enquadrá-la nas categorias de rock, funk, blues, MPB. Nada disso. Marina é todas. De uma elaboração tão pessoal que consegue, por exemplo, marcar com a diferença de uma irreverência cool a canção mais tocada de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Depois de Astrud Gilberto, Ella Fitzgerald e Sara Vaughan, veio a Garota de Ipanema bluesy de Marina lançada nos Estados Unidos em clipe da MTV.

O público demorou alguns LPs para descobrir que tinha um ídolo simplesmente fogo. Todas, aliás, é o título do LP, o sexto, que jogou Marina no mercado das 100.000 cópias vendidas. O estouro da cantora de massa já se desenhava no LP anterior, Fullgás, sucesso que fecha o primeiro lado deste LP*. Esta Personalidade* concentra uma única matéria-prima em 14 canções: a paixão. 

Da garganta de Marina, vozes quentes, sussurradas, saltam da romântica Nosso Estranho Amor, de Caetano Veloso, ao funk de bandleader Difícil, de Marina e Antônio Cícero, o irmão mais velho e parceiro principal da artista. Não satisfeito em colocar as  próprias palavras nas cordas de aço de seu violão, Marina assina sozinha e com o irmão, versões singulares, como Pé na Tábua para Ordinary Pain, de Steve Wonder e Doida de Rachar para Maxine, de Donald Fagen, de originais em inglês, a língua que a dupla aprendeu a dominar durante a infância nos Estados Unidos.

Esta garota ousada de Ipanema se determinou ainda a criar novos valores de vida, compatíveis com a multiplicidade de seus desejos, todos expostos em público, até os mais ocultos, descobertos no divã do analista. Derrama inconfundível sensualidade também por canções de amigos, como a delicada Nada Por Mim, de Herbert Vianna e Paula Toller ou Eu Te Amo Você, de Kiko Zambianchi e consagra de uma vez o sucesso de Lobão, Me Chama, com a inquietação rouca de quem se movimenta por libido. Marina é movida a lib, amor em alemão, calor que provoca arrepio.


Texto escrito por Márcia Cezimbra para a contracapa da coletânea em LP intitulada *Personalidade, lançada pela PolyGram em 1991.

A Terra se Expande

Adetutu se viu em meio ao nada, como se coisa nenhuma existisse à sua volta. Estava completamente só, sem ninguém com quem falar, sem nada para fazer. Imaginou como teria sido a solidão de Olorum antes da criação do mundo. Porque, antes do início dos tempos, Olorum, o Ser Supremo, já habitava a eternidade. Ele vivia só, e tudo à sua volta era igual, sem diversidade e sem movimento. Acabou se cansando de tanto nada, de tanta mesmice, e decidiu fazer um mundo onde seu olhar pudesse pousar a cada instante numa coisa diferente. Queria que tudo se movesse e se transformasse. Imaginou o mundo em que até mesmo a repetição daria origem a novidades.

Olorum criou os orixás e atribuiu a cada um deles um de seus poderes, para que juntos governassem o mundo em seu nome.

Antes de mais nada, foi preciso criar a Terra e o firmamento e o que neles deveria existir. Oxalá, o filho mais velho de Olorum, recebeu esse encargo. Olorum entregou-lhe o saco da Criação, que continha toda a matéria necessária para a produção pretendida e disse:

" Vá e crie. "

Antes de Oxalá partir, Olorum recomendou:

" Nada mais será como foi até agora. O mundo começará a existir. Lembre-se de que Exu, o mais novo de seus irmãos, recebeu de mim o poder da transformação. Sem esse poder, nada se faz: não se cria e não se destrói; não se faz crescer ou definhar nem mesmo o mais insignificante dos seres. Faça uma oferenda a Exu, você sabe do que ele gosta e ele o ajudará na criação do mundo. "

Oxalá despediu-se e seguiu estrada afora, levando o saco da Criação nas costas. O fardo era pesado, a viagem, longa e cansativa. Ao passar sob uma árvore de galhos longos e roliços, cortou uma vara e improvisou um cajado para nele se apoiar ao longo da jornada. Ele criaria o mundo, criaria o Sol e as estrelas, a Terra e a Lua. Povoaria a Terra de mares e serras e rios e planícies e planaltos e cachoeiras. Depois cobriria as superfícies de terra firme com plantas de todos os tipos e tamanhos. Criaria os animais. A cada pensamento que surgia na mente fértil de Oxalá, a matéria se agitava no saco da Criação, que parecia ter ganhado um pulsar lento mas regular e ficava cada vez mais pesado. A vida já se manifestava no saco da Criação.

Adetutu seguia Oxalá, cuidando para não ser vista. Já conhecia a história, que a avó lhe contara muitas vezes e queria comprovar com os próprios olhos se era mesmo verdadeira.

De longe, Exu também acompanhava Oxalá, na esperança de ser chamado para dar sua contribuição à grande obra. Ao contrário de Adetutu, Exu fazia questão de se mostrar. Mas Oxalá, preocupado demais em elaborar em sua cabeça o projeto do mundo, nem  notava a presença de Exu.

A cada passo que avançava na viagem da Criação, Oxalá ia se convencendo de que não devia nada ao irmão caçula. Ele criaria o mundo, essa era sua missão, tinha o poder para isso. Ele seria grande, pensava, seria o maior dos orixás e sua obra, inigualável. Não tinha por que se preocupar com Exu. Talvez devesse lhe fazer um agradinho, lhe dar uns inhames assados e meia cabaça de aguardente, de que o irmãozinho tanto gostava. Mas se ele, Oxalá, estava destinado a ser o Grande Orixá, por que razão deveria se preocupar em fazer oferendas ao irmão para que ele o ajudasse? Faria tudo sozinho, tinha o saco da Criação! Em breve seria aclamado por todos. O mundo, agradecido, lhe renderia as devidas homenagens.

Assim pensando, oxalá esqueceu Exu completamente. Não se lembrou de que sem o controle sobre o movimento, poder que pertencia a Exu, nenhuma empreitada poderia dar certo. Nem uma coisinha qualquer, imagine a criação do mundo! Mas Oxalá era Oxalá. Já se imaginava o Criador.

Desgostoso com o descaso do irmão, Exu tratou de lembrá-lo de que sem sua participação nada de concreto resultaria da imaginação.

Naquele tempo Oxalá ainda não tinha esse nome, que na língua dos orixás quer dizer Grande Orixá. Era chamado de Obatalá, que significa Senhor-do-Pano-Branco, nome que ganhara por causa de seu gosto por tudo que era branco e imaculado, a começar de suas vestes.

Para mostrar a Oxalá que ele não era tão autossuficiente e poderoso como imaginava, Exu lhe preparou três incidentes.

Primeiro fez Oxalá cair e sujar as vestes na lama da estrada. Oxalá não suportava a sujeira e teve que voltar para casa para se  trocar. Perdeu um tempão.

Adetutu lamentou a sorte de Oxalá e quis avisá-lo para tomar cuidado com as vasilhas cheias de azeite de dendê que encontraria pela frente, mas ficou em dúvida se ele lhe daria ouvidos. Concluiu que era melhor ficar quieta.

Mais adiante Oxalá tropeçou numa cabaça de azeite de dendê e de novo sua roupa teve que ser substituída.

Exu a tudo assistia e se divertia muito com a caminhada acidentada do irmão mais velho.

Adetutu se mantinha escondida atrás do tronco de uma árvore. Depois de algum tempo, saiu do esconderijo, convencida de que os orixás não se perturbariam com sua presença. Foi quando teve a impressão de que Exu havia piscado para ela, num sinal de cumplicidade. Adetutu ficou com pena de Oxalá, imaginando as armadilhas que Exu ainda ia preparar para ele. Devia intervir, avisar Oxalá? Desistiu. Sabia que de nada adiantaria. Oxalá era famoso pela teimosia. E a história da Criação, afinal, era desse jeito mesmo.

Na terceira vez, foi com carvão que Oxalá se sujou. E lá foi ele de novo se trocar. Que perda de tempo! Mesmo assim Oxalá não se lembrou de pedir auxílio a Exu. Não lhe deu nada de presente, não fez nenhuma oferenda.

Odudua, outro irmão de Oxalá, que acompanhava tudo com muito interesse e certa dose de inveja, resolveu tirar proveito da situação. Uma vez que o desastrado irmão se mostrava incapaz de cumprir logo sua tarefa, por que não tomar para si a incumbência? Afinal, o mundo não podia ficar esperando Oxalá mudar de roupa indefinidamente. Odudua começou a sonhar que bem poderia ser ele o Criador. Cada vez mais convencido da incapacidade de Oxalá, Odudua foi se aconselhar com seu irmão Ifá, um adivinho que sabia tudo sobre o presente, o passado e o futuro.

Adetutu o seguiu. Queria ver como o oráculo funcionava.

Ifá jogou seus dezesseis búzios mágicos no chão, estudou o desenho que eles formaram e disse a Odudua que suas pretensões poderiam se concretizar. Antes de mais nada, deveria oferecer a Exu uma porção de inhames, uma cabaça de aguardente, uma de azeite de dendê e outra de água fresca, além de dezesseis punhados de búzios. Ah! E uma boa porção de pimenta-da-costa. Ao se dirigir para o lugar onde o mundo ia ser criado, deveria levar uma galinha de cinco dedos em cada pé, um camaleão e quarenta e uma correntes de ferro, que alguns dizem ter sido em número de quatrocentas mil e uma. Mas antes tinha que se apropriar do saco da Criação, evidentemente.

É claro todas as coisas mencionadas até aqui existiam apenas na mente dos deuses, pois o mundo de verdade, tal como o conhecemos e tudo o que há nele, ainda não fora criado.

Odudua deixou o presente para Exu numa encruzilhada, de onde ele vigiava quem ia de um lugar a outro e se pôs a caminho do lugar da Criação.

Enquanto isso, Oxalá, prestes a cumprir seu destino, se arrastava sob o sol quente, levando às costas o saco da Criação, que a cada passo ficava mais pesado. O calor era abrasador e uma sede tremenda lhe secava a boca.

Oxalá parou sob um dendezeiro e com seu cajado fez um furo no caule da palmeira. Do buraco jorrou um vinho fresco e encorpado. Oxalá bebeu do vinho-de-palma até matar a sede, mas a bebida lhe deu muito sono. Ali mesmo, na estrada, Oxalá adormeceu, embriagado.

Adetutu só não aproveitou para tirar uma soneca porque não queria perder nada.

Mais que depressa, Odudua, que de longe acompanhava com o maior interesse os movimentos do irmão, aproximou-se e sacudiu Oxalá. Constatando que Oxalá não acordaria tão cedo de seu sono entorpecido, Odudua pegou o saco da Criação, pôs nas costas e seguiu adiante, deixando Oxalá com seus sonhos de Criador.

Chegando ao lugar da Criação, Odudua pegou as quarenta e uma correntes de ferro que trazia, uniu uma à outra para formar uma só corrente e por ela desceu até a superfície das águas. Do saco da Criação tirou um punhado de terra que atirou sobre as águas e ali se formou um montículo, uma pequena ilhota. Em seguida soltou a galinha de pés de cinco dedos e ela se pôs a ciscar, espalhando por todos os lados a terra do montículo. Uma grande superfície sólida foi se formando sob os pés da galinha. O chão alastrou-se até onde os olhos de alguém já não podiam enxergar.

Maravilhada, Adetutu, que se lembrava bem dessa passagem, exclamou junto com Odudua:

" Ilê Ifé. "

Na língua dos iorubás, o povo de Adetutu, Ilê Ifé quer dizer A Terra se Expande. Segundo suas tradições, a cidade de Ilê Ifé estaria localizada no lugar desse episódio da Criação. Ilê Ifé, que hoje é uma cidade da Nigéria, é considerada pelos iorubás tradicionais a origem do mundo, de onde o homem se dispersou pela Terra. É a cidade sagrada dos iorubás, o umbigo do universo.

Desejando verificar se o mundo estava suficientemente sólido, Odudua fez descer pela corrente o camaleão, que andou com segurança pela Terra e voltou são e salvo às suas mãos. Com outros punhados do pó da Criação, foi acrescentando ao mundo tudo o que nele deveria existir.

Pronto! O mundo estava criado. Satisfeito, Odudua voltou para a casa do Pai para lhe dar a boa-nova.

Adetutu foi transportada para o alto e de lá viu o mundo acabado de nascer. Avistou de longe uma terra verdejante, cortada por rios azuis, que seu coração dizia ser o lugar onde no futuro ficaria seu país. Viu o lugar onde, um dia, seus ancestrais fundariam a aldeia em que ela nasceria. Ali seria criada, casaria e teria filhos. Naquele lugar seria feliz, até o dia em que os caçadores de escravo mudariam sua vida por completo..

Lá do alto, ela achou tudo tão bonito que não se conteve e aplaudiu a Criação. Exu, que lhe fazia companhia, se sentiu lisonjeado pelo aplaudo, que julgou ser dirigido exclusivamente a ele. Em retribuição, deu a Adetutu um saquinho de pano com a boca amarrada por um cordão de palha-da-costa.

" É para guardar segredos ", ele disse.

Ela agradeceu e pendurou a sacolinha no pescoço.

No chão do navio, Adetutu se virou. Dormia agora.


Retirado do livro A Criação do Mundo - Contos e Lendas Afro-brasileiros;  escrito por Reginaldo Prandi; Cia. das Letras, São Paulo, 2009.

domingo, 28 de novembro de 2021

Doce de Coco

Venho implorar pra você repensar em nós dois

Não demolir o que ainda restou pra depois

 Sabes que a língua do povo é contumaz traiçoeira

Quer incendiar, desordeira, atear fogo ao fogo...

Tu sabes bem quantas portas tem meu coração

E os punhais cravados pela ingratidão

Sabes também quanto é passageira essa desavença

Não destrates o amor!


Se o problema é pedir, implorar:

Vem aqui, fica aqui, pisa aqui neste meu coração

Que é só teu, todinho seu;

E o escorraça e faz dele de gato e sapato

E o inferniza e o ameaça,

Pisando, ofendendo, desconsiderando

E o descomposturando com todo vigor

Mas se tal não bastar o remédio

É tocar esse barco do jeito que está

Sem duas vezes se cogitar:

Doce de coco, meu bom-bocado, meu mau pedaço de fato

És o esparadrapo que não desgrudou de mim...


Música de Jacob Bittencourt e Hermínio Bello de Carvalho. Regravada por Joanna em seu então LP de 1981 intitulado Chama. No encarte, há uma explicação sobre a canção: a primeira gravação foi do próprio Jacob em 1950. Hermínio colocou a letra em 1980 e Elizeth Cardoso foi a primeira a gravar com a nova letra em 1981.

Os orixás e os mitos

 Para os iorubás tradicionais e os seguidores de sua religião nas Américas, os orixás são deuses que receberam de Olodumare ou Olorum, também chamado Olofim em Cuba, o Ser Supremo, a incumbência de criar e governar o mundo, ficando cada um deles responsável por alguns aspectos da natureza e certas dimensões da vida em sociedade e da condição humana. Na África, a maioria dos orixás merece culto limitado a determinada cidade ou região, enquanto uns poucos têm culto disseminado por toda ou quase toda a extensão das terras iorubás. Muitos orixás são esquecidos, outros surgem em novos cultos. O panteão iorubano na América é constituído de cerca de uma vintena de orixás e, tanto no Brasil como em Cuba, cada orixá, com poucas exceções, é celebrado em todo o país. Os orixás que protagonizam os mitos aqui reunidos são, em sua maioria, cultuados atualmente tanto na África como na América, mas há também aqueles que são adorados na África e desconhecidos na América ou num dos países americanos em que se cultuam os orixás, assim como aqueles cujo culto se extinguiu na África original, podendo porém, em casos raros, ser encontrados em solo americano.

Exu é o orixá sempre presente, pois o culto de cada um dos demais orixás depende de seu papel de mensageiro. Sem ele orixás e humanos não podem se comunicar. Também chamado Legba, Bará e Eleguá, sem sua participação não existe movimento, mudança ou reprodução, nem trocas mercantis, nem fecundação biológica. Na época dos primeiros contatos de missionários cristãos com os iorubás na África, Exu foi grosseiramente identificado pelos europeus com o diabo e ele carrega esse fardo até os dias de hoje.

Ogum governa o ferro, a metalurgia, a guerra. É o dono dos caminhos, da tecnologia e das oportunidades de realização pessoal. Foi, num tempo arcaico, o orixá da agricultura, da caça e da pesca, atividades essenciais à vida dos antigos. Assim, ele é muito próximo de Oxóssi ou Odé e outros orixás caçadores, como Erinlé ou Ibualama, Logum Edé e Otim, que são os donos da vegetação e da fauna, detendo a chave da sobrevivência do homem através do trabalho. Orixá Ocô divide com Ogum o patronato da agricultura, mas foi esquecido no Brasil, provavelmente porque aqui o candomblé se formou como religião urbana.

Nanã é a guardiã do saber ancestral e participa com outros orixás do panteão da Terra, do qual uma antiga divindade, Onilé, ainda recebe em velhos candomblés uma cantiga ou outra em ritos de louvação dos antepassados fundadores da religião. Onilé, a Mãe Terra, é a senhora do planeta em que vivemos. As atribuições de Onilé foram redistribuídas entre Nanã e outros orixás que muitos seguidores consideram filhos seus. Nanã é a dona da lama que existe no fundo dos lagos e com a qual foi modelado o ser humano. É considerada o orixá mais velho do panteão na América. De sua família fazem parte Oxumarê e Omulu e, mais remotamente, Euá. Oxumarê, o arco-íris, é o deus serpente que controla a chuva, a fertilidade da terra e, por conseguinte, a prosperidade propiciada pelas boas colheitas. Omulu ou Obaluaê, também chamado Xapanã e Sapatá, é o senhor da peste, da varíola, da doença infecciosa, o conhecedor de seus segredos e de sua cura. Euá, orixá feminino das fontes, preside o solo sagrado onde repousam os mortos. Muitos candomblés incluem nesse panteão Iroco, a árvores centenária em cuja copa frondosa habitam aves misteriosas, temidas portadoras do feitiço, mas seu culto no Brasil é raro.

Xangô é o dono do trovão, conhecedor dos caminhos do poder secular, governador da justiça. Teria sido um dos primeiros reis da cidade de Oió, que dominou por muito tempo a maioria das demais cidades iorubanas, merecendo Xangô, talvez por essa razão, um culto muito difundido na África. É praticamente o grande patrono das religiões dos orixás no Brasil e seu culto está associado aos de suas esposas Oiá, Obá e Oxum, originalmente orixás de rios africanos. Na América, por razões óbvias, perderam a referência ao seu rio específico e tiveram reforçados outros atributos míticos. Oiá ou Iansã dirige o vento, as tempestades e a sensualidade feminina. É a senhora do raio e soberana dos espíritos dos mortos, que encaminha para o outro mundo. Obá dirige a correnteza dos rios e a vida doméstica das mulheres, no contínuo fluxo do cotidiano. Oxum preside o amor e a fertilidade, é dona do ouro e da vaidade e senhora das águas doces.

O culto aos orixás femininos não se completa sem Iemanjá, a senhora das grandes águas, mãe dos deuses, dos homens e dos peixes, aquela que rege o equilíbrio emocional e a loucura, talvez o orixá mais conhecido no Brasil. É uma das mães primordiais e está presente em muitos mitos que falam da criação do mundo. No Brasil ganhou a soberania dos mares e oceanos, regidos na África por Olocum, orixá esquecido no Brasil e pouco lembrado em Cuba, a antiga senhora do oceano, das profundezas da vida, dos mistérios insondáveis. Também do mar é Ajê Xalugá, de culto inexistente no Brasil, mas lembrada em candomblés que cultivam a busca de raízes culturais, antigo orixá regente da conquista da riqueza, da prosperidade material, dos negócios lucrativos. O culto de Iemanjá na África está associado ao rio Níger e pode ser observado na âmbito da celebração de divindades femininas primordiais, as Iá Oxorongá, literalmente nossas mães ancestrais, donas de todo o conhecimento e senhoras do feitiço, representantes da ancestralidade feminina da humanidade, as nossas mães feiticeiras, mas que entre nós são lembradas muito discretamente em ritos aos antepassados celebrados em velhos candomblés. Associadas ao culto das mães primeiras encontramos duas divindades infantis muito festejadas no Brasil, os gêmeos Ibejis, os orixás crianças que presidem a infância e a fraternidade, a duplicidade e o lado infantil dos adultos.

Presentes na memória de poucos sobreviventes das antigas gerações de candomblé estão Orô, o temido espírito da floresta, de rugido assustador, antigamente cultuado na África pelos membros de uma sociedade secreta encarregada da punição dos bandidos, feiticeiros e mulheres adúlteras, e Oquê, a montanha, elevação que nasce do oceano, a segurança da terra firme, base da vida humana.

Orunmilá ou Ifá é o conhecedor do destino dos homens, o que detém o saber do oráculo, o que ensina como resolver toda sorte de problemas e aflição. Os sacerdotes de Orunmilá na África, os babalaôs, sábios que usam seus mistérios para resolver problemas e curar pessoas, disputam com os sacerdotes de Ossaim a cura de todos os males que destroem a saúde. Ossaim é o conhecedor do poder mágico e curativo das folhas e sem sua ciência nenhum remédio mágico funciona. Ossaim é cultuado em todos os templos de orixá no Brasil, assim como em Cuba, mas a confraria africana dos olossains, seus sacerdotes herboristas, não sobreviveu entre nós. Orunmilá foi muito esquecido no Brasil, mas ainda é celebrado em antigos templos de Pernambuco e em terreiros que procuram recuperar tradições perdidas. Em Cuba, Orunmilá é praticamente um baluarte da religião dos orixás.

Oxalá encabeça o panteão da Criação, formado de orixás que criaram o mundo natural, a humanidade e o mundo social. Oxalá ou Obatalá, também chamado Orixanlá e Oxalufã é o criador do homem, senhor absoluto do princípio da vida, da respiração, do ar, sendo chamado de o Grande Orixá, Orixá Nlá. É orixá e muito respeitado tanto pelos devotos humanos como pelos demais orixás, entre os quais muitos são identificados como filhos seus. Oxaguiã ou Ajagunã é o criador da cultura material, inventor do pilão que prepara o alimento e é quem rege o conflito entre os povos. É considerado no Brasil uma invocação de Oxalá quando jovem e guerreiro. Odudua é o criador da Terra, ancestral dos iorubás e, juntamente com Oraniã, o responsável pelo surgimento das cidades. Na África há uma grande disputa entre os partidários de Obatalá e os de Odudua, mas no Brasil Odudua foi menos feliz e desapareceu quase por completo, sendo confundido com um aspecto do próprio Oxalá. Outros orixás fazem parte desse grupo: o entre nós pouco lembrado Ajalá, que fabrica as cabeças dos homens e mulheres, sendo assim o responsável pela existência de bons e maus destinos, e Ori, divindade da cebça de cada ser humano e portador da sua individualidade, cujo culto vem sendo reconstituído no Brasil com vigor considerável.

Cada orixá pode ser cultuado segundo diferentes invocações, que no Brasil são chamadas qualidades e em Cuba, caminhos. Pode-se, por exemplo, cultuar uma Iemanjá jovem e guerreira, de nome Ogunté, uma outra velha e maternal, Iemanjá Sabá, entre outras. Assim, cada orixá se multiplica em vários, criando-se uma diversidade de devoções, cada qual com um repertório específico de ritos, cantos, danças, paramentos, cores, preferências alimentares, cujo sentido pode ser encontrado nos mitos.

Os iorubás acreditam que homens e mulheres descendem dos orixás, não tendo, pois, uma origem única e comum, como no cristianismo. Cada um herda do orixá de quem provém suas marcas e características, propensões e desejos, tudo como está relatado nos mitos. Os orixás vivem em luta uns contra os outros, defendem seus governos e procuram ampliar seus domínios, valendo-se de todos os artifícios e artimanhas, da intriga dissimulada à guerra aberta e sangrenta, da conquista amorosa à traição. Os orixás alegram-se e sofrem, vencem e perdem, conquistam e são conquistados, amam e odeiam. Os humanos são apenas cópias esmaecidas dos orixás dos quais descendem.

Os mitos dos orixás originalmente fazem parte dos poemas oraculares cultivados pelos babalaôs. Falam da criação do mundo e de como ele foi repartido entre os orixás. Relatam uma infinidade de situações envolvendo os deuses e os homens, os animais e as plantas, elementos da natureza e da vida em sociedade. Na sociedade tradicional dos iorubás, sociedade não histórica, é pelo mito que se alcança o passado e se explica a origem de tudo, é pelo mito que se interpreta o presente e se prediz o futuro, nesta e na outra vida. Como os iorubás não conheciam a escrita, seu corpo mítico era transmitido oralmente. Na diáspora africana, os mitos iorubás reproduziam-se na América, especialmente cultivados pelos seguidores das religiões dos orixás  no Brasil e em Cuba. A partir do século XIX, primeiramente estudiosos estrangeiros, sobretudo europeus, e mais tarde letrados iorubás iniciaram a compilação desse vasto patrimônio.

Em Cuba os babalaôs cultivaram o hábito de escrever em cadernos os odus do oráculo, que contêm os mitos, interpretações e prescrições sacrificiais, cadernos que mais tarde foram utilizados como fonte primária por pesquisadores das tradições afro-cubanas. No Brasil, onde a instituição oracular baseada na figura do babalaô desapareceu, certamente em razão do papel centralizador aqui desenvolvido pelas mães e pais-de-santo, chefes dos terreiros que agregam os devotos dos orixás, os mitos mantiveram-se difusos na memória ritual e no dia-a-dia das congregações religiosas iorubás-descendentes.

Pesquisadores brasileiros comentam a existência de cadernos  mantidos secretamente pelo povo-de-santo como meio de preservar e passar adiante o conhecimento mítico, mágico e ritual cultivado nos terreiros brasileiros, mas isso é raro e recente, considerando o triste fato de que, até bem pouco tempo atrás, a maioria dos dirigentes dos terreiros e demais iniciados era analfabeta. Até onde se tem notícia, data de 1928 o primeiro documento extenso escrito contendo os mitos da arte oracular, um caderno compilado por Agenor Miranda da Rocha, membro letrado de um dos terreiros da Bahia, em que tradições divinatórias haviam sido preservadas à moda dos antigos babalaôs, mas esse documento somente foi trazido à luz mais de meio século depois de ter sido escrito.

A partir de meados da década de 1930, escritores e cientistas sociais iniciaram o registro mais sistemático de mitos de orixás, embora uns poucos exemplares datem da virada do século XIX para o XX. Nos anos 30, o antropólogo Artur Ramos acreditou que a mitologia iorubá no Brasil estava completamente degradada e perdida (Ramos, 1935), mas Roger Bastide (1945, 1958), sociólogo francês, então professor de sociologia da Universidade de São Paulo, pesquisando na Bahia nas décadas de 40 e 50, discerniu perfeitamente a presença viva dos mitos não só como narrativa, mas como substrato subentendido nos ritos mantidos nos terreiros, sobretudo nas danças, e na própria estrutura mental dos seguidores da religião dos orixás tendo registrado inúmeros mitos.


Retirado do livro Mitologia do Orixás, de Reginaldo Prandi, Companhia das Letras, São Paulo, 2006.

sábado, 27 de novembro de 2021

Hades e Perséfone

O terceiro dos três filhos de Crono que governaram o mundo foi o escuro reverso não só de Zeus mas também de Hélio. A forma mais recente do seu nome é Hades; uma forma mais antiga foi Edes ou Edoneu, e uma forma mais antiga ainda foi Es, que só preservou em conexão com a palavra indicativa de "casa" ou "palácio". A "Casa de Hades" era o Mundo Subterrâneo, o qual, com efeito, mais tarde foi chamado simplesmente Hades, quando o lugar adquiriu o nome do seu senhor. O significado mais provável de Es, Edes ou Hades é "o invisível" ou "o que dá invisibilidade", em contraste com Hélio, o visível e o que torna visível. Também expressa um contraste ainda mais acentuado do que o existente entre Hades e o deus celeste Zeus, cujo nome outrora significava "o brilho do dia". Esse significado, porém, foi relegado a um segundo plano pelo rosto humano do senhor dos deuses. Zeus exercia uma função que, em nossa mitologia, nunca foi exercida pelo deus do sol: Hélio nunca aparece no papel de rei do Mundo Subterrâneo e nunca é saudado como "Sol da Noite". Ao invés disso, como Zeus Catactônio ou Ctônio, Zeus era um "Zeus subterrâneo"; e esse, mais uma vez, era apenas outro nome de Edes ou Hades. Quando se faz menção de "outro Zeus" ou do "hospitaleiro Zeus dos que partiram", a menção sempre se refere a Hades. Nunca significa "outro deus dos céus diurnos", mas um soberano do Mundo Subterrâneo, correspondente e igual ao Zeus do mundo superior.

A nossa mitologia, com efeito, dividia o mundo em três partes: ou porque, nos tempos antigos, o mundo era governado muito mais por uma deusa tríplice do que por uma divindade masculina - sendo esta última meramente o marido da primeira - ou porque a deusa mais velha, a Mãe dos Deuses, sempre teve três filhos, dois mais velhos e mais intimamente identificados como irmãos e um terceiro, o mais moço, destinado a lograr a supremacia. Precisamos aqui reconhecer um esquema básico em que predomina a trindade feminina ou a trindade masculina. A trindade feminina está subordinada a um quarto elemento masculino e a trindade masculina a um quarto elemento feminino. Por conseguinte, assim que o terceiro irmão apareceu em nossas praias e tornou-se um novo senhor do mar, nossa religião encontrou espaço para ele. (Referência Posídon) Existem registros do culto de uma trindade em que ele não se inclui, um culto de Zeus como "Deus Celestial" (Hypsistos), como Deus do Mundo Subterrâneo (Chthonios), e sob um terceiro aspecto, sem nome. Com o advento de Posídon, a trindade definiu-se ainda mais claramente. Antiga pintura de vaso mostra os três irmãos como os três soberanos do mundo, com os seus emblemas de poder: Zeus com o raio, Posídon com o tridente, Hades com a cabeça virada para trás. Este último era o que não podia ser contemplado, o terrível deus da morte, que fazia todas as coisas vivas desaparecerem, que as tornava invisíveis. As pessoas que ofereciam sacrifícios aos seres do Mundo Subterrâneo tinham de fazê-lo olhando para outro lado.

O irmão subterrâneo de Zeus - pois foi nisso que Hades se tornou em nossa mitologia, ainda que, originalmente, fosse apenas o aspecto escuro de um deus brilhante - tinha muitos nomes. Não somente nomes que lhe expressavam a qualidade de deuses dos mortos - como Polidegmon, "o recebedor de muitos convivas", mas também Plutão, "o rico" ou "o que dá riquezas", e Eubuleu ou Êubulo, "o bom conselheiro". Os mesmos nomes - Plutão, Êubulo, Eubuleu - foram dados também ao filho místico, desconcertante, que ele houve de uma deusa igualmente conhecida por muitos nomes, tanto como mãe quanto como filha: como Geia e Reia, como Reia e Deméter e, especialmente em sua relação com Hades, como Deméter e Perséfone. Na versão pública da história, Hades não coabitou com sua irmã Deméter. Foi Zeus quem o fez, na história mais secreta, ou foi Posídon, em outra história com a qual todos também já estão familiarizados. Hades, porém, raptou a sobrinha, Perséfone, também chamada simplesmente Core, "a Donzela". O nome Perséfone está ligado a Perse, Perseida, Perses, Perseu e Pérseo - nomes de Hécate e suas associadas - e era provavelmente usado desde os tempos pré-gregos como o da rainha do Mundo Subterrâneo. Ela adquiriu o nome de "a Donzela" quando, como primeira e única filha de sua mãe (característica que, mais uma vez, partilhou com Hécate e também com Pandora e Protogênia), caiu vítima do deus da morte. Eis aí a história da fundação do reino dos mortos, que para nós seria inconcebível sem a sua rainha e que é também a história da fundação dos Mistérios Eleusinos. 


O Rapto de Perséfone


Hades raptou a filha de Deméter, a filha que Zeus lhe dera sem o conhecimento da mãe. A donzela estava brincando com as filhas de Oceano, apanhando flores - rosas e açafrões, violetas, íris e jacintos - no prado luxuriante. Quase apanhou também o narciso, a flor que a deusa Geia, para agradar ao deus do Mundo Subterrâneo, fizera surgir, prodígio radioso, como artimanha para seduzir a donzela cujo rosto se diria um botão de rosa. Todos os que viram a flor, assim deuses como homens, ficaram maravilhados. Uma centena de florações rebentou-lhe das raízes, doce fragrância espalhou-se em torno dela, os céus abriram-se num sorriso e assim também a terra e a corrente salgada do mar. Com ambas as mãos, a donzela atônita tentou apanhar a joia. Escancarou-se a terra, um abismo apareceu nos Campos Niseus e dele saltou o Senhor do Mundo Subterrâneo com seus corcéis imortais, o Filho de Crono, o deus de muitos nomes. Colocou a donzela, que se debatia, no carro de ouro e levou-a embora, a despeito das suas lamentações.

Estridentemente ela gritou para o Pai, filho de Crono, soberano supremo. Nem deus nem homem lhe ouviram a voz, nem uma oliveira se mexeu. Somente a terna filha de Perses, a deusa de toucado cintilante, a deusa Hécate, ouviu o grito desde a sua caverna; e ele foi ouvido também por Hélio, o esplêndido filho de Hiperíon. Sentado distante dos deuses, no seu templo muito frequentado, o Pai recebia sacrifícios. Foi obra sua o rapto da filha pelo tio, comandante de muitas almas, hospedeiro de muitos hóspedes, Filho de Crono, deus de muitos nomes. Enquanto pôde ver a terra e o céu estrelado, o mar e o sol, a deusa esperou ver de novo a mãe e os deuses eternos. Os picos das montanhas e as profundezas do mar ecoaram-lhe a voz imortal. A Senhora sua mãe ouvia-a. Uma dor aguda salteou-lhe o coração, ela arrancou o toucado da cabeça, arrancou dos ombros o vestido escuro e voou como um pássaro sobre a terra e a água, em busca da filha.

Ninguém estava querendo contar-lhe a verdade - nem deus nem homem. Nem mesmo um pássaro voou para encontrar-se com ela como um sinal. Por nove dias a Senhora Deméter peregrinou pela terra, com duas tochas ardentes nas mãos. Em sua dor, não provou da ambrosia nem do néctar e tampouco molhou o corpo com água. Somente na terceira manhã Hécate - que também carregava uma tocha - deparou com ela e trouxe-lhe notícias: "Senhora Deméter, portadora do desenvolvimento pleno e distribuidora de ricos presentes, quem roubou Perséfone e tão profundamente te perturbou o coração? Ouvi teu grito, mas não vi quem foi. Se o tivesse visto, eu te contaria a verdade." Sem uma palavra, a filha de Reia saltou com ela, carregando nas mãos as duas tochas ardentes, até Hélio, o que observa deuses e homens. Detiveram-se diante dos cavalos dele e a grande deusa indagou da filha e do raptor. Respondeu-lhe o filho de Hiperíon: "Filha de Reia, Senhora Deméter, saberás a verdade. Reverencio e apiedo-me da tua dor pela donzela de pulcros tornozelos. Nenhum dos imortais é responsável senão Zeus, que a deu por esposa a seu irmão Hades. Hades carregou-a em seu carro, levando-a à força para o reino da escuridão e pouco se dando do pranto dela. Mas tu, deusa, deixa de lamentos! Não tens necessidade de resmungar tão inconsolavelmente. Em teu irmão Hades não recebeste nenhum genro indigno entre os deuses. Desde a partilha, ele foi honrado com um terço do mundo, e lá onde habita é realmente rei."

Assim falou Hélio e seguiu em frente com o carro. Os corcéis obedeceram-lhe à voz e puxaram-no com a rapidez de pássaros. A deusa mergulhou num sofrimento ainda mais terrível e torturante. Em sua cólera contra Zeus, deixou o Olimpo e a assembleia dos deuses, foi  para o meio dos homens e visitou-lhes as cidades locais de trabalho. Por muito tempo descurou da aparência exterior, ninguém a reconheceu, nem homem, nem mulher, até que ela chegou ao palácio do sábio Céleo, que, naquela ocasião era rei de Elêusis, a cidade fragrante de sacrifícios. Sentou-se à beira da rua, retransida de dor, junto ao Poço da Virgem, onde o povo da cidade ia buscar água. Ali permaneceu sentada na sombra, ao pé de uma oliveira. Dir-se-ia uma velha que já não pudesse parir filhos nem tivesse participação nos presentes da deusa do amor. Assim se mostram as amas de crianças reais e as mais velhas das criadas de palácios reboantes. Ali foi vista pelas filhas de Céleo, filho de de Elêusis, quando foram tirar água em cântaros de bronze para a casa de seu pai. Eram quatro, na flor da virgindade: Calídice, Clisídice, Demo e Calítoe, a mais velha. Não reconheceram a deusa - com efeito, não é tão fácil para mortais contemplar imortais - e perguntaram-lhe: "De onde vens, velha, e para onde vais? Por que deixaste o teu lar, e por que não vens para o palácio? Dentro das suas paredes umbrosas estarias em casa, em tua velhice, como estão as mulheres mais jovens, que te tratariam bem, tanto com palavras quanto com atos."

A deusa respondeu de modo bondoso: chamou as donzelas de "queridas filhas", revelou o próprio nome, mas de forma torcida, e contou uma história inventada. Disse que piratas a haviam levado de Creta para lá, contra a sua vontade. Quando desembarcaram perto de Tóricos e estavam preparando uma pândega na praia para eles e para as outras mulheres, escapara, e agora não sabia onde estava. Suplicava ajuda e hospitalidade na casa em que as donzelas eram filhas. Talvez houvesse ali uma criança de que ela poderia cuidar como ama? Prepararia a cama para o dono e a dona e ensinaria trabalhos manuais às outras mulheres da casa. Calídice, a mais formosa das donzelas, contou-lhes os nomes dos senhores da terra: Triptólemo, Díocles, Políxemo, Eumolpo, Dólico e seu próprio pai. Todos tinham esposas e nenhuma repeliria uma mulher que lhe suplicasse proteção. Qualquer um a aceitaria à primeira vista, tão grande era a sua semelhança com as deusas. Mas ela precisava esperar que as quatro donzelas pedissem à mãe, Metanira, que convidasse a estrangeira a vir para a sua casa, e a estrangeira não teria necessidade de ir a nenhum outro lugar. Havia, de fato, um meigo menino recém-nascido no palácio: qualquer uma que cuidasse dele o criasse seria invejada pelas outras mulheres, e com muita razão, pois seria ricamente recompensada.

Dessa maneira a deusa foi convidada, com a promessa de um grande ordenado, a ir para a casa de Céleo. As donzelas voltaram correndo e levaram-na para casa. Deméter seguiu-as com o rosto coberto por um véu, vestindo um longo e escuro manto, que lhe caía, roçagante, até os pés delicados. Entraram na sala externa de Céleo, onde estava sentada Dama Metanira defronte da sua câmara. Tinha no colo a criança, o novo rebento. As donzelas correram para a mãe. A deusa transpôs o limiar, sua cabeça tocava o teto, a porta se encheu de luz divina. A Rainha foi tomada de respeitoso temor, de assombro e de terror; levantou-se do seu assento e pediu que a deusa se acomodasse. Deméter não quis fazê-lo, mas permaneceu em silêncio, com os olhos postos no chão, até que a prudente criada Iambe colocou um tamborete à sua frente e atirou sobre ele uma pele de carneiro alviprateado. Em seguida, Deméter sentou-se e abaixou o véu da cabeça sobre o rosto. Por muito tempo se quedou sentada, sem emitir nenhum som, sem pronunciar uma palavra, sem fazer um sinal. Sem sorrir, sem tocar em comida nem bebida, ficou ali sentada, pranteando a filha, até que a prudente Iambe, com troças e brincadeiras, alegrou tanto a divina dama que ela primeiro sorriu e depois riu-se, e sua alma voltou a ser alegre. Mais tarde também, Iambe soube consolar a deusa quando a via irada. Metanira ofereceu-lhe uma taça de vinho doce, mas Deméter recusou-o, dizendo que não lhe era permitido beber vinho tinto. Pediu que se misturasse cevada com água, para poder tomá-la com a delicada hortelã. A Rainha preparou a poção, a deusa tomou-a e, depois disso, sempre o fizeram os que se dedicam à sagrada pureza e não podem tomar vinho.

Só então proferiu Metanira as palavras de saudação e deu as boas-vindas à estrangeira. Ela acreditava, disse, poder ler nos olhos da deusa a sua régia posição, até na desgraça, que vem dos deuses, como deles vem também a boa sorte. Mas, dali por diante, a deusa seria tratada exatamente como ela mesma. Confiou-lhe aos cuidados o filho tardiamente nascido, que já não era esperado. Se a deusa consentisse em cuidar dele e educá-lo até que atingisse a idade da juventude, seria justamente invejada pelas outras mulheres, tão rica seria a sua recompensa. Deméter, a deusa da bela grinalda, empreendeu a educação da criança e prometeu à mãe que seria uma boa ama, pois conhecia os feitiços contra todas as influências malignas. Com as mãos imortais pegou Demofoonte, filho de Céleo, e conchegou-o do seio fragrante. Metanira jubilou. Deméter cuidou do menino dentro do palácio. A criança cresceu qual um deus, sem comer nem beber. A deusa ungiu-o com ambrosia, soprou nele o seu hálito suave e segurou-o no colo. Todas as noites, sem o conhecimento dos pais, expunha a criança à plena força do fogo, como acha de lenha que está sendo transformada em tocha. Para os pais era uma grande maravilha o modo com que o filho se desenvolvia, tão belo quanto um deus. Deméter o teria até transformado num imortal, que nunca envelheceria, se Metanira, em sua imprevidência, numa noite, não tivesse espiado para fora da sua câmara e visto o que estava sendo feito à criança. Ela gritou aterrorizada, bateu com as mãos nas coxas e rompeu em lamentações: "Demofoonte, meu filho, a estrangeira deixa que te exauras na grande fogueira e a mim mergulha na aflição!"

Assim se lamentou ela. Ouvia-a a deusa e encheu-se de raiva contra a Rainha. Com mãos imortais pôs a criança de lado, no chão, depois de havê-la tirado iradamente do fogo e, ao mesmo tempo, disse a Metanira: "Ignorantes sois vós, seres humanos, e imprevidentes, pois não podeis prever nem o bem nem o mal. Tu também sofreste, em tua imprevidência, um dano irremediável. Juro o grande juramento dos deuses, pela água do Estige, que eu teria transformado teu querido filho num imortal, que se conservaria eternamente jovem, e teria obtido para ele um renome imperecível. Agora já não lhe é possível evitar a morte. Receberá o renome imperecível, porque se sentou no meu colo e dormiu nos meus braços. Os filhos dos eleusinos, em intervalos determinados, travarão guerras em sua honra. Mas eu, de minha parte, sou Deméter, a senhora de todos os cultos, divindade da maior beneficência, que traz a maior alegria tanto a imortais quanto a mortais. Agora tu e todo o teu povo erigirão para mim um grande templo e um altar defronte, debaixo do muro da cidade e acima do poço com o belo local de danças, no alto da colina. Ensinar-vos-ei os ritos sagrados, para que no futuro possais oferecer-me o culto que me conforta a alma."

Assim falou a deusa, reassumindo a estatura original e a verdadeira forma. Já não era uma velha: banhada de beleza, uma fragrância que despertava o desejo se evolava à sua volta, vinda do suave aroma do manto; longe resplandecia a radiância do seu corpo imortal; áureos lhe caíam os cabelos sobre os ombros; um resplendor enchia a câmara, como se fosse a fulguração de um raio. Com passos majestosos a deusa saiu do palácio. A Rainha caiu desmaiada. Por longo tempo ali jazeu sem dizer palavra, sem pensar em erguer o filho do chão. As filhas ouviram-lhe o choro e saltaram da cama. Uma delas pegou a criança e pô-la no colo. Outra acendeu uma fogueira. Uma terceira correu para a mãe, ajudou-a a pôr-se de pé e tirou-a do quarto. Todas se afanaram com a criança, lavando-a enquanto ela se debatia e cercando-a de amor. Mas a criança não queria ser confortada, pois agora suas amas eram piores. Elas passaram a noite inteira rezando para a deusa, tremendo de medo. Antemanhã, contaram tudo ao poderoso Céleo, como lhes ordenara que o fizessem a própria Deméter da formosa grinalda. O Rei convocou o povo e convidou-o a construir um rico templo e um altar para Deméter, no alto da colina. O povo obedeceu incontinenti e construiu o templo como ele ordenara. O templo ergueu-se pela vontade dos deuses.

Quando os construtores terminaram e viram o fruto dos seus trabalhos, voltaram para casa. No templo sentou-se Deméter, longe dos deuses abençoados e chorou a filha. Mandou à terra que tudo nutre um ano terrível, um ano de amarga penúria para a humanidade. De nenhuma semente permitiu a terra brotasse alguma coisa; Deméter fez que todas as coisas permanecessem escondidas no chão. Em vão arrastavam os bois os arados pelos campos, em vão caiu a alva cevada nos sulcos. Ela teria destruído toda a humanidade com a fome perversa e os Olimpianos não mais teriam recebido adoração nem sacrifícios, se Zeus não tivesse mudado de ideia. Primeiro que tudo, mandou Íris, a linda deusa de asas de ouro, buscar Deméter. Íris obedeceu e deu-se pressa a ir a Elêusis. Encontrou Deméter no templo envergando vestes escuras e implorou-lhe, mas em vão: a deusa não quis consentir. Em seguida, o Pai mandou-lhe todos os deuses abençoados; eles vieram, um depois do outro, buscar Deméter e trouxeram-lhe presentes esplêndidos. Mas ninguém conseguiu persuadir a deusa irada a alterar sua decisão. Ela não poria os pés no fragrante palácio do Olimpo, nem a terra voltaria a dar frutos enquanto não visse mais uma vez a filha.

Quando soube disso, Zeus mandou Hermes, o deus do caduceu de ouro, à escuridão do Mundo Subterrâneo, a fim de convencer Hades, com brandas palavras a trazer Perséfone de volta da treva para os deuses e para a luz. Hermes obedeceu e, desde a morada olimpiana, mergulhou nas profundezas subterrâneas. Ali encontrou o dono do palácio em casa. Estava deitado na cama, ao lado da esposa envergonhada, que, na sua aflição, ansiava por rever a mãe. Hermes postou-se diante deles e explicou a Hades, o senhor dos mortos, a razão da sua chegada. As sobrancelhas de Hades ergueram-se num sorriso. Obediente ao Rei Zeus, ele falou incontinenti com a esposa: "Vai, Perséfone, para tua mãe, a deusa das vestes escuras, vai com o teu generoso coração e não fiques mais tão triste. Não serei um marido indigno de ti entre os imortais - não sou, acaso, irmão do Pai Zeus? Se porventura vieres aqui de vez em quando, reinarás sobre todas as criaturas vivas e terás as honras maiores entre os deuses. Quem quer que te insultes e não trouxer nenhum sacrifício contributivo, expiará por isso eternamente."

Assim falou ele. Perséfone ergueu-se da cama, jubilosa. O marido, no entanto, seguiu-a secretamente e colocou-lhe na boca a semente, doce como o mel, de uma romã, para que ela não ficasse sempre com Deméter. Atrelou os corcéis imortais ao carro de ouro. A deusa subiu no carro e Hermes, com as rédeas e o chicote na mão, dirigiu a parelha para fora do palácio. De boa mente voaram os corcéis e, céleres, cobriram a grande distância. Nem o mar, nem os rios, nem as ravinas, nem os precipícios lhes detiveram o ímpeto; voaram acima deles, através do ar. Hermes conteve-os no lugar em que Deméter estava sentada diante do templo fragrante. Ao avistar o carro, ela ergueu-se de um salto, como uma Bacante nas montanhas. Perséfone, deixando o carro, voou ao seu encontro. Enquanto se abraçavam, Deméter já estava perguntando à filha se ela comera alguma coisa no palácio de Hades. Pois se o tivesse feito, teria de passar um terço do ano debaixo da terra e só nos outros dois terços poderia ficar com a mãe e com o resto dos imortais, voltando para  eles com a primavera.

Perséfone contou que, no momento em que saltava de alegria com a ideia de voltar para a mãe, o marido colocou secretamente a semente de uma romã em sua boca e a obrigara a comê-la. Também contou que fora raptada enquanto estava brincando e apanhando flores com as filhas de Oceano e com Atena e Ártemis. Assim passaram elas o dia inteiro, abraçadas uma à outra com amor. Depois veio Hécate, a do toucado cintilante, e também acolheu, carinhosa, a filha sagrada de Deméter. Desde então tem sido companheira e criada delas. Zeus enviou sua mãe Reia, a deusa do manto escuro, como mensageira às duas, Deméter e Perséfone, para trazê-las de volta. Prometeu conferir-lhes todas as honras que desejassem, acrescentando que a filha passaria dois terços do ano com a mãe e o resto dos imortais. Reia saltou do Olimpo na direção dos Campos Rarianos, outrora férteis mas agora estéreis, sem uma única haste verde, guardando a cevada branca dentro do solo, de acordo com a vontade de Deméter, a deusa dos belos tornozelos. Logo, porém, à proporção que a primavera se adiantasse, os campos voltariam a cobrir-se densamente de espigas de grãos. Foi nesses campos que a deusa, vinda do Céu, pôs os pés pela primeira vez. Alegres se entreolharam, mãe e filha, Reia e Deméter. Reia contou o que Zeus prometera e pediu a Deméter que permitisse ao trigo dispensador de vida voltar a crescer.

Deméter consentiu e fez que o fruto dos campos de terra abundantemente povoada brotasse. Densamente se cobriu a terra de hastes e flores. Entrementes, a deusa dirigiu-se aos reis de Elêusis , ensinou-lhes os ritos sagrados e iniciou-os no culto sacrossanto, que não pode ser revelado nem ouvido, nem sequer comentado em voz alta, pois o sagrado terror da deusa abafa suas declarações. Abençoado é o homem na terra que viu essas coisas. Mas o que continua não-iniciado e não tem participação nelas, não terá, quando estiver morto, porção alguma das bênçãos correspondentes na escuridão bafienta lá debaixo.

Depois que Deméter deu todas as instruções, as deusas foram para o Olimpo e juntaram-se aos outros imortais. Ali moraram ao lado de Zeus, gozando de grande honra. Abençoado é o homem na terra que eles amam, pois lhe enviarão prontamente Pluto, o rei da riqueza, ao seu palácio, a fim de ser para ele o hóspede que confere riquezas aos mortais.


Retirado do livro Os Deuses Gregos, de Karl Kerényi; coleção Mitologia Grega; Editora Cultrix, São Paulo, 1998.

Certeza-Incerteza

A incerteza, quanto ao momento da ocorrência da morte, deve constituir para o homem a mais séria advertência a respeito da transitoriedade do corpo físico.

Dentro de cinco minutos, por meio de uma parada cardíaca; de cinco anos, em um acidente de veículo; ou de cinquenta anos, por uma enfermidade de longo prazo, dolorosa, ninguém sabe quando acontecerá o desprendimento da alma em relação à matéria.

Uma compleição física sadia nem sempre compete com segurança ante uma organização frágil e enfermiça, porquanto a primeira pode interromper-se, enquanto a outra, talvez, permaneça desafiadora.

Um corpo juvenil, atraente e promissor, cede campo para que fique um ser caquético, deficiente físico e mental.

A criança rica de energias deperece, ao tempo que o enfermo desenganado recupera-se...

O espírito é o que conta, no processo reencarnatório.

Os seus atos pretéritos geram-lhe os mecanismos de prolongamento, ou abreviação da vilegiatura carnal.

Nenhuma exceção, porém, produzindo clima de privilégio ante a morte.

As doenças visitam ricos e pobres com a mesma indiferença; belos e deformados com igual liberdade; moços e idosos de maneira equivalente; bons e maus com naturalidade...

Decompõem-se os corpos sob condições idênticas, nivelando-se as formas e assumindo os mesmos critérios transformadores.

A mente, refletindo o estado de evolução intelecto-moral, responde pela maneira como cada pessoa enfrenta a vicissitude do desgaste e o fenômeno da morte.

Morrer, portanto, é acontecimento inevitável.

Bem morrer ou morrer bem, depende da conduta de cada indivíduo.

Aqueles que vivem bem, desfrutam dos favores terrestres, nem sempre morrerão felizes.

Quantas pessoas se deixaram desequilibrar pelos insucessos que lhes cabia vencer, enfrentam a morte em estado de desventura!

Somente quem soube aplicar o patrimônio do tempo com eficiência, bem morre, libertando-se e sendo ditoso.

Pensa na morte, como te preocupas com a vida.

Harmoniza-te ante a sua realidade, permanecendo preparado para a sua ocorrência.

Se forem breves os teus dias terrestres, busca vivê-los com intensidade positiva e, se te forem longos os anos, utiliza-os com sabedoria.

Essa incerteza de quando se dará e esta certeza de que a morte virá, são o díptico da vida orgânica na qual te movimentas.

Faze a luz do discernimento íntimo com o Evangelho de Jesus e, seja em que situação for, permanece em paz e feliz.


Texto retirado do livro Momentos de Coragem; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 8ª Edição, 2014.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

O enigma da Esfinge e o Oráculo de Delfos

 Quem és tu, que fazes aqui?

De onde vieste? Para onde vais?


A Esfinge era um monstro mitológico, com cabeça de mulher, corpo de leão e asas de águia. Essa tradição originou-se no Egito e passou para a Grécia. Sua principal estátua ficava no templo de Apolo, no chamado Oráculo de Delfos. "Esfinge" é uma palavra do egípcio arcaico que significa apertar a garganta até sufocar ou mesmo asfixiar. Já "oráculo" é uma palavra em parte grega e em parte latina que significa "profeta", "adivinho".

Delfos era um local sagrado onde Apolo, o deus da luz e das profecias, era consultado por meio de sua grande sacerdotisa, chamada de Pítia ou Pitonisa, nome que quer dizer "aquela que vence a escuridão". A Esfinge era famosa por seus enigmas, mas todos tinham uma mesma finalidade: "Decifra-me ou te devoro", ou seja, aquele que não os decifrasse era por ela devorado. Um desses enigmas, muito conhecido, era mais ou menos assim: "O que é, o que é? De manhã anda de quatro, ao meio-dia, sobre duas pernas e pela tarde, com três pernas". Naturalmente, referia-se ao homem, que em criança engatinha, quando adulto anda sobre duas pernas e ao envelhecer necessita da terceira perna, que é a bengala. Essa charada era um truque, na verdade, pois o homem é muito mais do que apenas isso.

Na verdade, os enigmas da Esfinge poderiam ser resumidos nestas perguntas: "Quem sou eu e o que eu faço aqui? De onde venho? Para onde vou?". São essas as perguntas que todos faziam no Oráculo de Delfos para a Pítia. E, até hoje, cada um de nós busca respostas para elas. Achamos que não estamos no mundo à toa, que tanto o passado como o futuro envolvem um significado que nos cabe descobrir e entender. Ninguém se conforma em ser apenas um amontoado de reações químicas e orgânicas sem sentido, que apenas segue as leis da biologia. Sentimos que há algo maior, espiritual, que habita em nós e queremos encontrar um caminho para esse mistério que culminará com nossa morte física, mas não espiritual.

Aliás, é por isso que a Esfinge nos sufoca e ameaça nos asfixiar. É o que sentimos quando nada sabemos sobre nós, quando as incertezas nos invadem e o tempo nos angustia, pois passa cada vez mais depressa. Enfim, são muitas as indagações sobre o passado não compreendido e o futuro incerto. Ao contrário, quando conseguimos decifrar ou entender algo sobre nosso passado, presente ou futuro, sentimos enorme alívio e o aperto no peito e na garganta parece sumir... Até voltar de novo, quando irromper outra indagação. Procuramos, então, um psicólogo, um astrólogo, um adivinho que leia cartas, jogue búzios ou buscamos as respostas em nossas crenças ou superstições.

E, ontem como hoje, a ciência não ajuda a decifrar o mistério de viver. Precisamos buscar outro tipo de saber. A Esfinge nos persegue e procuramos oráculos de toda espécie para não sermos por ela devorados. A verdade é que eles sempre foram e serão necessários para acalmar nossa angústia e ansiedade perante um futuro incerto, o passado desconhecido e o presente fugidio. Este escapa de nossas mãos com tal velocidade que o tempo não é suficiente para entendermos o que acabou de acontecer.

A Esfinge também tinha a função de oráculo, pois exigia que buscássemos os caminhos para nossa trajetória neste planeta chamado Terra, para não sermos devorados pelo medo, pela angústia e pelo desconhecimento do que viemos fazer aqui. Agora podemos entender o que significava esse monstro. Tinha cabeça feminina porque esta representa a intuição. É dessa maneira que devemos indagar, pois a razão e a lógica são inúteis para investigar o mistério da existência. Além disso, é preciso fazê-lo com sensibilidade - outra característica do arquétipo feminino. O corpo da Esfinge era de leão porque é preciso ter coragem e força para indagar. Além disso, sem saúde forte não se vai a nenhum lugar. Mas, cuidado! Saúde não se obtém somente com alimentação saudável e exercícios físicos (hoje tão na moda). Isso apenas responde pela parte física. Devemos cultivar a saúde mental e espiritual. Sem isso, de nada adiantará todo o nosso esforço, pois levando uma vida apressada e ansiosa, em busca de ter mais e mais, destruímos s nós mesmos. Ou, ainda, se vivermos alimentando raivas, invejas e ciúmes, o resultado poderá ser pior. Isso é mais danoso à saúde do que o álcool e as drogas juntos. Finalmente, a Esfinge tinha asas de águia porque o caminho do homem é para o alto, para os deuses ou, como dizemos hoje, para a espiritualidade. Novamente, para o alto não significa lutar para provar que somos melhores do que  os outros - isto é tolo, vão e somente nos rebaixa. Voar para o alto muito menos significa conquistar cada vez mais bens materiais - não custa lembrar que tudo ficará aqui. Voar para o alto é saber nos bastar e buscar a única coisa que levamos para a eternidade: a sabedoria e a espiritualidade ou, como diziam os antigos, a nobreza, a beleza e a bondade.

Eis a chave do enigma da Esfinge para a modernidade: conhece-te a ti mesmo, depois aos outros, e finalmente ao mundo - e então, finalmente, serás um homem capaz de voar para o alto. Não esqueça também que o homem deve realizar duas viagens ao longo de sua vida: uma para dentro e outra para fora. Não carregue fardos desnecessários nas costas, pois assim nunca poderá alçar voo e jamais conhecerá a verdadeira liberdade do ser. Lembra também que liberdade não é sinônimo de irresponsabilidade. Ao contrário, o verdadeiro homem livre é responsável por si mesmo e pelos outros - e o faz com paixão. Finalmente, encontra um meio de transformar tudo que és em nobreza, beleza e bondade e assim a Esfinge nunca te devorará, pois tua existência estará decifrada - será um livro aberto e que belo voo alçarás.


Retirado do livro Mitologia Viva - Aprendendo com os deuses a arte de viver e amar; Viktor D. Salis; Editora Nova Alexandria, São Paulo, 2003.

O que são os mitos e para que servem?

 A origem dos mitos perde-se na noite dos tempos, sem que ninguém possa dizer de ode vieram. São narrativas fascinantes, porém absurdas para quem quiser enxergar nelas algo palpável e "real". E não adianta

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Hermes

Era filho de Zeus e de Maia, a mais jovem das plêiades, e nasceu numa caverna no Monte Cileno, ao sul da Arcádia. Revelou-se de uma precocidade extraordinária. Logo no dia em que nasceu, roubou uma parte dos bois de Apolo, doze vacas, cem novilhas e um touro. Atravessou com eles toda a Grécia, tendo amarrado ramos folhudos na cauda dos animais, para que à medida que andassem fossem apagando os próprios rastros. Sacrificou dois deles aos doze deuses olímpicos e o restante escondeu numa caverna em Pilos. Foi visto apenas por uma testemunha, um velho chamado Batos e tentou comprar-lhe o silêncio. Feito isso, correu para a sua caverna em Cileno: na entrada estava uma tartaruga. Ele lhe tirou o enchimento, conservando somente o casco, fez cordas de tripas dos bois sacrificados e assim fabricou a primeira lira. Entrementes, Apolo procurava por toda a parte os bois roubados e, seja por seus dons divinatórios, seja por traição de Batos, acertou com os bois escondidos na gruta do Monte Cileno. Depois foi se queixar a Maia do seu filho. Mas Maia lhe mostrou a criança, firmemente enrolada nas suas faixas de linho e lhe perguntou como tinha ele coragem de proferir contra ela semelhantes acusações. Apolo se queixou, então, a Zeus, que ordenou ao menino que devolvesse os animais roubados. Mas Apolo tinha visto a lira, tinha ouvido Hermes tocar e trocou, de boa vontade, os animais faltantes do seu rebanho pela posse do instrumento. Mais tarde, Hermes, guardando o seu rebanho, inventou a flauta. Apolo desejou também o novo instrumento e ofereceu em troca o cajado de ouro de que se servia, guardando o gado de Admeto. Hermes lhe pediu, em acréscimo, lições de adivinhação. Apolo aceitou o negócio e é assim que o caduceu de ouro figura entre os atributos de Hermes. Hermes aperfeiçoou a arte da adivinhação, auxiliando a leitura do futuro por intermédio de pequenos seixos. Zeus, satisfeito com as habilidades do filho, fê-lo seu arauto e mensageiro, consagrado particularmente ao seu serviço pessoal e ao dos deuses infernais, Hades e Perséfone. Na Gigantomaquia, usando o capacete de Hades, que torna o portador invisível, foi que ele lutou ao lado dos deuses. Matou o gigante Hipólito. Durante a luta dos deuses contra os Alóadas, salvou Ares, libertando-o do pote de bronze, onde os gigantes o haviam encerrado. Também foi ele quem salvou Zeus, na luta contra Tífon. Hermes é principalmente o intérprete da vontade divina. Depois do dilúvio foi o portador da palavra dos deuses a Deucalião; por meio dele,  Néfele mandou o carneiro de tostão de ouro que salvaria Frixo; foi dele que Anfião recebeu a lira, Héracles a espada, Perseu o capacete de Hades; salvou Ulisses, velou por Héracles nos Infernos, encontrou comprador para o herói, quando devia servir como escravo e se purificar da morte de Ífito. E foi quem matou Argos, o Gigante de cem olhos, colocado pela deusa Hera como guardião de Io. Daí o nome de Hermes Argeifontes, isto é, matador de Argos. Conduziu o pequeno Dionísio de asilo em asilo, pelo Monte Nisa e depois o deixou em casa de Atamas. Conduziu Páris ao Monte Ida, na Frígia, para ser o árbitro na disputa entre as deusas Hera, Atena e Afrodite, em que cada uma queria para si o prêmio de beleza. Hermes era o deus dos comerciantes e dos ladrões. Guiava os viajantes nas estradas. Sua imagem era colocada nas encruzilhadas, em forma de pilares, cuja parte superior era conformada como um busto humano. Também protegia os pastores e frequentemente o representavam levando um cordeiro aos ombros. Outra de suas funções era conduzir as almas dos defuntos aos Infernos, quando então se chamava Psicopompe, o Acompanhante das Almas. Atribui-se a Hermes a paternidade de Autólico, avô de Ulisses, que teria herdado do pai a arte de roubar com sutileza; de Êurito, um dos Argonautas; de Abdero, epônimo da cidade de Abdera; e do amante de Héracles que foi devorado pelas éguas de Diomedes. As imagens de Hermes o mostravam calçado de sandálias com asas, com um chapéu de formato especial, o pétaso e levando na mão o caduceu, símbolo de suas funções de arauto. Diz-se que era o mais ocupado de todos os deuses.


Retirado do livro Dicionário da Mitologia Grega, de Ruth Guimarães, Editora Cultrix, São Paulo, 2004.

Apolo

 Apolo tem tantos atributos e tão diversos que se pensa estarem nele reunidas várias personalidades. Estudando o problema de suas origens, chegou-se à conclusão de que se trata de um deus solar vindo da Ásia, que teria se confundido com um deus campestre originário do norte da Grécia, o deus principal dos dórios. Apesar do seu caráter múltiplo, suas representações são sempre iguais, obedecendo a um tipo único. Jovem, imberbe, "porque o Sol não envelhece" ele é o deus do Sol; o arco e as flechas que traz simbolizam os raios, a lira a harmonia dos céus; é chamado o Esplendente. Atira ao longe as suas setas, assim como o Sol dardeja longe seus raios. É profeta e, como o Sol, vê tudo, inclusive o que está para suceder. Condutor das Musas, deus da inspiração, preside a harmonia da natureza, e é o deus da Medicina. Nos monumentos, Apolo profeta está vestido com uma longa túnica, traje característico dos padres que divulgavam seus oráculos. Apolo médico tem aos pés uma serpente. Como caçador, aparece vestido de leve clâmide, com o flanco quase nu. Perto da imagem do deus aparece sempre o Grifo, um animal fantástico, às vezes atrelado ao seu carro.

Segundo as tradições mais antigas, a mãe de Apolo, Leto, filha de Céu e de Febe, foi esposa de Zeus, anteriormente à união do deus com Hera. Hesíodo mostra-a envolta em véus sombrios, vestimenta natural de uma deusa da noite. Foi só mais tarde que a fizeram amante de Zeus e a lenda se enriqueceu com os seus infortúnios, durante a fuga ao ódio e ao ciúme de Hera. Assim, quando engravidou por obra de Zeus, e sentindo estar próximo o momento de dar à luz, procurou por toda a Terra um lugar onde pousar. Percorreu em vão a Ática, a Eubeia, a Trácia, e as ilhas do Mar Egeu, pedindo acolhida a cada uma dessas regiões. Temendo a cólera de Hera, nenhuma terra ousou recebê-la. Leto acabou por encontrar um abrigo. Astéria, sua irmã, por ter resistido aos ardores de Zeus fora transformada em ilha flutuante, a ilha Ortígia, que, justamente por não estar fixada em parte alguma não pertencia à Terra. Foi lá que nasceu Apolo. Reconhecido o deus por quanto a ilha fizera por sua mãe, fixou-a mais tarde ao centro do mundo grego e lhe deu o nome de Delos, a brilhante. Leto estava ao pé de uma palmeira, a única árvore da ilha estéril. Conforme canta o hino homérico, durante nove dias e nove noites esteve dilacerada pelas cruéis dores do parto. Todas as deusas se lhe reuniam em torno, menos Ilícia, a deusa dos partos felizes, que se achava sentada no topo do Olimpo, numa nuvem de ouro, retida pela conversa de Hera, que sofria de furioso ciúme, pois Leto, dos formosos cabelos, iria certamente dar à luz um filho poderoso e perfeito. As deusas enviaram a Delos a ligeira Íris, prometendo-lhe um colar de fios de ouro para que trouxesse Ilícia. Quando a deusa que preside aos partos chegou a Delos, Leto experimentava as mais vivas dores.. Em breve nasceu o deus.

Imediatamente lavaram e purificaram em límpida água o divino Febo, envolveram-no em véu branco e o cingiram com um cinto de ouro. Tinha nascido já Ártemis, a irmã gêmea do deus que ajudou a mãe quando o irmão estava para chegar. Leto não aleitou Apolo de gládio resplendente. Têmis ofereceu-lhe o néctar e a divina ambrosia. No momento em que nasceu o deus, cisnes sagrados voaram acima da ilha, fazendo sete vezes a volta, pois era o sétimo dia do mês. Zeus desceu do Olimpo e deu ao filho uma mitra de ouro, uma lira e um carro onde se atrelavam alvos cisnes. Ordenou em seguida que fossem todos para Delfos. Mas os cisnes levaram primeiro Apolo para o seu país, às margens do oceano além da Terra e do Vento do Norte. Ali o deus ficou um ano recebendo a homenagem dos Hiperbóreos, tendo ido para Delfos no verão, entre festas e cantos. Cada ano celebrava-se a vinda do deus com hecatombes.

Hera não perdoara a rival, ainda. Suscitou contra ela a ira do monstruoso dragão, filho da Terra, chamado Délfines ou Píton, que fora incumbido da guarda dos oráculos da Terra, perto da fonte de Castália. Píton perseguia sem cessar a infeliz Leto que fugia, apertando nos braços os filhos. Num dia de intenso calor, em sua fuga, chegou até Cária. Deteve-se à beira de um poço, mas alguns camponeses, ocupados em arrancar uns caniços, expulsaram-na brutalmente. Leto rogou-lhe um pouco d'água, para os filhinhos que tinham sede. Eles, então, turvaram as águas para que ela não bebesse. Leto, possuída de intensa cólera, ergueu as mãos e disse: "Pois bem, ficareis sempre nesse poço". Os desalmados foram imediatamente transformados em rãs. Desde então não cessaram de coaxar e chafurdar na lama. 

Os lobos conduziram-na às margens do Xanto e Leto pode fazer abluções nesse rio, que foi consagrado a Apolo. Dizem que nessa segunda fuga foi Posídon quem ajudou Leto, dissimulando-lhe a retirada. 

Quatro dias depois do seu nascimento, Apolo se pôs à procura de um lugar para fazer o seu santuário. Armado de flechas que para ele tinha forjado Hefesto, desceu das alturas do Olimpo, atravessou a Piéria, a Eubéia, a Beócia chegou ao vale de Crissa. Aceitando o pérfido conselho da ninfa Telfusa, que reinava na região e desejava conservar seu privilégio, Apolo se aventurou a entrar pela estreita garganta selvagem do Parnaso, onde se entocava a serpente monstruosa. Vendo o deus, ela se precipitou, mas Apolo contra ela lançou o dardo poderoso. Dilacerada por dores cruéis, Píton rolou na areia e rolando ficou até que entre borbotões de sangue e com um hálito empestado, morreu. Apolo pôs os pés em cima dela e disse: "Apodrece agora aí onde estás." Quanto a Telfusa, o deus lhe puniu a perfídia esmagando-a com um rochedo. A região onde morreu o monstro tomou o nome de Pito. E Apolo, o matador da serpente, foi chamado de Apolo Pítio. Em lembrança do seu feito, Apolo fundou os jogos fúnebres que tomaram o nome de Jogos Píticos e são celebrados em Delfos. Para se purificar do contato com a serpente, Apolo se exilou na Tessália, só voltando a Delfos quando o período de expiação terminou. Trazia na cabeça a coroa de folhas de loureiro e vinha com um cortejo de sacerdotes, que cantavam hinos de triunfo. A lembrança desses acontecimentos se perpetuou em Delfos com a festa chamada Septéria ou de Veneração, que se celebrava a cada nove anos.

Apolo se apoderou do oráculo de Têmis em Delfos e consagrou no santuário uma trípode, ou tripé, que cobriu com a pele do monstro e onde estava se sentava a profetisa que dava os oráculos. Foi construído um altar no meio de um bosque sagrado, em local que o acaso indicou. Cabras errantes, aproximando-se de uns buracos nos rochedos, caíram tomadas de convulsão. Pessoas que respiraram as exalações que subiam dali também foram tomadas de convulsão, seguida de uma espécie de loucura e, entre contorções e brados, profetizavam. 

Tendo ali instituído o seu culto, Apolo se perguntava como encontraria sacerdotes para os ritos, de vez que o lugar era deserto. Olhando para o mar, divisou ao longe um navio tripulado por cretenses. Tomou a forma de um delfim e se lançou para o lado dos navegantes. Pôs-se a saltar sob o barco, com grande espanto dos marinheiros, pois que assim que as águas se agitaram daquela maneira extraordinária, sem tempestade nem ventos, os remos deixaram de obedecer. O navio, desviando a rota, por si, contornou o Peloponeso, passou pelo Golfo de Corinto e foi dar nas margens de Crissa. Retomando seu aspecto divino, Apolo ditou aos cretenses sua vontade. Disseram-lhe que nenhum voltaria aos seus pagos. Ninguém voltaria a ver suas ricas moradas nem as queridas esposas. Seriam daquele dia em diante, guardiães do templo de Apolo. Saberiam os desígnios dos Imortais, pela vontade dos quais seriam perpetuamente honrados. E, uma vez que o tinham visto sob a forma de um delfim, que o invocassem sob o nome de delfiniano. Diz-se que foi essa a origem de Delfos. Isto explica também por que Apolo é o deus dos navegantes e das expedições marítimas, particularmente das colonizações. 

Entretanto, Apolo não passava todo o seu tempo em Delfos. Todos os anos, no fim do outono, ia para além dos Montes Rifeus, onde reinava o impetuoso Bóreas. Lá era o país dos misteriosos hiperbóreos. Sob um céu perpetuamente azul e luminoso vivia ali um povo de homens virtuosos, votados ao culto de Apolo. Dizia-se que Leto mesma era originária daquele bem-aventurado país. Ao voltar a primavera, Apolo retornava a Delfos, num carro onde se atrelavam cisnes brancos ou os monstruosos grifos. 

Alguns autores colocam na Lícia o lugar do exílio anual do deus. Uma viva disputa se verificou entre Apolo e Héracles em torno da famosa trípode. Héracles consultou a Pítia e ela se recusou a responder. O herói, enfurecido, apoderou-se do tripé que Apolo resolveu reconquistar. Foi tão viva a luta e tão violenta que Zeus precisou intervir com o seu raio. O tripé ficou em Delfos. 

Por duas vezes incorreu Apolo na cólera de Zeus, apesar da predileção com que o distinguia. Na segunda vez ele tomou parte na conspiração urdida contra Zeus por Hera e que fracassou graças a Tétis. Furioso, Zeus condenou Apolo a ir, juntamente com Posídon, pôr-se ao serviço de Laomedonte, o rei de Tróia. Enquanto Posídon trabalhava na construção das fortificações de Tróia, Apolo apascentava os bois do gado real, nas encostas do Ida. Passado o ano de trabalho, o rei não quis pagar o salário combinado e até ameaçou de lhes mandar cortar as orelhas. Apolo fez com que grassasse a peste, na região, por vingança e Posídon ordenou que um monstro marinho surgisse das águas e matasse os homens nos campos. A segunda vez, Apolo, para vingar a morte de seu filho Asclépio, fulminado por Zeus, matou os Ciclopes. Zeus, para puni-lo, manou-o em servidão à corte de Admeto, rei de Feres, para o qual guardava os cavalos e as ovelhas. Ele se mostrou tão devotado ao amo, que o ajudou no seu casamento e o salvou mesmo da morte. Nesse seu aspecto pastoral era conhecido como Apolo Nômio. Enquanto guardava os rebanhos, Apolo tocava lira, pois era também o deus da música. 

Querem alguns que ele tenha inventado o seu instrumento, mas outros pretendem que o recebeu de Hermes. Ao som da sua música quedavam-se encantados os animais selvagens da floresta. Um dia em que tocava no Monte Tmolo foi desafiado pelo sátiro Mársias, que tendo apanhado a flauta atirada fora por Atena, adquiriu à força de tocá-la, extrema virtuosidade. Foram juízes do singular torneio as Musas e Midas, o rei de Frígia. Ao fim do torneio, Apolo foi declarado vencedor, mas Midas se pronunciou por Mársias. O deus o puniu fazendo com que nascessem nele orelhas de burro. Quanto ao seu infeliz adversário, amarrou-o a um tronco, escorchou-o vivo, suspendeu-lhe os despojos à entrada de uma caverna que se podia ver nas vizinhanças de Celene, na Frígia. Segundo algumas tradições o debato foi entre Apolo e Pã. Um dia, Apolo notou a jovem Dafne, companheira de Ártemis, que como ninfa caçadora percorria os bosques, às margens do Rio Peneu (de quem diziam que era filha). 

Apolo caçoava do pequeno deus do Amor, Eros, que com arco e flecha passava os dias ferindo os mortais e imortais. Dizia Apolo que aquilo não passava de brinquedo. Ora, Amor ou Eros tinha no carcaz a flecha que inspirava amor e a flecha que inspirava aversão. Para se vingar do deus atirou-lhe ao coração uma flecha do amor e flechou ao mesmo tempo Dafne com a da antipatia. E assim, embora tivesse uma bela figura de adolescente, quando Apolo resolveu abordar a solitária jovem ela se pôs em fuga, rápida como vento. Em vão Apolo lhe suplicava que parasse, pois quem a perseguia era o deus da luz, filho do próprio Zeus, o que desvendava aos homens o mistério do futuro. Levada pelo terror, Dafne precipitava a fuga. Quase a alcançava já Apolo quando a ninfa pediu socorro à Terra-Mãe. Imediatamente a terra se abriu, a moça mergulhou e em seu lugar surgiu o loureiro, que foi dali em diante a árvore privilegiada do divino Apolo. O deus amou a oceânide Mélia, de quem nasceu Ismênio; a ninfa Corícia, de quem louve Licoreu; Acacális, mãe de Filácides e Filandro; Cirene, mãe de Aristeu; Quíone, filha de Delos, que lhe deu Filâmon; uma outra Acacális, filha de Minos, que lhe deu Anfitemes e Mileto; Urânia foi mãe de Lino e Orfeu; Psâmate, mãe de Lino, o que morreu em tenra idade, devorado pelos cães; Corônis, mãe de Asclépio; Creúsa, mãe de Íon; Tíria, mãe de Cicno; Astéria, mãe de Ídmon; Evadne, mãe de Íamo; Cassandra, a quem deu o dom da profecia. Muitas vezes o belo Apolo foi infeliz nos seus amores: Castália preferiu transformar-se em fonte a pertencer-lhe; Marpessa, a filha de Eveno, preferiu o mortal Idas, ao deus. Consta que Hécuba, mulher de Príamo, teve dele um filho: Troilo. Em Colófon, na Ásia, Apolo passava por pai de Mopso, o adivinho, filho da adivinha Manto. Consideravam-no amante de Ftia, mãe de três crianças, Doro, Láodoco e Polipetes, mortos por Etolo. E por fim, Reo, mãe de Ânio. A paternidade de Têneo é atribuída tanto a Apolo com a mãe Cicno. 

Apolo não se limitou a amar mulheres. Apaixonou-se por Jacinto, filho do Rei Amiclo, adolescente de maravilhosa beleza. Um dia matou-o involuntariamente ao lançar o disco nas margens floridas do Eurotas. O jovem foi transformado na flor que tem o seu nome. Outro amado de Apolo foi Ciparisso. Tendo matado sem querer, um dia, uma cervo de chifres dourados, consagrado às ninfas, suicidou-se. Apolo transformou-o em cipreste. Apolo presidia o cortejo das Musas e entre elas teve também amantes. Diz-se que Tália teve dele os Coribantes; Calíope lhe deu Himeneu e Iálemo. 

Era Apolo também um deus guerreiro. Vimos que matou a Píton, lutou contra os Alóades, contra Forbas, contra Héracles. Gozava entre os Olímpicos de uma consideração muito particular. Quando penetrava na assembleia dos deuses, todos se levantavam em sinal de respeito; sua mãe Leto o desembaraçava do arco e do carcaz que pendurava em ganchos de ouro, na coluna de Zeus. O pai dos deuses o acolhia, apresentando-lhe néctar num copo de ouro. Passava por ser um deus vingativo. Participou do massacre dos filhos de Níobe, enviou aos gregos, reunidos diante de Tróia, uma peste que lhes dizimou o exército, massacrou os Ciclopes, por vingança, combateu Títio. Interveio na guerra dos Gigantes, ao lado dos Olímpicos. Combateu ao lado dos troianos contra os gregos. Protegeu Páris na batalha e é à sua intervenção, direta ou indireta, que se atribui a morte de Aquiles. 

Certos animais eram particularmente consagrados a Apolo: o lobo, que se lhe oferecia em sacrifício e cuja imagem se associava à sua nas moedas; o gamo ou a corça, que figuram igualmente no culto de Ártemis; entre as aves, o cisne, o milhafre, o abutre, o corvo, cujo voo oferecia presságios. Entre os animais marinhos, o delfim, ao qual se liga o nome Delfos, o principal santuário de Apolo. 

O loureiro era a sua árvore. A Pítia mastigava folhas de louro durante os transes proféticos. 

Apesar de ser o deus Sol e da luz, Apolo não é o Sol, sendo essa função preenchida por outra divindade, Hélio. Entretanto, como deus do Sol tem vários nomes: É Febo, o brilhante, Xanto, o Louro, Crisócomes, o que tem a cabeleira de ouro; filho de Leto, divindade da Noite, ele era o dia, adorado nos cimos e altas montanhas. Como deus solar, fazia amadurecerem os frutos e assim consagravam-lhe em Delos e Delfos as primeiras colheitas. O Apolo Esminteu destruía os ratos que infestavam os campos, o Apolo Parnópion livrava os meses de pragas. Como deus arqueiro era Apolo Hecatébolo, como deus da morte súbita, o que lança de longe as flechas, era Apolo Alexícaco. Como deus profeta era Apolo Délfico. Como deus pastor Apolo Nômio, como deus da luz propriamente Apolo Lício, o que tem sido confundido com o patronímico Lício, da Lícia. Como deus matador de lobos era Apolo Licóctomos. Também havia a divindade pastoril Apolo Carneios, o deus-carneiro dos dórios. 

Além disso, foi venerado como deus do canto, da música, da cítara, da lira, construtor e colonizador. 

As funções e símbolos de Apolo são múltiplos e seu estudo pertence mais à história das religiões que à Mitologia. Apolo, com o correr dos tempos, tornou-se o deus da religião órfica, que prometia a saúde e a vida eterna aos iniciados. Diz-se que é Apolo o pai de Pitágoras, ao qual se ligam essas doutrinas. Representa-se Apolo reinando sobre a Ilha dos Bem-Aventurados, paraíso do orfismo e do neopitagorismo.


Retirado do livro Dicionário da Mitologia Grega, de Ruth Guimarães, Editora Cultrix, São Paulo, 2004.