quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Traídos pelo ouvido

O predomínio do som sobre o significado criou uma espécie de tradição "virundum" de letras cantadas propositalmente erradas.


Atire o primeiro vinil quem nunca cometeu um virundum. O termo é esdrúxulo, mas serve para designar as mudanças na letra original de uma música. Geralmente induzidas por audições desatentas, as letras ficam registradas de memória mais pela sonoridade do que pelo sentido, e desse jeito são entoadas.

A versão recorrente da origem do termo é de que foi cunhado a partir do primeiro verso do Hino Nacional. "Ouviram do Ipiranga, as margens plácidas" virou "o virundum (Ipiranga, as margens plácidas)", e hoje o tema motiva inúmeras trocas de relatos sobre a prática, sobretudo no mundo virtual de sites e blogs.

O mais conhecido desses sites especializados no gênero é não por acaso chamado de Virundum (www.virundum.com). No estrangeiro, o mesmo é feito pelo site americano Kiss this guy (www.kissthisguy.com), com as músicas em inglês, é claro.


EXEMPLOS


No universo virundum, o homem de Mesmo que seja eu, aquele que a musa de Erasmo Carlos deve chamar de seu, acaba batizado: passa a ser "uma homem para chamar Dirceu".

Outro clássico do virundum é Noite do Prazer de Cláudio Zoli gravada pelo grupo Brylho nos anos 80. A letra descreve o ambiente de uma festa: "Na madrugada a vitrola/ rolando um blues/ tocando B.B. King sem parar". Mas o virundum faz a cena ficar mais nonsense ou apimentada, já que tem gente "tocando de  biquíni sem parar".

Em Seduzir, de Djavan, o efeito virundum confere aromas aos versos existenciais, uma vez que o vazio de "Nem que eu bebesse o mar/ encheria o que eu tenho de fundo", passa a ser "o cheirinho que eu tenho de fumo".

Defumada também fica a letra de Como Nossos Pais. O autor Belchior escreveu "mas é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem". Na versão virundum, a pessoa a quem o compositor se dirigia fica um tanto quanto fora do ponto: "Mas é você que é mal passado e que não vê".

A música Alagados, do Paralamas do Sucesso, talvez seja uma das que concentre mais virunduns por versos rimados. No trecho "Alagados/ Trenchtown/ Favela da Maré", a localidade jamaicana de Trenchtouwn assume várias formas: "Cristal", "Tristão", "Trens estão", "Frestão", entre outras. E é comum a favela carioca a que se refere a letra ficar tingida: "Favela Amarela". Em seguida, "A arte de viver da fé/ Só não se sabe fé em quê" ganha um tom mais otimista: "A arte de viver dá pé/ Só não se sabe pé de quê?". Tudo faz sentido no universo paralelo do virundum.


TRADIÇÃO "VIRUNDUM"


Exemplos de canções que foram "alteradas" pela criatividade popular:


TRECHO ORIGINAL: 

Eu perguntava do you wanna dance? E te abraçava do you wanna dance?

(Whisky a Go Go, Roupa Nova)

TRECHO ALTERADO:

Eu perguntava tudo em holandês e te abraçava tudo em holandês...


TRECHO ORIGINAL:

Depende de nós quem já foi ou ainda é criança...

(Depende de Nós, Ivan Lins)

TRECHO ALTERADO:

Depende de nós quem já foi uma linda criança...


TRECHO ORIGINAL:

Tira essa escada daí, essa escada é pra ficar aqui fora...

(W/Brasil - Chama o Síndico, de Jorge Benjor)

TRECHO ALTERADO:

Tira as sete cabras daí, as sete cabras é pra ficar aqui fora...


TRECHO ORIGINAL:

Mas se ergues da justiça a clava forte...

(Hino Nacional)

TRECHO ALTERADO:

Mas segues a justiça o cabra forte...


TRECHO ORIGINAL:

Ê, ôôô, vida de gado... Povo marcado ê, povo feliz

(Admirável Gado Novo, de Zé Ramalho)

TRECHO ALTERADO:

Ê, ôôô, briga de galo, porco, macaco ê, porco e perdiz


TRECHO ORIGINAL:

Tocando B.B. King sem parar...

(Noite do Prazer, Cláudio Zoli)

TRECHO ALTERADO:

Tocando de biquíni sem parar...


Texto de Paulo Jebaili retirado do Revista Língua, Edição Especial Música & Linguagem 2010, Editora Segmento, São Paulo.

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