O predomínio do som sobre o significado criou uma espécie de tradição "virundum" de letras cantadas propositalmente erradas.
Atire o primeiro vinil quem nunca cometeu um virundum. O termo é esdrúxulo, mas serve para designar as mudanças na letra original de uma música. Geralmente induzidas por audições desatentas, as letras ficam registradas de memória mais pela sonoridade do que pelo sentido, e desse jeito são entoadas.
A versão recorrente da origem do termo é de que foi cunhado a partir do primeiro verso do Hino Nacional. "Ouviram do Ipiranga, as margens plácidas" virou "o virundum (Ipiranga, as margens plácidas)", e hoje o tema motiva inúmeras trocas de relatos sobre a prática, sobretudo no mundo virtual de sites e blogs.
O mais conhecido desses sites especializados no gênero é não por acaso chamado de Virundum (www.virundum.com). No estrangeiro, o mesmo é feito pelo site americano Kiss this guy (www.kissthisguy.com), com as músicas em inglês, é claro.
EXEMPLOS
No universo virundum, o homem de Mesmo que seja eu, aquele que a musa de Erasmo Carlos deve chamar de seu, acaba batizado: passa a ser "uma homem para chamar Dirceu".
Outro clássico do virundum é Noite do Prazer de Cláudio Zoli gravada pelo grupo Brylho nos anos 80. A letra descreve o ambiente de uma festa: "Na madrugada a vitrola/ rolando um blues/ tocando B.B. King sem parar". Mas o virundum faz a cena ficar mais nonsense ou apimentada, já que tem gente "tocando de biquíni sem parar".
Em Seduzir, de Djavan, o efeito virundum confere aromas aos versos existenciais, uma vez que o vazio de "Nem que eu bebesse o mar/ encheria o que eu tenho de fundo", passa a ser "o cheirinho que eu tenho de fumo".
Defumada também fica a letra de Como Nossos Pais. O autor Belchior escreveu "mas é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem". Na versão virundum, a pessoa a quem o compositor se dirigia fica um tanto quanto fora do ponto: "Mas é você que é mal passado e que não vê".
A música Alagados, do Paralamas do Sucesso, talvez seja uma das que concentre mais virunduns por versos rimados. No trecho "Alagados/ Trenchtown/ Favela da Maré", a localidade jamaicana de Trenchtouwn assume várias formas: "Cristal", "Tristão", "Trens estão", "Frestão", entre outras. E é comum a favela carioca a que se refere a letra ficar tingida: "Favela Amarela". Em seguida, "A arte de viver da fé/ Só não se sabe fé em quê" ganha um tom mais otimista: "A arte de viver dá pé/ Só não se sabe pé de quê?". Tudo faz sentido no universo paralelo do virundum.
TRADIÇÃO "VIRUNDUM"
Exemplos de canções que foram "alteradas" pela criatividade popular:
TRECHO ORIGINAL:
Eu perguntava do you wanna dance? E te abraçava do you wanna dance?
(Whisky a Go Go, Roupa Nova)
TRECHO ALTERADO:
Eu perguntava tudo em holandês e te abraçava tudo em holandês...
TRECHO ORIGINAL:
Depende de nós quem já foi ou ainda é criança...
(Depende de Nós, Ivan Lins)
TRECHO ALTERADO:
Depende de nós quem já foi uma linda criança...
TRECHO ORIGINAL:
Tira essa escada daí, essa escada é pra ficar aqui fora...
(W/Brasil - Chama o Síndico, de Jorge Benjor)
TRECHO ALTERADO:
Tira as sete cabras daí, as sete cabras é pra ficar aqui fora...
TRECHO ORIGINAL:
Mas se ergues da justiça a clava forte...
(Hino Nacional)
TRECHO ALTERADO:
Mas segues a justiça o cabra forte...
TRECHO ORIGINAL:
Ê, ôôô, vida de gado... Povo marcado ê, povo feliz
(Admirável Gado Novo, de Zé Ramalho)
TRECHO ALTERADO:
Ê, ôôô, briga de galo, porco, macaco ê, porco e perdiz
TRECHO ORIGINAL:
Tocando B.B. King sem parar...
(Noite do Prazer, Cláudio Zoli)
TRECHO ALTERADO:
Tocando de biquíni sem parar...
Texto de Paulo Jebaili retirado do Revista Língua, Edição Especial Música & Linguagem 2010, Editora Segmento, São Paulo.
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