domingo, 28 de novembro de 2021

Os orixás e os mitos

 Para os iorubás tradicionais e os seguidores de sua religião nas Américas, os orixás são deuses que receberam de Olodumare ou Olorum, também chamado Olofim em Cuba, o Ser Supremo, a incumbência de criar e governar o mundo, ficando cada um deles responsável por alguns aspectos da natureza e certas dimensões da vida em sociedade e da condição humana. Na África, a maioria dos orixás merece culto limitado a determinada cidade ou região, enquanto uns poucos têm culto disseminado por toda ou quase toda a extensão das terras iorubás. Muitos orixás são esquecidos, outros surgem em novos cultos. O panteão iorubano na América é constituído de cerca de uma vintena de orixás e, tanto no Brasil como em Cuba, cada orixá, com poucas exceções, é celebrado em todo o país. Os orixás que protagonizam os mitos aqui reunidos são, em sua maioria, cultuados atualmente tanto na África como na América, mas há também aqueles que são adorados na África e desconhecidos na América ou num dos países americanos em que se cultuam os orixás, assim como aqueles cujo culto se extinguiu na África original, podendo porém, em casos raros, ser encontrados em solo americano.

Exu é o orixá sempre presente, pois o culto de cada um dos demais orixás depende de seu papel de mensageiro. Sem ele orixás e humanos não podem se comunicar. Também chamado Legba, Bará e Eleguá, sem sua participação não existe movimento, mudança ou reprodução, nem trocas mercantis, nem fecundação biológica. Na época dos primeiros contatos de missionários cristãos com os iorubás na África, Exu foi grosseiramente identificado pelos europeus com o diabo e ele carrega esse fardo até os dias de hoje.

Ogum governa o ferro, a metalurgia, a guerra. É o dono dos caminhos, da tecnologia e das oportunidades de realização pessoal. Foi, num tempo arcaico, o orixá da agricultura, da caça e da pesca, atividades essenciais à vida dos antigos. Assim, ele é muito próximo de Oxóssi ou Odé e outros orixás caçadores, como Erinlé ou Ibualama, Logum Edé e Otim, que são os donos da vegetação e da fauna, detendo a chave da sobrevivência do homem através do trabalho. Orixá Ocô divide com Ogum o patronato da agricultura, mas foi esquecido no Brasil, provavelmente porque aqui o candomblé se formou como religião urbana.

Nanã é a guardiã do saber ancestral e participa com outros orixás do panteão da Terra, do qual uma antiga divindade, Onilé, ainda recebe em velhos candomblés uma cantiga ou outra em ritos de louvação dos antepassados fundadores da religião. Onilé, a Mãe Terra, é a senhora do planeta em que vivemos. As atribuições de Onilé foram redistribuídas entre Nanã e outros orixás que muitos seguidores consideram filhos seus. Nanã é a dona da lama que existe no fundo dos lagos e com a qual foi modelado o ser humano. É considerada o orixá mais velho do panteão na América. De sua família fazem parte Oxumarê e Omulu e, mais remotamente, Euá. Oxumarê, o arco-íris, é o deus serpente que controla a chuva, a fertilidade da terra e, por conseguinte, a prosperidade propiciada pelas boas colheitas. Omulu ou Obaluaê, também chamado Xapanã e Sapatá, é o senhor da peste, da varíola, da doença infecciosa, o conhecedor de seus segredos e de sua cura. Euá, orixá feminino das fontes, preside o solo sagrado onde repousam os mortos. Muitos candomblés incluem nesse panteão Iroco, a árvores centenária em cuja copa frondosa habitam aves misteriosas, temidas portadoras do feitiço, mas seu culto no Brasil é raro.

Xangô é o dono do trovão, conhecedor dos caminhos do poder secular, governador da justiça. Teria sido um dos primeiros reis da cidade de Oió, que dominou por muito tempo a maioria das demais cidades iorubanas, merecendo Xangô, talvez por essa razão, um culto muito difundido na África. É praticamente o grande patrono das religiões dos orixás no Brasil e seu culto está associado aos de suas esposas Oiá, Obá e Oxum, originalmente orixás de rios africanos. Na América, por razões óbvias, perderam a referência ao seu rio específico e tiveram reforçados outros atributos míticos. Oiá ou Iansã dirige o vento, as tempestades e a sensualidade feminina. É a senhora do raio e soberana dos espíritos dos mortos, que encaminha para o outro mundo. Obá dirige a correnteza dos rios e a vida doméstica das mulheres, no contínuo fluxo do cotidiano. Oxum preside o amor e a fertilidade, é dona do ouro e da vaidade e senhora das águas doces.

O culto aos orixás femininos não se completa sem Iemanjá, a senhora das grandes águas, mãe dos deuses, dos homens e dos peixes, aquela que rege o equilíbrio emocional e a loucura, talvez o orixá mais conhecido no Brasil. É uma das mães primordiais e está presente em muitos mitos que falam da criação do mundo. No Brasil ganhou a soberania dos mares e oceanos, regidos na África por Olocum, orixá esquecido no Brasil e pouco lembrado em Cuba, a antiga senhora do oceano, das profundezas da vida, dos mistérios insondáveis. Também do mar é Ajê Xalugá, de culto inexistente no Brasil, mas lembrada em candomblés que cultivam a busca de raízes culturais, antigo orixá regente da conquista da riqueza, da prosperidade material, dos negócios lucrativos. O culto de Iemanjá na África está associado ao rio Níger e pode ser observado na âmbito da celebração de divindades femininas primordiais, as Iá Oxorongá, literalmente nossas mães ancestrais, donas de todo o conhecimento e senhoras do feitiço, representantes da ancestralidade feminina da humanidade, as nossas mães feiticeiras, mas que entre nós são lembradas muito discretamente em ritos aos antepassados celebrados em velhos candomblés. Associadas ao culto das mães primeiras encontramos duas divindades infantis muito festejadas no Brasil, os gêmeos Ibejis, os orixás crianças que presidem a infância e a fraternidade, a duplicidade e o lado infantil dos adultos.

Presentes na memória de poucos sobreviventes das antigas gerações de candomblé estão Orô, o temido espírito da floresta, de rugido assustador, antigamente cultuado na África pelos membros de uma sociedade secreta encarregada da punição dos bandidos, feiticeiros e mulheres adúlteras, e Oquê, a montanha, elevação que nasce do oceano, a segurança da terra firme, base da vida humana.

Orunmilá ou Ifá é o conhecedor do destino dos homens, o que detém o saber do oráculo, o que ensina como resolver toda sorte de problemas e aflição. Os sacerdotes de Orunmilá na África, os babalaôs, sábios que usam seus mistérios para resolver problemas e curar pessoas, disputam com os sacerdotes de Ossaim a cura de todos os males que destroem a saúde. Ossaim é o conhecedor do poder mágico e curativo das folhas e sem sua ciência nenhum remédio mágico funciona. Ossaim é cultuado em todos os templos de orixá no Brasil, assim como em Cuba, mas a confraria africana dos olossains, seus sacerdotes herboristas, não sobreviveu entre nós. Orunmilá foi muito esquecido no Brasil, mas ainda é celebrado em antigos templos de Pernambuco e em terreiros que procuram recuperar tradições perdidas. Em Cuba, Orunmilá é praticamente um baluarte da religião dos orixás.

Oxalá encabeça o panteão da Criação, formado de orixás que criaram o mundo natural, a humanidade e o mundo social. Oxalá ou Obatalá, também chamado Orixanlá e Oxalufã é o criador do homem, senhor absoluto do princípio da vida, da respiração, do ar, sendo chamado de o Grande Orixá, Orixá Nlá. É orixá e muito respeitado tanto pelos devotos humanos como pelos demais orixás, entre os quais muitos são identificados como filhos seus. Oxaguiã ou Ajagunã é o criador da cultura material, inventor do pilão que prepara o alimento e é quem rege o conflito entre os povos. É considerado no Brasil uma invocação de Oxalá quando jovem e guerreiro. Odudua é o criador da Terra, ancestral dos iorubás e, juntamente com Oraniã, o responsável pelo surgimento das cidades. Na África há uma grande disputa entre os partidários de Obatalá e os de Odudua, mas no Brasil Odudua foi menos feliz e desapareceu quase por completo, sendo confundido com um aspecto do próprio Oxalá. Outros orixás fazem parte desse grupo: o entre nós pouco lembrado Ajalá, que fabrica as cabeças dos homens e mulheres, sendo assim o responsável pela existência de bons e maus destinos, e Ori, divindade da cebça de cada ser humano e portador da sua individualidade, cujo culto vem sendo reconstituído no Brasil com vigor considerável.

Cada orixá pode ser cultuado segundo diferentes invocações, que no Brasil são chamadas qualidades e em Cuba, caminhos. Pode-se, por exemplo, cultuar uma Iemanjá jovem e guerreira, de nome Ogunté, uma outra velha e maternal, Iemanjá Sabá, entre outras. Assim, cada orixá se multiplica em vários, criando-se uma diversidade de devoções, cada qual com um repertório específico de ritos, cantos, danças, paramentos, cores, preferências alimentares, cujo sentido pode ser encontrado nos mitos.

Os iorubás acreditam que homens e mulheres descendem dos orixás, não tendo, pois, uma origem única e comum, como no cristianismo. Cada um herda do orixá de quem provém suas marcas e características, propensões e desejos, tudo como está relatado nos mitos. Os orixás vivem em luta uns contra os outros, defendem seus governos e procuram ampliar seus domínios, valendo-se de todos os artifícios e artimanhas, da intriga dissimulada à guerra aberta e sangrenta, da conquista amorosa à traição. Os orixás alegram-se e sofrem, vencem e perdem, conquistam e são conquistados, amam e odeiam. Os humanos são apenas cópias esmaecidas dos orixás dos quais descendem.

Os mitos dos orixás originalmente fazem parte dos poemas oraculares cultivados pelos babalaôs. Falam da criação do mundo e de como ele foi repartido entre os orixás. Relatam uma infinidade de situações envolvendo os deuses e os homens, os animais e as plantas, elementos da natureza e da vida em sociedade. Na sociedade tradicional dos iorubás, sociedade não histórica, é pelo mito que se alcança o passado e se explica a origem de tudo, é pelo mito que se interpreta o presente e se prediz o futuro, nesta e na outra vida. Como os iorubás não conheciam a escrita, seu corpo mítico era transmitido oralmente. Na diáspora africana, os mitos iorubás reproduziam-se na América, especialmente cultivados pelos seguidores das religiões dos orixás  no Brasil e em Cuba. A partir do século XIX, primeiramente estudiosos estrangeiros, sobretudo europeus, e mais tarde letrados iorubás iniciaram a compilação desse vasto patrimônio.

Em Cuba os babalaôs cultivaram o hábito de escrever em cadernos os odus do oráculo, que contêm os mitos, interpretações e prescrições sacrificiais, cadernos que mais tarde foram utilizados como fonte primária por pesquisadores das tradições afro-cubanas. No Brasil, onde a instituição oracular baseada na figura do babalaô desapareceu, certamente em razão do papel centralizador aqui desenvolvido pelas mães e pais-de-santo, chefes dos terreiros que agregam os devotos dos orixás, os mitos mantiveram-se difusos na memória ritual e no dia-a-dia das congregações religiosas iorubás-descendentes.

Pesquisadores brasileiros comentam a existência de cadernos  mantidos secretamente pelo povo-de-santo como meio de preservar e passar adiante o conhecimento mítico, mágico e ritual cultivado nos terreiros brasileiros, mas isso é raro e recente, considerando o triste fato de que, até bem pouco tempo atrás, a maioria dos dirigentes dos terreiros e demais iniciados era analfabeta. Até onde se tem notícia, data de 1928 o primeiro documento extenso escrito contendo os mitos da arte oracular, um caderno compilado por Agenor Miranda da Rocha, membro letrado de um dos terreiros da Bahia, em que tradições divinatórias haviam sido preservadas à moda dos antigos babalaôs, mas esse documento somente foi trazido à luz mais de meio século depois de ter sido escrito.

A partir de meados da década de 1930, escritores e cientistas sociais iniciaram o registro mais sistemático de mitos de orixás, embora uns poucos exemplares datem da virada do século XIX para o XX. Nos anos 30, o antropólogo Artur Ramos acreditou que a mitologia iorubá no Brasil estava completamente degradada e perdida (Ramos, 1935), mas Roger Bastide (1945, 1958), sociólogo francês, então professor de sociologia da Universidade de São Paulo, pesquisando na Bahia nas décadas de 40 e 50, discerniu perfeitamente a presença viva dos mitos não só como narrativa, mas como substrato subentendido nos ritos mantidos nos terreiros, sobretudo nas danças, e na própria estrutura mental dos seguidores da religião dos orixás tendo registrado inúmeros mitos.


Retirado do livro Mitologia do Orixás, de Reginaldo Prandi, Companhia das Letras, São Paulo, 2006.

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