domingo, 19 de julho de 2020

Josefina

Encontrei-a no mais belo jardim do mundo. Jardim sem grandezas de relvado ou jorros dágua, sem estátuas nem balaustradas. Jardim arruinado, com uma arquitetura inverossímil de arames, tijolos, canos, latas, e um tanque a desmoronar-se, amolecido em limo, sob torneiras que mansamente lacrimejavam. O resto, uma profusão de bichos que escondiam seus mágicos sussurros dentro da terra, no meio das pedras, por cima das árvores...

Era, porém, o mais belo jardim do mundo, porque Josefina passava por ali, e suas saias crepitavam nas folhas secas, e seus dedos tão brancos armavam raminhos com malvas, miosótis, amores-perfeitos, - raminhos de trazer ao peito, de colocar diante dos santos, de pousar nas mãos dos mortos... E eu sempre pensei que era dele que falávamos quando íamos cantando, debaixo das laranjeiras:

"Fui passear no jardim das flores,
Giroflê, Giroflá..."

Os vestidos de Josefina eram como o seu jardim, com raminhos de junquilhos, chuva de violetas, estrelinhas de jasmins correndo por umas fazendas pensativas, umas fazendas melancólicas, roxas, cor de poente, cor de aflição. Ela era ainda menina, mas vestia-se como uma pessoa antiga: parecia uma viúva pequenina. Apenas um colarzinho iluminava esses vestidos tristes: era de contas lisas, umas contas de vidro tão roliças, tão lustrosas, que pareciam colhidas num rio, e guardavam a transparência e a fluidez das águas, e eram mais azuis do que o céu. Esse colar alegrava os vestidos, alegrava tudo: de longe se via o seu colar, antes de se avistarem os olhos de Josefina, que eram tão bonitos mas tão tristes, veludosos, quietos lilases, como os de um coelho branco.

E eu, quando via Josefina, já não queria ver mais nada, e só desejava ficar para sempre com um carretel de linha na mão, ajudando-a a fazer os seus raminhos de malva, miosótis, amor-perfeito e outras maravilhas que só se veem bem quando se olha de muito perto, quando se é criança, quando não se tem pressa, quando se está descobrindo o mundo.

E o que me espantava era não estarem ali todas as crianças da Terra, todos os bichos, mesmo todos os homens e mulheres, reis, sacerdotes, anciãos, escribas e fariseus, para verem Josefina sentada ao pé do tanque de limo, com o regaço cheio de flores, com o vestido cheio de flores, toda ela cheia de flores, amarrando flores em pequeninos ramos como nenhum artista jamais pintou ou descreveu.

Havia pombos que arrulhavam em redor de Josefina e libélulas que valsavam com seus vestidos de gaze e seus adereços de ametista. E o sol cobria o chão de medalhinhas de ouro, as aranhas estendiam umas teias enormes, como guarda-chuvas de cristal, e ficavam no meio, sonhando com o universo.

Mas, ao entardecer, Josefina dirigia seus passos, nuns sapatinhos pequenos como os de qualquer criança, dirigia seus passos muito leves, como folhas entre folhas, para dentro de casa: porque ultimamente, tossia; - e era tão pálida e tão débil! - e tão pobre que só se podia tratar com água de melissa e rebuçados...

E eu ficava tão espantada de que não viessem todas as crianças, e os bichos, e os reis e sacerdotes, e os escribas , mesmo os homens e as mulheres - já não digo da Terra, mas do bairro - com um remédio para a tosse de Josefina. A tosse que ela abafava num lencinho, com os seus dedos tão brancos e ainda úmidos de flores.

E os meus olhos ficavam tão pesados que nem queria dos seus rebuçados, e intimamente sabia que amanhã, que para o mês, que qualquer dia Josefina ia morrer.

E morreu. No silêncio de uma noite. No silêncio de sua triste alcova. Quando as flores estavam nascendo. Quando eu estava dormindo.

De rosto, de corpo, de mãos, não mudou nada. Ela fora sempre como um anjo de cera ou marfim. Seus olhos tão calmos, violáceos, prateados, seus olhos veludosos de coelho branco ficaram um pouquinho entreabertos, como as caixas de nácar que naquele tempo se usavam para as joias. Tinha nas pálpebras uma penumbras azuis, como certas campânulas.

Nunca soube quem lhe deu o vestido de cetim, a coroa de prata, para ser enterrada como as santas dos altares. Em redor de seu pescoço, onde antes se assentavam as contas lustrosas, feitas de água e de céu, corria agora um crespo enfeite de renda prateada, que brilhava muito, à luz dos círios.

Suas mãos eram tão jovens, tão tenras, que, mesmo mortas, se conservavam arredondadas, sem nenhuma dureza, sem esqueleto, com a substância de suas flores, e um desenho de pombos lunares.

De modo que a morte de Josefina foi como uma estranha festa. Não tinha pai nem mãe. (Só podia ter sido sem pai nem mãe.) E havia umas velhinhas que choravam de vez em quando, sempre que olhavam para o seu claro rosto imóvel entre os bandós do cabelo negro, sob a coroa de prata. E quem entrava também chorava um pouquinho, como se fosse formalidade. E aspergiam-na com um raminho de alecrim molhado num copo dágua, e rezavam de mãos postas, e desapareciam na sombra. E ela, em prata e cteim, brilhava como um espelho.

E eu ficava por ali, triste e despercebida, querendo brincar com suas mãos tão claras e seus negros cabelos copiosos. Querendo levá-la para o jardim, para aquele recanto de águas e pedras desmoronadas onde moravam borboletas e libélulas, para aquelas sombras cheias de aranhas e pássaros...

Vieram muitas palmas, ramos, uns enfeites de flores em forma de coração, com folhas de palmeirinha por baixo e laços azuis e brancos, de umas fitas tão leves que se via o sol através. E cheirava a horta, a rega, a jardim, aos campos imensos da madrugada, quando o sol pinta os cavalos e os bois de rosa e verde... E respingavam a morta com água alcanforada, como se o seu corpo fosse um canteiro de seda.

Tudo era acima de mim! E eu me perguntava se não viriam reis, sacerdotes, toda aquela gente poderosa, de que me falavam constantemente, ver que Josefina morrera e não poderia fazer mais seus lindos raminhos multicores; e morrera (eu o sabia! eu o sabia!) porque só tinha podido tomar água de melissa e rebuçados para a tosse. E queria perguntar-lhe se isso era possível, e se ninguém sofreria, quando eu o contasse, e queria ver se não ficariam desesperados, arrependidos, e se ninguém a ressuscitava.

Ah! não vieram... Não a ressuscitaram! A casa pobre e apertada cheirava a chácara, a cera, a luz, a café. Porque serviam café numas xicrinhas de beiço lascado, como se  fosse parte do cerimonial sorver-se um gole, enxugar-se o bigode, fazer-se tinir a colherzinha no pires. Depois, sentados em redor, esperavam. Esperavam que o tempo passasse. Rezavam, choravam e conversavam muito baixinho.

E o caixão estava cheio de dálias, rosas e flores tão açucaradas que formigas pequeninas viajavam em fila pelo cetim branco... Mas não houve raminho amarrado com a graça, com o sentimento dos que Josefina amarrou para tanta gente, naquele tempo em que todos se enfeitavam com flores, e os raminhos queriam dizer diferentes coisas, conforme estivessem colocados no cabelo, no peito, na cintura... No tempo em que cada flor tinha um significado, era uma palavras...

E não soube mais nada: não me deixavam ver o resto. Certamente para que eu não sofresse. Mas eu já tinha sofrido tudo.

Mais tarde, quando falavam nela, diziam: "Morreu como um passarinho". E indagavam uns para os outros: "Que veio fazer a este mundo?"

Então, meus olhos se enchiam de água; meus olhos ficavam como aqueles velhos tanques de limo, - e eu via de longe seu rosto, suas mãos, seu colar azul consolando o vestidinho triste, - e dentro de mim repetia também aquela pergunta.

Mas nem os reis nem sacerdotes nem os escribas e muito menos os fariseus responderiam...

Conto de Cecília Meireles, do livro Giroflê Giroflá, da Coleção Veredas. Editora Moderna, 6ª Edição, 1992.

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