segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Erros que dão charme às canções

MPB coleciona sucessos com erros de gramáticas que, se consertados, comprometeriam a obra.


O cancioneiro popular está repleto de casos em que o padrão da Língua foi subvertido. Muitos assaltaram a gramática, como entoam Lulu Santos e Herbert Vianna, de propósito. Outros buscam aproximar-se do coloquial, e com isso privilegiam variantes outras que não a escrita culta. Há, porém, um repertório de canções brasileiras em que o tropeço de Português, involuntário ou deliberado, é tão integrado à lógica interna da composição que, se corrigido, a música sofreria algum tipo de perda.

O compositor Luiz Tatit, que é professor titular do Departamento de Linguística da USP, observa que a intenção das letras nas canções é retratar falas e não gramáticas normativas, e as exigências da composição tomam o primeiro plano.

Há fatores do próprio processo de criação que não raro "pedem" desvios da norma culta, como a tentativa de encontrar uma rima. É a hipótese plausível, por exemplo, para a clássica marchinha Aurora (1941), de Mário Lago e Roberto Riberti, em que o apelo sonoro fala mais alto que a conjugação verbal tida como correta.

"Se você fosse sincera/ Ô ô ô, Aurora/ Veja só que bom que era/ Ô ô ô, Aurora."

Seria difícil imaginar, num salão de Carnaval, alguém cantando:

"Se você fosse sincera/ Ô ô ô, Aurora/ Veja só que bom seria".

Paulinho da Viola contou ter ficado atordoado quando chamaram sua atenção para um erro de concordância em seu samba Comprimido, sobre um homem que após brigar com a mulher tenta o suicídio.

"Noite de samba/ Noite comum de novela/ Ele chegou/ Pedindo um copo d'água/ Pra tomar um comprimido/ Depois cambaleando/ Foi pro quarto/ E se deitou/ Era tarde demais/ Quando ela percebeu/ Que ele se envenenou".

- Então me deram o toque: não era "envenenou", mas "envenenara".

Paulinho tentou mudar.

- Nada encaixava. Um desespero. Aí decidi deixar assim, com erro mesmo. Nunca reclamaram.


CONJUGAÇÃO DE CARTOLA


Em seus shows, Paulinho costuma lembrar um episódio similar de erro involuntário ocorrido com seu mestre, Cartola. Foi na gravação do disco "História das Escolas de Samba" em 1974, que um produtor notou que o samba Fiz por você o que pude continha uma conjugação verbal equivocada.

O verbo "premiar" foi conjugado "premeia" e não "premia", nos versos:

"Sonhava desde menino/ tinha o desejo felino/ de contar toda a tua história/ este sonho realizei/ um dia a lira empunhei/ e cantei todas tuas glórias/ perdoa-me a comparação/ mas fiz uma transfusão/ eis que Jesus me premeia/ surge outro compositor/ jovem de grande valor/ com o mesmo sangue na veia".

O samba é uma homenagem à escola de samba Mangueira. Cartola fora resgatado do ostracismo pelo jornalista Sérgio Porto (o Stanislaw Ponte Preta), que o encontrou lavando carros em Ipanema. Nos estúdios, alertado do equívoco, Cartola teria ficado visivelmente abalado e quis mudar a letra. Mas um produtor o convenceu de que isso alteraria o sentido da composição.

Um dos desafios de um compositor é passar sua mensagem nos limites da métrica, fazer com que as palavras caibam na melodia (grosso modo, a sucessão de notas que formam a parte cantada da música). Isso, por vezes, induz o autor a dilatar, de forma deliberada, os recursos da Língua, sob o salvo-conduto da licença poética.

- Licença poética era um recurso do letrista para que coubesse na melodia o que ele queria. Mudava-se um pouco a acentuação da palavra ou a palavra aparecia até sem a concordância devida. Esses recursos são habituais, mas hoje em dia se faz menos - diz Luiz Tatit, da USP.

Em muitas obras, o que aparentemente seria um erro de Português é, na realidade, um recurso poético ou um registro narrativo de um determinado linguajar.

- A questão é se de fato se diz aquilo na entoação do dia a dia. Quando não se diz, fica artificial. A menos que seja uma brincadeira. Do contrário, dá a impressão de que, se o letrista tivesse pensado um pouco mais, teria encontrado uma solução melhor - diz Tatit.


O ERRO É A IDEIA


Por vezes, a supressão da norma é o que fortalece a ideia a ser comunicada. O rock A Gente Somos Inútil, sucesso do Ultraje a Rigor na década de 80, é um bom exemplo. Ao mandar a regência e a concordância às favas, o autor Roger Moreira encontrou uma maneira debochada de enfatizar a ideia de um país acostumado a conviver com a precariedade.

"A gente não sabemos escolher presidente/ A gente não sabemos tomar conta da gente/ A gente não sabemos nem escovar os dente/ Tem gringo pensando que nós é indigente/ Inútil/ A gente somos inútil".

- Na música do Ultraje, assim como em Beija Eu, do Arnaldo Antunes, há apropriações do coloquialismo para criar uma forma na canção, um recurso linguisticamente lúdico para criar um estilo - analisa Heron Coelho, diretor e roteirista teatral, com graduação e mestrado em Letras pela USP.

Segundo Heron, tudo é possível quando se trata de poesia e, consequentemente, da canção popular.

- A canção é a conjuminância entre a letra e a música. A partir do momento em que se obtém um bom resultado, dentro dessa instância chamada canção, não interessam mais os formalismos. Beija Eu, por exemplo sugere uma criança cantando - comenta Heron. 

Mas nem toda subversão normativa resulta de uma busca por estilo ou por alargar os limites estéticos. Muitas vezes, trata-se da expressão de um dado linguajar, de uma tradição oral, de um tipo de falante. Ou, como diz Heron, da circunstância em que o autor está inserido:

- É preciso levar em conta a circunstância: a de Luiz Gonzaga, que canta "Assum Preto veve sorto, mas não pode avuá", a de Adoniram Barbosa, com "nós fumo e não encontremo ninguém". Há uma circunstância que leva esse coloquialismo para o discurso da canção popular. São segmentos da sociedade que encontram no discurso musical um lugar para a expressão.

O que, do ponto de vista da linguística, não acarreta qualquer prejuízo, na visão do professor titular de Língua Portuguesa da PUC-SP, Dino Preti, que considera a obra de Adoniran excelente por retratar uma variante linguística de São Paulo.

- Não há sentido nenhum em tentar olhar para as músicas pela variante culta. A Língua tem muitas variantes, não é uma questão de erro, mas de variantes linguísticas, algumas têm mais prestígio linguístico e outras têm menos.

De acordo com Preti, os registros de falas de segmentos sociais mais fechados, de gírias e da linguagem característica são elementos que conferem à música um sabor local, como o dos imigrantes italianos, retratados por Adoniran, que imprimiram suas marcas na capital paulista.


ESPONTANEIDADE


Preti considera que seria uma atividade pedagógica interessante levar os textos de Adoniran Barbosa às salas de aula:

- O indivíduo deve aprender na escola que há diversas variantes e essas variantes são adequadas a certas situações. O importante é saber quando usar essas variantes, em que condições, em que situações de comunicação se usa uma variante ou outra. Ao falar com uma criança, não se vai dizer: "Se você vir sua mãe, dê-lhe o recado".

Visão semelhante tem Tatit.

- Normalmente, uma canção convence mais quando as suas estruturas ditas, cantadas, parecem espontâneas, ditas no cotidiano. E tem gente que leva isso aos extremos. Não é nem que Adoniran, por exemplo, falasse daquele jeito. Ele percebia essas construções no ambiente dele e gostava de trazer para as canções.

Para Preti, o importante da linguagem é comunicar.

- Não adianta falar na língua culta e não comunicar as suas ideias - enfatiza.

Tatit segue o mesmo tom:

- A Língua é completamente livre para se usar como se quiser e a canção é uma das formas. A Língua tem de estar sempre solta.

O universo da canção popular parece pedir um tipo de apreciador que seja também bom entendedor. Assim, o que valeria mesmo é passar a mensagem. E talvez o território livre da música soubesse disso muito antes da linguística.


Texto de Paulo Jebaili e Luiz Costa Pereira Júnior retirado do Edição Especial da Revista Língua - Música & Linguagem 2010, Editora Segmento, São Paulo.

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