sábado, 27 de novembro de 2021

Hades e Perséfone

O terceiro dos três filhos de Crono que governaram o mundo foi o escuro reverso não só de Zeus mas também de Hélio. A forma mais recente do seu nome é Hades; uma forma mais antiga foi Edes ou Edoneu, e uma forma mais antiga ainda foi Es, que só preservou em conexão com a palavra indicativa de "casa" ou "palácio". A "Casa de Hades" era o Mundo Subterrâneo, o qual, com efeito, mais tarde foi chamado simplesmente Hades, quando o lugar adquiriu o nome do seu senhor. O significado mais provável de Es, Edes ou Hades é "o invisível" ou "o que dá invisibilidade", em contraste com Hélio, o visível e o que torna visível. Também expressa um contraste ainda mais acentuado do que o existente entre Hades e o deus celeste Zeus, cujo nome outrora significava "o brilho do dia". Esse significado, porém, foi relegado a um segundo plano pelo rosto humano do senhor dos deuses. Zeus exercia uma função que, em nossa mitologia, nunca foi exercida pelo deus do sol: Hélio nunca aparece no papel de rei do Mundo Subterrâneo e nunca é saudado como "Sol da Noite". Ao invés disso, como Zeus Catactônio ou Ctônio, Zeus era um "Zeus subterrâneo"; e esse, mais uma vez, era apenas outro nome de Edes ou Hades. Quando se faz menção de "outro Zeus" ou do "hospitaleiro Zeus dos que partiram", a menção sempre se refere a Hades. Nunca significa "outro deus dos céus diurnos", mas um soberano do Mundo Subterrâneo, correspondente e igual ao Zeus do mundo superior.

A nossa mitologia, com efeito, dividia o mundo em três partes: ou porque, nos tempos antigos, o mundo era governado muito mais por uma deusa tríplice do que por uma divindade masculina - sendo esta última meramente o marido da primeira - ou porque a deusa mais velha, a Mãe dos Deuses, sempre teve três filhos, dois mais velhos e mais intimamente identificados como irmãos e um terceiro, o mais moço, destinado a lograr a supremacia. Precisamos aqui reconhecer um esquema básico em que predomina a trindade feminina ou a trindade masculina. A trindade feminina está subordinada a um quarto elemento masculino e a trindade masculina a um quarto elemento feminino. Por conseguinte, assim que o terceiro irmão apareceu em nossas praias e tornou-se um novo senhor do mar, nossa religião encontrou espaço para ele. (Referência Posídon) Existem registros do culto de uma trindade em que ele não se inclui, um culto de Zeus como "Deus Celestial" (Hypsistos), como Deus do Mundo Subterrâneo (Chthonios), e sob um terceiro aspecto, sem nome. Com o advento de Posídon, a trindade definiu-se ainda mais claramente. Antiga pintura de vaso mostra os três irmãos como os três soberanos do mundo, com os seus emblemas de poder: Zeus com o raio, Posídon com o tridente, Hades com a cabeça virada para trás. Este último era o que não podia ser contemplado, o terrível deus da morte, que fazia todas as coisas vivas desaparecerem, que as tornava invisíveis. As pessoas que ofereciam sacrifícios aos seres do Mundo Subterrâneo tinham de fazê-lo olhando para outro lado.

O irmão subterrâneo de Zeus - pois foi nisso que Hades se tornou em nossa mitologia, ainda que, originalmente, fosse apenas o aspecto escuro de um deus brilhante - tinha muitos nomes. Não somente nomes que lhe expressavam a qualidade de deuses dos mortos - como Polidegmon, "o recebedor de muitos convivas", mas também Plutão, "o rico" ou "o que dá riquezas", e Eubuleu ou Êubulo, "o bom conselheiro". Os mesmos nomes - Plutão, Êubulo, Eubuleu - foram dados também ao filho místico, desconcertante, que ele houve de uma deusa igualmente conhecida por muitos nomes, tanto como mãe quanto como filha: como Geia e Reia, como Reia e Deméter e, especialmente em sua relação com Hades, como Deméter e Perséfone. Na versão pública da história, Hades não coabitou com sua irmã Deméter. Foi Zeus quem o fez, na história mais secreta, ou foi Posídon, em outra história com a qual todos também já estão familiarizados. Hades, porém, raptou a sobrinha, Perséfone, também chamada simplesmente Core, "a Donzela". O nome Perséfone está ligado a Perse, Perseida, Perses, Perseu e Pérseo - nomes de Hécate e suas associadas - e era provavelmente usado desde os tempos pré-gregos como o da rainha do Mundo Subterrâneo. Ela adquiriu o nome de "a Donzela" quando, como primeira e única filha de sua mãe (característica que, mais uma vez, partilhou com Hécate e também com Pandora e Protogênia), caiu vítima do deus da morte. Eis aí a história da fundação do reino dos mortos, que para nós seria inconcebível sem a sua rainha e que é também a história da fundação dos Mistérios Eleusinos. 


O Rapto de Perséfone


Hades raptou a filha de Deméter, a filha que Zeus lhe dera sem o conhecimento da mãe. A donzela estava brincando com as filhas de Oceano, apanhando flores - rosas e açafrões, violetas, íris e jacintos - no prado luxuriante. Quase apanhou também o narciso, a flor que a deusa Geia, para agradar ao deus do Mundo Subterrâneo, fizera surgir, prodígio radioso, como artimanha para seduzir a donzela cujo rosto se diria um botão de rosa. Todos os que viram a flor, assim deuses como homens, ficaram maravilhados. Uma centena de florações rebentou-lhe das raízes, doce fragrância espalhou-se em torno dela, os céus abriram-se num sorriso e assim também a terra e a corrente salgada do mar. Com ambas as mãos, a donzela atônita tentou apanhar a joia. Escancarou-se a terra, um abismo apareceu nos Campos Niseus e dele saltou o Senhor do Mundo Subterrâneo com seus corcéis imortais, o Filho de Crono, o deus de muitos nomes. Colocou a donzela, que se debatia, no carro de ouro e levou-a embora, a despeito das suas lamentações.

Estridentemente ela gritou para o Pai, filho de Crono, soberano supremo. Nem deus nem homem lhe ouviram a voz, nem uma oliveira se mexeu. Somente a terna filha de Perses, a deusa de toucado cintilante, a deusa Hécate, ouviu o grito desde a sua caverna; e ele foi ouvido também por Hélio, o esplêndido filho de Hiperíon. Sentado distante dos deuses, no seu templo muito frequentado, o Pai recebia sacrifícios. Foi obra sua o rapto da filha pelo tio, comandante de muitas almas, hospedeiro de muitos hóspedes, Filho de Crono, deus de muitos nomes. Enquanto pôde ver a terra e o céu estrelado, o mar e o sol, a deusa esperou ver de novo a mãe e os deuses eternos. Os picos das montanhas e as profundezas do mar ecoaram-lhe a voz imortal. A Senhora sua mãe ouvia-a. Uma dor aguda salteou-lhe o coração, ela arrancou o toucado da cabeça, arrancou dos ombros o vestido escuro e voou como um pássaro sobre a terra e a água, em busca da filha.

Ninguém estava querendo contar-lhe a verdade - nem deus nem homem. Nem mesmo um pássaro voou para encontrar-se com ela como um sinal. Por nove dias a Senhora Deméter peregrinou pela terra, com duas tochas ardentes nas mãos. Em sua dor, não provou da ambrosia nem do néctar e tampouco molhou o corpo com água. Somente na terceira manhã Hécate - que também carregava uma tocha - deparou com ela e trouxe-lhe notícias: "Senhora Deméter, portadora do desenvolvimento pleno e distribuidora de ricos presentes, quem roubou Perséfone e tão profundamente te perturbou o coração? Ouvi teu grito, mas não vi quem foi. Se o tivesse visto, eu te contaria a verdade." Sem uma palavra, a filha de Reia saltou com ela, carregando nas mãos as duas tochas ardentes, até Hélio, o que observa deuses e homens. Detiveram-se diante dos cavalos dele e a grande deusa indagou da filha e do raptor. Respondeu-lhe o filho de Hiperíon: "Filha de Reia, Senhora Deméter, saberás a verdade. Reverencio e apiedo-me da tua dor pela donzela de pulcros tornozelos. Nenhum dos imortais é responsável senão Zeus, que a deu por esposa a seu irmão Hades. Hades carregou-a em seu carro, levando-a à força para o reino da escuridão e pouco se dando do pranto dela. Mas tu, deusa, deixa de lamentos! Não tens necessidade de resmungar tão inconsolavelmente. Em teu irmão Hades não recebeste nenhum genro indigno entre os deuses. Desde a partilha, ele foi honrado com um terço do mundo, e lá onde habita é realmente rei."

Assim falou Hélio e seguiu em frente com o carro. Os corcéis obedeceram-lhe à voz e puxaram-no com a rapidez de pássaros. A deusa mergulhou num sofrimento ainda mais terrível e torturante. Em sua cólera contra Zeus, deixou o Olimpo e a assembleia dos deuses, foi  para o meio dos homens e visitou-lhes as cidades locais de trabalho. Por muito tempo descurou da aparência exterior, ninguém a reconheceu, nem homem, nem mulher, até que ela chegou ao palácio do sábio Céleo, que, naquela ocasião era rei de Elêusis, a cidade fragrante de sacrifícios. Sentou-se à beira da rua, retransida de dor, junto ao Poço da Virgem, onde o povo da cidade ia buscar água. Ali permaneceu sentada na sombra, ao pé de uma oliveira. Dir-se-ia uma velha que já não pudesse parir filhos nem tivesse participação nos presentes da deusa do amor. Assim se mostram as amas de crianças reais e as mais velhas das criadas de palácios reboantes. Ali foi vista pelas filhas de Céleo, filho de de Elêusis, quando foram tirar água em cântaros de bronze para a casa de seu pai. Eram quatro, na flor da virgindade: Calídice, Clisídice, Demo e Calítoe, a mais velha. Não reconheceram a deusa - com efeito, não é tão fácil para mortais contemplar imortais - e perguntaram-lhe: "De onde vens, velha, e para onde vais? Por que deixaste o teu lar, e por que não vens para o palácio? Dentro das suas paredes umbrosas estarias em casa, em tua velhice, como estão as mulheres mais jovens, que te tratariam bem, tanto com palavras quanto com atos."

A deusa respondeu de modo bondoso: chamou as donzelas de "queridas filhas", revelou o próprio nome, mas de forma torcida, e contou uma história inventada. Disse que piratas a haviam levado de Creta para lá, contra a sua vontade. Quando desembarcaram perto de Tóricos e estavam preparando uma pândega na praia para eles e para as outras mulheres, escapara, e agora não sabia onde estava. Suplicava ajuda e hospitalidade na casa em que as donzelas eram filhas. Talvez houvesse ali uma criança de que ela poderia cuidar como ama? Prepararia a cama para o dono e a dona e ensinaria trabalhos manuais às outras mulheres da casa. Calídice, a mais formosa das donzelas, contou-lhes os nomes dos senhores da terra: Triptólemo, Díocles, Políxemo, Eumolpo, Dólico e seu próprio pai. Todos tinham esposas e nenhuma repeliria uma mulher que lhe suplicasse proteção. Qualquer um a aceitaria à primeira vista, tão grande era a sua semelhança com as deusas. Mas ela precisava esperar que as quatro donzelas pedissem à mãe, Metanira, que convidasse a estrangeira a vir para a sua casa, e a estrangeira não teria necessidade de ir a nenhum outro lugar. Havia, de fato, um meigo menino recém-nascido no palácio: qualquer uma que cuidasse dele o criasse seria invejada pelas outras mulheres, e com muita razão, pois seria ricamente recompensada.

Dessa maneira a deusa foi convidada, com a promessa de um grande ordenado, a ir para a casa de Céleo. As donzelas voltaram correndo e levaram-na para casa. Deméter seguiu-as com o rosto coberto por um véu, vestindo um longo e escuro manto, que lhe caía, roçagante, até os pés delicados. Entraram na sala externa de Céleo, onde estava sentada Dama Metanira defronte da sua câmara. Tinha no colo a criança, o novo rebento. As donzelas correram para a mãe. A deusa transpôs o limiar, sua cabeça tocava o teto, a porta se encheu de luz divina. A Rainha foi tomada de respeitoso temor, de assombro e de terror; levantou-se do seu assento e pediu que a deusa se acomodasse. Deméter não quis fazê-lo, mas permaneceu em silêncio, com os olhos postos no chão, até que a prudente criada Iambe colocou um tamborete à sua frente e atirou sobre ele uma pele de carneiro alviprateado. Em seguida, Deméter sentou-se e abaixou o véu da cabeça sobre o rosto. Por muito tempo se quedou sentada, sem emitir nenhum som, sem pronunciar uma palavra, sem fazer um sinal. Sem sorrir, sem tocar em comida nem bebida, ficou ali sentada, pranteando a filha, até que a prudente Iambe, com troças e brincadeiras, alegrou tanto a divina dama que ela primeiro sorriu e depois riu-se, e sua alma voltou a ser alegre. Mais tarde também, Iambe soube consolar a deusa quando a via irada. Metanira ofereceu-lhe uma taça de vinho doce, mas Deméter recusou-o, dizendo que não lhe era permitido beber vinho tinto. Pediu que se misturasse cevada com água, para poder tomá-la com a delicada hortelã. A Rainha preparou a poção, a deusa tomou-a e, depois disso, sempre o fizeram os que se dedicam à sagrada pureza e não podem tomar vinho.

Só então proferiu Metanira as palavras de saudação e deu as boas-vindas à estrangeira. Ela acreditava, disse, poder ler nos olhos da deusa a sua régia posição, até na desgraça, que vem dos deuses, como deles vem também a boa sorte. Mas, dali por diante, a deusa seria tratada exatamente como ela mesma. Confiou-lhe aos cuidados o filho tardiamente nascido, que já não era esperado. Se a deusa consentisse em cuidar dele e educá-lo até que atingisse a idade da juventude, seria justamente invejada pelas outras mulheres, tão rica seria a sua recompensa. Deméter, a deusa da bela grinalda, empreendeu a educação da criança e prometeu à mãe que seria uma boa ama, pois conhecia os feitiços contra todas as influências malignas. Com as mãos imortais pegou Demofoonte, filho de Céleo, e conchegou-o do seio fragrante. Metanira jubilou. Deméter cuidou do menino dentro do palácio. A criança cresceu qual um deus, sem comer nem beber. A deusa ungiu-o com ambrosia, soprou nele o seu hálito suave e segurou-o no colo. Todas as noites, sem o conhecimento dos pais, expunha a criança à plena força do fogo, como acha de lenha que está sendo transformada em tocha. Para os pais era uma grande maravilha o modo com que o filho se desenvolvia, tão belo quanto um deus. Deméter o teria até transformado num imortal, que nunca envelheceria, se Metanira, em sua imprevidência, numa noite, não tivesse espiado para fora da sua câmara e visto o que estava sendo feito à criança. Ela gritou aterrorizada, bateu com as mãos nas coxas e rompeu em lamentações: "Demofoonte, meu filho, a estrangeira deixa que te exauras na grande fogueira e a mim mergulha na aflição!"

Assim se lamentou ela. Ouvia-a a deusa e encheu-se de raiva contra a Rainha. Com mãos imortais pôs a criança de lado, no chão, depois de havê-la tirado iradamente do fogo e, ao mesmo tempo, disse a Metanira: "Ignorantes sois vós, seres humanos, e imprevidentes, pois não podeis prever nem o bem nem o mal. Tu também sofreste, em tua imprevidência, um dano irremediável. Juro o grande juramento dos deuses, pela água do Estige, que eu teria transformado teu querido filho num imortal, que se conservaria eternamente jovem, e teria obtido para ele um renome imperecível. Agora já não lhe é possível evitar a morte. Receberá o renome imperecível, porque se sentou no meu colo e dormiu nos meus braços. Os filhos dos eleusinos, em intervalos determinados, travarão guerras em sua honra. Mas eu, de minha parte, sou Deméter, a senhora de todos os cultos, divindade da maior beneficência, que traz a maior alegria tanto a imortais quanto a mortais. Agora tu e todo o teu povo erigirão para mim um grande templo e um altar defronte, debaixo do muro da cidade e acima do poço com o belo local de danças, no alto da colina. Ensinar-vos-ei os ritos sagrados, para que no futuro possais oferecer-me o culto que me conforta a alma."

Assim falou a deusa, reassumindo a estatura original e a verdadeira forma. Já não era uma velha: banhada de beleza, uma fragrância que despertava o desejo se evolava à sua volta, vinda do suave aroma do manto; longe resplandecia a radiância do seu corpo imortal; áureos lhe caíam os cabelos sobre os ombros; um resplendor enchia a câmara, como se fosse a fulguração de um raio. Com passos majestosos a deusa saiu do palácio. A Rainha caiu desmaiada. Por longo tempo ali jazeu sem dizer palavra, sem pensar em erguer o filho do chão. As filhas ouviram-lhe o choro e saltaram da cama. Uma delas pegou a criança e pô-la no colo. Outra acendeu uma fogueira. Uma terceira correu para a mãe, ajudou-a a pôr-se de pé e tirou-a do quarto. Todas se afanaram com a criança, lavando-a enquanto ela se debatia e cercando-a de amor. Mas a criança não queria ser confortada, pois agora suas amas eram piores. Elas passaram a noite inteira rezando para a deusa, tremendo de medo. Antemanhã, contaram tudo ao poderoso Céleo, como lhes ordenara que o fizessem a própria Deméter da formosa grinalda. O Rei convocou o povo e convidou-o a construir um rico templo e um altar para Deméter, no alto da colina. O povo obedeceu incontinenti e construiu o templo como ele ordenara. O templo ergueu-se pela vontade dos deuses.

Quando os construtores terminaram e viram o fruto dos seus trabalhos, voltaram para casa. No templo sentou-se Deméter, longe dos deuses abençoados e chorou a filha. Mandou à terra que tudo nutre um ano terrível, um ano de amarga penúria para a humanidade. De nenhuma semente permitiu a terra brotasse alguma coisa; Deméter fez que todas as coisas permanecessem escondidas no chão. Em vão arrastavam os bois os arados pelos campos, em vão caiu a alva cevada nos sulcos. Ela teria destruído toda a humanidade com a fome perversa e os Olimpianos não mais teriam recebido adoração nem sacrifícios, se Zeus não tivesse mudado de ideia. Primeiro que tudo, mandou Íris, a linda deusa de asas de ouro, buscar Deméter. Íris obedeceu e deu-se pressa a ir a Elêusis. Encontrou Deméter no templo envergando vestes escuras e implorou-lhe, mas em vão: a deusa não quis consentir. Em seguida, o Pai mandou-lhe todos os deuses abençoados; eles vieram, um depois do outro, buscar Deméter e trouxeram-lhe presentes esplêndidos. Mas ninguém conseguiu persuadir a deusa irada a alterar sua decisão. Ela não poria os pés no fragrante palácio do Olimpo, nem a terra voltaria a dar frutos enquanto não visse mais uma vez a filha.

Quando soube disso, Zeus mandou Hermes, o deus do caduceu de ouro, à escuridão do Mundo Subterrâneo, a fim de convencer Hades, com brandas palavras a trazer Perséfone de volta da treva para os deuses e para a luz. Hermes obedeceu e, desde a morada olimpiana, mergulhou nas profundezas subterrâneas. Ali encontrou o dono do palácio em casa. Estava deitado na cama, ao lado da esposa envergonhada, que, na sua aflição, ansiava por rever a mãe. Hermes postou-se diante deles e explicou a Hades, o senhor dos mortos, a razão da sua chegada. As sobrancelhas de Hades ergueram-se num sorriso. Obediente ao Rei Zeus, ele falou incontinenti com a esposa: "Vai, Perséfone, para tua mãe, a deusa das vestes escuras, vai com o teu generoso coração e não fiques mais tão triste. Não serei um marido indigno de ti entre os imortais - não sou, acaso, irmão do Pai Zeus? Se porventura vieres aqui de vez em quando, reinarás sobre todas as criaturas vivas e terás as honras maiores entre os deuses. Quem quer que te insultes e não trouxer nenhum sacrifício contributivo, expiará por isso eternamente."

Assim falou ele. Perséfone ergueu-se da cama, jubilosa. O marido, no entanto, seguiu-a secretamente e colocou-lhe na boca a semente, doce como o mel, de uma romã, para que ela não ficasse sempre com Deméter. Atrelou os corcéis imortais ao carro de ouro. A deusa subiu no carro e Hermes, com as rédeas e o chicote na mão, dirigiu a parelha para fora do palácio. De boa mente voaram os corcéis e, céleres, cobriram a grande distância. Nem o mar, nem os rios, nem as ravinas, nem os precipícios lhes detiveram o ímpeto; voaram acima deles, através do ar. Hermes conteve-os no lugar em que Deméter estava sentada diante do templo fragrante. Ao avistar o carro, ela ergueu-se de um salto, como uma Bacante nas montanhas. Perséfone, deixando o carro, voou ao seu encontro. Enquanto se abraçavam, Deméter já estava perguntando à filha se ela comera alguma coisa no palácio de Hades. Pois se o tivesse feito, teria de passar um terço do ano debaixo da terra e só nos outros dois terços poderia ficar com a mãe e com o resto dos imortais, voltando para  eles com a primavera.

Perséfone contou que, no momento em que saltava de alegria com a ideia de voltar para a mãe, o marido colocou secretamente a semente de uma romã em sua boca e a obrigara a comê-la. Também contou que fora raptada enquanto estava brincando e apanhando flores com as filhas de Oceano e com Atena e Ártemis. Assim passaram elas o dia inteiro, abraçadas uma à outra com amor. Depois veio Hécate, a do toucado cintilante, e também acolheu, carinhosa, a filha sagrada de Deméter. Desde então tem sido companheira e criada delas. Zeus enviou sua mãe Reia, a deusa do manto escuro, como mensageira às duas, Deméter e Perséfone, para trazê-las de volta. Prometeu conferir-lhes todas as honras que desejassem, acrescentando que a filha passaria dois terços do ano com a mãe e o resto dos imortais. Reia saltou do Olimpo na direção dos Campos Rarianos, outrora férteis mas agora estéreis, sem uma única haste verde, guardando a cevada branca dentro do solo, de acordo com a vontade de Deméter, a deusa dos belos tornozelos. Logo, porém, à proporção que a primavera se adiantasse, os campos voltariam a cobrir-se densamente de espigas de grãos. Foi nesses campos que a deusa, vinda do Céu, pôs os pés pela primeira vez. Alegres se entreolharam, mãe e filha, Reia e Deméter. Reia contou o que Zeus prometera e pediu a Deméter que permitisse ao trigo dispensador de vida voltar a crescer.

Deméter consentiu e fez que o fruto dos campos de terra abundantemente povoada brotasse. Densamente se cobriu a terra de hastes e flores. Entrementes, a deusa dirigiu-se aos reis de Elêusis , ensinou-lhes os ritos sagrados e iniciou-os no culto sacrossanto, que não pode ser revelado nem ouvido, nem sequer comentado em voz alta, pois o sagrado terror da deusa abafa suas declarações. Abençoado é o homem na terra que viu essas coisas. Mas o que continua não-iniciado e não tem participação nelas, não terá, quando estiver morto, porção alguma das bênçãos correspondentes na escuridão bafienta lá debaixo.

Depois que Deméter deu todas as instruções, as deusas foram para o Olimpo e juntaram-se aos outros imortais. Ali moraram ao lado de Zeus, gozando de grande honra. Abençoado é o homem na terra que eles amam, pois lhe enviarão prontamente Pluto, o rei da riqueza, ao seu palácio, a fim de ser para ele o hóspede que confere riquezas aos mortais.


Retirado do livro Os Deuses Gregos, de Karl Kerényi; coleção Mitologia Grega; Editora Cultrix, São Paulo, 1998.

Nenhum comentário:

Postar um comentário