segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Santos Tradicionais no Brasil

Meu São Francisco das Chagas

Meu Santo do Canindé!

Eu sei que Santo não voga

Naquilo que Deus não qué


Durante meses em 1947 investiguei a popularidade de alguns Santos na fidelidade brasileira. Viajei e li boletins, arquivos, anuários. Muita conversa com gente velha de cidade, agreste e sertão. Não enfrentei as 3110 paróquias de 1953 quanto mais as do presente. A notícia municipalista é de 1965, IBGE. Informações de Fé, vieram das vozes populares, às quais proclamo confiança plenária.

Falarei ao de leve do orago da paróquia e do seu denominador. O Santo pode estar no altar principal mas não ser padrinho da freguesia. Padroeiro da Sé mas não titular do Bispado. São Pedro é titular da Arquidiocese de Porto Alegre mas a da Catedral é Nossa Senhora Madre de Deus. O titular do Maranhão é São Luís, Rei da França e da Sé, Nossa Senhora da Vitória. Do Recife e Olinda, Santo Antônio e da Catedral, a Transfiguração de Nosso Senhor Jesus Cristo, pouco entendida pelo beaterio. Às vezes é a mesma e única entidade: - Nossa Senhora das Neves na Paraíba, Nossa Senhora da Apresentação em Natal, ambas arquidioceses.

Preferência de Santos sobre Santas. Em 1391 paróquias, 909 Santos paraninfam para 482 padroeiras. Exceto Nossa Senhora nas incontáveis invocações, os homens distinguem o Santo do seu sexo. Leonardo Mota (Violeiros do Norte, 1925) registra a resposta desaforada de um chefe político sertanejo, referindo-se ao desafeto: - "O padroeiro da terra dele é feme, mas o da minha é macho: - mija em pé e não de coca..."

Alinho a relação no ângulo da simpatia. À esquerda as paróquias e à direita municípios e distritos.

Nossa Senhora da Conceição... 288, denominando 22 paróquias, 37 unidades municipais.

Santo Antônio - 228.62, municípios e distritos

São José - 171.80, distritos e municípios

São Sebastião - 144.43

São João - 118.62

Senhora Sant'Ana - 113.36

São Pedro, Chaveiro do Céu - 58.29

São Miguel - 37.17

São Francisco Xavier, Paula, Assis, Chagas - 31.23

Santa Rita - 30.23

Santa Teresinha - 25.7

São Gonçalo - 21.12

Tomei base na vintena das paróquias. A Santa Cruz dá nome a 25 municípios e distritos mas não constitui orago, exceto em freguesia de São Sebastião do Rio de Janeiro. Há quem debata a Santa Cruz constituir paraninfado real, atendendo apenas a participação sacrificial do Redentor, como a coroa de espinhos, a cana-verde, os cravos. São Domingos e Santa Bárbara batizam distritos e municípios em número de 12, para cada um. São Vicente atinge os 15.

São esses os nomes preferenciais da devoção brasileira. A presença do orago nem sempre coincide com a maioria devocional. Há respeitosa vênia mas não aparecem promessas. A Padroeira de Natal, desde inícios do século XVII, Nossa Senhora da Apresentação, não tem o culto assíduo e público do Padre João Maria, falecido em 1905, e que ainda não mereceu altar. Os natalenses canonizaram-no para todos os efeitos. É a mais popular das devoções na sua comovedora presença em todas as horas. 

Nossa Senhora das Neves em João Pessoa, padroeira, não é a intercessora preferida. Há os Santos terapeutas, como em todas as populações católicas do Mundo, atendendo as consultas por intermédio de orações, pagos os honorários em promessas. São Brás para garganta. São Bento contra ofídios. Santa Apolônia, odontologia. Santa Luzia, oftalmóloga. São Lázaro, úlceras, dermatoses, feridas-brabas. São Sebastião, moléstias contagiosas. São Judas Tadeu, enfermidades graves. São Vito, convulsões. São Roque, tumores. Nossa Senhora da Expectação, do Ó, Boa hora, Bom Despacho, Livramento, Bom Sucesso, Bom Parto, Boa Esperança, para a gravidez normal e parto feliz com recursos complementares a São José, Sant'Ana, São Raimundo Nonato (nonnatus, porque nasceu com cesariana). São Geraldo Magela, Santo Aluísio, evitam filhos pondo seu nome na criança. Para tornar-se mãe, Nossa Senhora da Piedade, das Dores, da Soledade, Madre-Deus, Santa Isabel, Sant'Ana dará leite. São Luís facilitará a linguagem. Santo Expedito fará andar. Santa Biliana cuidará das urinas. O Anjo da Guarda vigiará os passos de dia e o sono de noite. São José protegerá o lar. O Espírito Santo, a memória. São Cristóvão os negócios. Os "Bem-casados" (São Lúcio e Santa Bona) garantem o amor conjugal. A jaculatória "Jesus, Maria José minh'alma vossa é!" assistirá a agonia. São Miguel acompanhará o Espírito. Nossa Senhora do Carmo defenderá no Julgamento.

São Miguel é inseparável do culto das Almas, "São Miguel e Almas", como há paróquia em Santos Dumont, Minas Gerais. Santíssimo Sacramento e o Divino Espírito Santo são devoções delicadas, exigentes, cerimoniosas, populares e não vulgares. Apesar dos cortejos e trono da Festa do Divino, onde aparece Imperador coroado ou a Coroa Imperial é exibida em lenta procissão. O Sagrado Coração de Jesus e de Maria não são de emprego confiado na parte masculina. Preferências de mulheres e de área urbana e suburbana e não-corrente no mundo agropastoril. Os Santos letrados, São Tomás, Santo Inácio, São Paulo, Santa Teresa de Jesus, São Francisco de Sales, não alcançam o poviléu reverente.

Divinópolis, em Minas Gerais, tem o Divino Espírito Santo padroeiro. Merece o duplo tratamento de "Divino" e de "Santo". No Divinópolis de Goiás, orgulha-se possuindo o orago resplandecente e único no Brasil: - o Padre Eterno! permitindo muito pouca aproximação pecadora. Voltaire dizia-o esquecido na universal gratidão e ergueu-lhe igreja em Ferney, Deo erexit Voltaire, gravado na fachada.

Os Santos tradicionais na memória viva são os de Junho (Santo Antônio, São João, São Pedro) e mais São José e São Sebastião. Jesus Cristo é Nosso Senhor e Meu Deus. O Divino continua "Deus desconhecido" pela imprecisão dos atributos funcionais. A feitura de pomba não lhe imprime a devida majestade, quando todos os demais assumem formas humanas. Em Portugal, o Divino Espírito Santo já se apresenta como em Zebreira, Beira Baixa, ancião, venerando, coroado, em poltrona de espaldar, recebendo as vênias e dádivas. A devoção mais profunda, instintiva e natural é Nossa Senhora da Conceição, com sua infindável sinonímia que o Povo julga constituir outras tantas Santas distintas. As representações plásticas ajudam a manter a confusão entre os humildes fiéis nos países católicos. É a mesma observação na França, Itália, Espanha, Portugal, permitindo supor que toda a vida religiosa no Povo esteja limitada à contemplação do cerimonial litúrgico. Nas cidades a conclusão não será dessemelhante.

O culto dos Santos é o único interesse psicológico da multidão e a "alta sociedade" já não tem densidade espiritual para impeli-la ao sentimento divino. Indiferentismo que o desinteresse fundamenta pelo atrito diário, ou, nos intelectuais, uma curiosidade cerebral pela química da Fé ou anatomia das crenças. Homens e mulheres, nem mesmo pelo interior do Brasil, têm a visão litúrgica para reforço da Fé, porque vivem distantes das igrejas e da assistência sacerdotal, raramente prestante pela diminuição dos ministros em serviço dos Sacramentos. A necessidade econômica fixa esse Povo em regiões afastadas dos centros urbanos. Vezes, em larga extensão, não se avista em Capela!

Nesse ermo ardem as fogueirinhas de São João e sobem foguetes a São Pedro, Chaveiro do Céu, garantindo a entrada. Rezam a São Sebastião, defensor da Peste, Nossa Senhora da Conceição, arredando as dificuldades. Não podendo prever as modificações acolhedoras do II Concílio Vaticano, o clero moveu guerra de morte às devoções festivas mesmo nos adros das igrejas. Assim, a dança de São Gonçalo foi combatida como sacrilégio pelo Nordeste, apenas resiste no Sul. Duas fileiras devotas saudavam São Gonçalo cantando versos fervorosos, desfilando em marcha divergente, sob a direção de violeiros. Cantam no Sul ante a efígie, engalanada num telheiro rústico. É, como Sant'Antônio, Santo casamenteiro. Nesse plano, obtive na minha pensão de estudante no Recife de 1925 uma "Oração para casar", em versos, que Pereira da Costa divulgou variante em 1908.


Milagroso São Raimundo

Que casais a todo o mundo,

Vá dizer a Santo Antero

Que também casar eu quero.

Poder de São Expedito

Com um noivo bem bonito.

Permita Santo Odorico

Que ele seja muito rico.

E também Santo Agostinho

Que tenha muito carinho.

Assim como a São Roberto

Que o noivo seja esperto.


Com o poder de Santa Rosa

Quero ter nome de esposa.

Na força de Santa Inês

Chegue logo minha vez.

E com o senhor São João

Que me tenha adoração.


Também peço a São Vicente

Que isto seja brevemente.

Ao Anjo São Gabriel

Que seja bem fiel.

Assim como a São Germano

Que não passe deste ano!


Jamais foram "orações" e sim composição urbana e literária, com sua voga humorística desaparecida pela mudança das atenções psicológicas, como ocorria a uma "Ladainha das Moças", que Pereira da Costa salvou do esquecimento.


São Bartolomeu casar-me quer eu.

São Ludovico, com um moço muito rico.

São Nicolau, que ele não seja mau.

São Benedito, que seja bonito.

São Vicente, que não seja impertinente.

São Sebastião, que me leve à função.

Santa Felicidade, que me faça a vontade.

São Benjamin, que tenha paixão por mim.

Santo André, que não tome rapé.

São Divino, que tenha muito tino.

São Gabriel, que me seja fiel.

Santo Aniceto, que ande bem quieto.

São Miguel, que perdure a lua-de-mel.

São Bento, que não seja ciumento.

Santa Margarida, que me traga bem-vestida.

Santa Trindade, que me dê felicidade.


Pelas praias, agrestes, sertão, zona das matas, vales úmidos, essas produções seriam impossíveis num ângulo desinteressado de sátira. Nessas regiões o assunto é tratado a lo divino, a sério, suplicando marido, lar, filhos, legitimidade funcional feminina. A técnica aliciante é decisiva e urgente, alheia aos recursos da excitação citadina. A mulher é a mesma no poderoso instinto de conquista e fixação sexual. Toda mulher é Eva, pregava o Padre Antônio Vieira.

Nalguns sertões, Maranhão, Piauí, Mato Grosso, casavam publicamente ante a fogueira de São João, estabelecendo subsequente vida doméstica, portas adentro, respeitada e normal, até o aparecimento de um padre para "sacramentar" a união de fato. Queixam-se de tudo menos de carência da Fé. Possuem nas lembranças imediatas a presença suficiente e radiosa dos divinos recursos protetores e leais. Nosso Senhor, Nossa Senhora, o Crucificado, a corte dos Santos e Santas tradicionais, ajudam a manter essa autarquia religiosa, obstinada e sensível, na solidão do "desertão" nacional. Das representações de Cristo a de maior confiança, destino das súplicas desesperadas ou de imperioso interesse, é o Crucificado, o Cristo ferido e sangrento, morrendo na cruz. É o Bom Jesus! Centraliza as grandes romarias fervorosas, Bonfim, Lapa, Pirapora, Bom Jesus das Dores, distribuindo graças quando recebia os derradeiros ultrajes. O Povo só se comove realmente ante duas expressões físicas do Messias. O Menino-Deus no presépio e o Bom Jesus no madeiro do Gólgota. A criança determina a floração de ternura no complexo protetor da paternidade. O Crucificado provoca uma piedade de revolta e protesto pela injustiça da violência e a brutalidade da Força onipotente. Vale muito mais com sua coroa de espinhos que o Cristo-Rei no seu diadema de ouro. É o Bom Jesus com o coração aberto pela lança legionária, ampliando o caminho às misericórdias do Entendimento.

Um erudito "desencantado", Charles Guingnebert, quando professor da História do Cristianismo na Sorbonne, perguntava sem responder se La force de résistence des ignorants est-ce vraiment le dogme qui vit en eux? Visto e examinado quando vi e ouvi, documentário humano ao qual me reporto e dou fé, respondo à pergunta do Professor Guingnebert, com uma simples afirmativa: - É!


retirado do livro Superstição no Brasil, de Luís da Câmara Cascudo, Global Editora, 2ª Edição, 2002.

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