segunda-feira, 29 de novembro de 2021

A Terra se Expande

Adetutu se viu em meio ao nada, como se coisa nenhuma existisse à sua volta. Estava completamente só, sem ninguém com quem falar, sem nada para fazer. Imaginou como teria sido a solidão de Olorum antes da criação do mundo. Porque, antes do início dos tempos, Olorum, o Ser Supremo, já habitava a eternidade. Ele vivia só, e tudo à sua volta era igual, sem diversidade e sem movimento. Acabou se cansando de tanto nada, de tanta mesmice, e decidiu fazer um mundo onde seu olhar pudesse pousar a cada instante numa coisa diferente. Queria que tudo se movesse e se transformasse. Imaginou o mundo em que até mesmo a repetição daria origem a novidades.

Olorum criou os orixás e atribuiu a cada um deles um de seus poderes, para que juntos governassem o mundo em seu nome.

Antes de mais nada, foi preciso criar a Terra e o firmamento e o que neles deveria existir. Oxalá, o filho mais velho de Olorum, recebeu esse encargo. Olorum entregou-lhe o saco da Criação, que continha toda a matéria necessária para a produção pretendida e disse:

" Vá e crie. "

Antes de Oxalá partir, Olorum recomendou:

" Nada mais será como foi até agora. O mundo começará a existir. Lembre-se de que Exu, o mais novo de seus irmãos, recebeu de mim o poder da transformação. Sem esse poder, nada se faz: não se cria e não se destrói; não se faz crescer ou definhar nem mesmo o mais insignificante dos seres. Faça uma oferenda a Exu, você sabe do que ele gosta e ele o ajudará na criação do mundo. "

Oxalá despediu-se e seguiu estrada afora, levando o saco da Criação nas costas. O fardo era pesado, a viagem, longa e cansativa. Ao passar sob uma árvore de galhos longos e roliços, cortou uma vara e improvisou um cajado para nele se apoiar ao longo da jornada. Ele criaria o mundo, criaria o Sol e as estrelas, a Terra e a Lua. Povoaria a Terra de mares e serras e rios e planícies e planaltos e cachoeiras. Depois cobriria as superfícies de terra firme com plantas de todos os tipos e tamanhos. Criaria os animais. A cada pensamento que surgia na mente fértil de Oxalá, a matéria se agitava no saco da Criação, que parecia ter ganhado um pulsar lento mas regular e ficava cada vez mais pesado. A vida já se manifestava no saco da Criação.

Adetutu seguia Oxalá, cuidando para não ser vista. Já conhecia a história, que a avó lhe contara muitas vezes e queria comprovar com os próprios olhos se era mesmo verdadeira.

De longe, Exu também acompanhava Oxalá, na esperança de ser chamado para dar sua contribuição à grande obra. Ao contrário de Adetutu, Exu fazia questão de se mostrar. Mas Oxalá, preocupado demais em elaborar em sua cabeça o projeto do mundo, nem  notava a presença de Exu.

A cada passo que avançava na viagem da Criação, Oxalá ia se convencendo de que não devia nada ao irmão caçula. Ele criaria o mundo, essa era sua missão, tinha o poder para isso. Ele seria grande, pensava, seria o maior dos orixás e sua obra, inigualável. Não tinha por que se preocupar com Exu. Talvez devesse lhe fazer um agradinho, lhe dar uns inhames assados e meia cabaça de aguardente, de que o irmãozinho tanto gostava. Mas se ele, Oxalá, estava destinado a ser o Grande Orixá, por que razão deveria se preocupar em fazer oferendas ao irmão para que ele o ajudasse? Faria tudo sozinho, tinha o saco da Criação! Em breve seria aclamado por todos. O mundo, agradecido, lhe renderia as devidas homenagens.

Assim pensando, oxalá esqueceu Exu completamente. Não se lembrou de que sem o controle sobre o movimento, poder que pertencia a Exu, nenhuma empreitada poderia dar certo. Nem uma coisinha qualquer, imagine a criação do mundo! Mas Oxalá era Oxalá. Já se imaginava o Criador.

Desgostoso com o descaso do irmão, Exu tratou de lembrá-lo de que sem sua participação nada de concreto resultaria da imaginação.

Naquele tempo Oxalá ainda não tinha esse nome, que na língua dos orixás quer dizer Grande Orixá. Era chamado de Obatalá, que significa Senhor-do-Pano-Branco, nome que ganhara por causa de seu gosto por tudo que era branco e imaculado, a começar de suas vestes.

Para mostrar a Oxalá que ele não era tão autossuficiente e poderoso como imaginava, Exu lhe preparou três incidentes.

Primeiro fez Oxalá cair e sujar as vestes na lama da estrada. Oxalá não suportava a sujeira e teve que voltar para casa para se  trocar. Perdeu um tempão.

Adetutu lamentou a sorte de Oxalá e quis avisá-lo para tomar cuidado com as vasilhas cheias de azeite de dendê que encontraria pela frente, mas ficou em dúvida se ele lhe daria ouvidos. Concluiu que era melhor ficar quieta.

Mais adiante Oxalá tropeçou numa cabaça de azeite de dendê e de novo sua roupa teve que ser substituída.

Exu a tudo assistia e se divertia muito com a caminhada acidentada do irmão mais velho.

Adetutu se mantinha escondida atrás do tronco de uma árvore. Depois de algum tempo, saiu do esconderijo, convencida de que os orixás não se perturbariam com sua presença. Foi quando teve a impressão de que Exu havia piscado para ela, num sinal de cumplicidade. Adetutu ficou com pena de Oxalá, imaginando as armadilhas que Exu ainda ia preparar para ele. Devia intervir, avisar Oxalá? Desistiu. Sabia que de nada adiantaria. Oxalá era famoso pela teimosia. E a história da Criação, afinal, era desse jeito mesmo.

Na terceira vez, foi com carvão que Oxalá se sujou. E lá foi ele de novo se trocar. Que perda de tempo! Mesmo assim Oxalá não se lembrou de pedir auxílio a Exu. Não lhe deu nada de presente, não fez nenhuma oferenda.

Odudua, outro irmão de Oxalá, que acompanhava tudo com muito interesse e certa dose de inveja, resolveu tirar proveito da situação. Uma vez que o desastrado irmão se mostrava incapaz de cumprir logo sua tarefa, por que não tomar para si a incumbência? Afinal, o mundo não podia ficar esperando Oxalá mudar de roupa indefinidamente. Odudua começou a sonhar que bem poderia ser ele o Criador. Cada vez mais convencido da incapacidade de Oxalá, Odudua foi se aconselhar com seu irmão Ifá, um adivinho que sabia tudo sobre o presente, o passado e o futuro.

Adetutu o seguiu. Queria ver como o oráculo funcionava.

Ifá jogou seus dezesseis búzios mágicos no chão, estudou o desenho que eles formaram e disse a Odudua que suas pretensões poderiam se concretizar. Antes de mais nada, deveria oferecer a Exu uma porção de inhames, uma cabaça de aguardente, uma de azeite de dendê e outra de água fresca, além de dezesseis punhados de búzios. Ah! E uma boa porção de pimenta-da-costa. Ao se dirigir para o lugar onde o mundo ia ser criado, deveria levar uma galinha de cinco dedos em cada pé, um camaleão e quarenta e uma correntes de ferro, que alguns dizem ter sido em número de quatrocentas mil e uma. Mas antes tinha que se apropriar do saco da Criação, evidentemente.

É claro todas as coisas mencionadas até aqui existiam apenas na mente dos deuses, pois o mundo de verdade, tal como o conhecemos e tudo o que há nele, ainda não fora criado.

Odudua deixou o presente para Exu numa encruzilhada, de onde ele vigiava quem ia de um lugar a outro e se pôs a caminho do lugar da Criação.

Enquanto isso, Oxalá, prestes a cumprir seu destino, se arrastava sob o sol quente, levando às costas o saco da Criação, que a cada passo ficava mais pesado. O calor era abrasador e uma sede tremenda lhe secava a boca.

Oxalá parou sob um dendezeiro e com seu cajado fez um furo no caule da palmeira. Do buraco jorrou um vinho fresco e encorpado. Oxalá bebeu do vinho-de-palma até matar a sede, mas a bebida lhe deu muito sono. Ali mesmo, na estrada, Oxalá adormeceu, embriagado.

Adetutu só não aproveitou para tirar uma soneca porque não queria perder nada.

Mais que depressa, Odudua, que de longe acompanhava com o maior interesse os movimentos do irmão, aproximou-se e sacudiu Oxalá. Constatando que Oxalá não acordaria tão cedo de seu sono entorpecido, Odudua pegou o saco da Criação, pôs nas costas e seguiu adiante, deixando Oxalá com seus sonhos de Criador.

Chegando ao lugar da Criação, Odudua pegou as quarenta e uma correntes de ferro que trazia, uniu uma à outra para formar uma só corrente e por ela desceu até a superfície das águas. Do saco da Criação tirou um punhado de terra que atirou sobre as águas e ali se formou um montículo, uma pequena ilhota. Em seguida soltou a galinha de pés de cinco dedos e ela se pôs a ciscar, espalhando por todos os lados a terra do montículo. Uma grande superfície sólida foi se formando sob os pés da galinha. O chão alastrou-se até onde os olhos de alguém já não podiam enxergar.

Maravilhada, Adetutu, que se lembrava bem dessa passagem, exclamou junto com Odudua:

" Ilê Ifé. "

Na língua dos iorubás, o povo de Adetutu, Ilê Ifé quer dizer A Terra se Expande. Segundo suas tradições, a cidade de Ilê Ifé estaria localizada no lugar desse episódio da Criação. Ilê Ifé, que hoje é uma cidade da Nigéria, é considerada pelos iorubás tradicionais a origem do mundo, de onde o homem se dispersou pela Terra. É a cidade sagrada dos iorubás, o umbigo do universo.

Desejando verificar se o mundo estava suficientemente sólido, Odudua fez descer pela corrente o camaleão, que andou com segurança pela Terra e voltou são e salvo às suas mãos. Com outros punhados do pó da Criação, foi acrescentando ao mundo tudo o que nele deveria existir.

Pronto! O mundo estava criado. Satisfeito, Odudua voltou para a casa do Pai para lhe dar a boa-nova.

Adetutu foi transportada para o alto e de lá viu o mundo acabado de nascer. Avistou de longe uma terra verdejante, cortada por rios azuis, que seu coração dizia ser o lugar onde no futuro ficaria seu país. Viu o lugar onde, um dia, seus ancestrais fundariam a aldeia em que ela nasceria. Ali seria criada, casaria e teria filhos. Naquele lugar seria feliz, até o dia em que os caçadores de escravo mudariam sua vida por completo..

Lá do alto, ela achou tudo tão bonito que não se conteve e aplaudiu a Criação. Exu, que lhe fazia companhia, se sentiu lisonjeado pelo aplaudo, que julgou ser dirigido exclusivamente a ele. Em retribuição, deu a Adetutu um saquinho de pano com a boca amarrada por um cordão de palha-da-costa.

" É para guardar segredos ", ele disse.

Ela agradeceu e pendurou a sacolinha no pescoço.

No chão do navio, Adetutu se virou. Dormia agora.


Retirado do livro A Criação do Mundo - Contos e Lendas Afro-brasileiros;  escrito por Reginaldo Prandi; Cia. das Letras, São Paulo, 2009.

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