domingo, 22 de janeiro de 2023

Os sexos do anjo

Falar na "busca das origens" há muito tornou-se lugar-comum para caracterizar uma das fixações do pensamento romântico. Mais produtivo, cremos, seria desdobrar esse filão e questioná-lo em última consequência: chegaríamos à constatação de que a busca seduz mais do que o encontro, vale dizer, ela carrega embutida um desejo de frustração para, através do fracasso, realimentar seu ímpeto de continuar procurando. Quando a origem não é visível, urge inventá-la, a partir de imagens que acenem para uma unidade ideal e perdida, ou ideal porque perdida: assim é em Alencar, Iracema, ao erguer o mito da fundação brasileira por meio do consórcio entre o europeu e invasor, e a virgindade bárbara da terra americana.

Ao passarmos do plano mítico-social para o território mais pedestremente lírico-afetivo do romantismo brasileiro, a questão se reveste de matizes interessantes. De um lado, a configuração do consórcio - no caso, a do par amoroso - já é faltosa na origem: sobra mãe e falta pai na lírica romântica, a ponto de podermos classificá-la, num certo sentido, como uma escrita órfã. É o que se lerá na poesia de Casimiro de Abreu, cujas Primaveras, de 1859, representam um padrão correto de nosso romantismo: na melodia mediana de sua lira, os acordes se fazem ouvir com mais nitidez.

De início, destacas-se a caracterização feminizada do corpo do próprio poeta. Feminização propiciada por um conjunto de traços culturalmente atribuíveis à construção da personagem-mulher: languidez, devaneio, passividade, fragilidade física, exacerbação sentimental em detrimento do pensamento analítico - o mundo, em suma, sob a égide do "não suporto mais" e do subsequente desmaio. A marcação de um sujeito lírico por meio de signos que corroboram o esgarçamento do masculino reflete-se em dois outros níveis, além deste primeiro, o da autocaracterização corpórea.

O segundo é de grande evidência e reporta-se ao par primordial (pai/mãe) a que aludimos, e que, conforme foi dito, vigora amputado de um de seus termos. Na sua infância querida, que os anos não trazem mais, o pai só se presentifica na experessão "casa paterna". O Pai divino é figura muito mais constante do que o terreno, embora ambos pareçam partilhar o atributo da impalpabilidade. Num texto em prosa - "A virgem loura" - Casimiro de Abreu afirma: "Não gostaria de voltar à casa - julgaria ouvir o eco de vozes já extintas."

Adiante, o poeta esclarece que se trata do canto da mãe embalando a irmã. No prefácio às Primaveras, registra: "Pareceu-me ouvir o eco das risadas da mana." Em "Meus oito anos", revela "De minha mãe as carícias/ E beijos de minha irmã"; em "No lar": "Oh! primavera! oh! minha mãe querida!/ Oh! Mana anjinho que eu amei com ânsia". Essa profusão de mãe e irmã oscila entre a fronteira da ternura e do tesão, numa fantasmagoria incestuosa a custo disfarçada. Para mascarar a força do desejo, o poeta procura confiná-lo a simples "figura de linguagem". Num poema sintomaticamente intitulado "Sempre sonhos", Casimiro, pelo álibi da metáfora, chega a unir as pontas dos fios materno e fraterno, ao figurar-se como mãe da amante, que, por seu turno, seria a própria irmã: "Eu velara, Senhor, pelos seus dias/ Como a mãe vela o filho"; "A pudibunda virgem do meu sonho/ Seria minha irmã". Aqui o elo sanguíneo fornece uma imagem lateral, metonímica, de Narciso, que se traveste de Édipo para, pelo artifício, amar-se através do amor declarado a um outro que contenha um pedaço de si - mãe, irmã.

O derradeiro nível de desfiguração do masculino ocorre justamente no espaço, em teoria, menos propício a sua eclosão: nos torneios amorosos, sempre (ou quase) dirigidos a um alvo explicitamente feminino - o poeta, anjo sexuado, cobiçando o sexo de outro anjo, a virgem. Nesse quadro idílico, já de início um obstáculo se antepara. Desejar a virgem é desejar o impossível, uma vez que a perda dessa condição implicaria a inexistência do atributo básico que levou o poeta à declaração do seu desejo. Há, implícito, o desejo de que ela não ceda ao desejo dele, para só assim poder permanecer desejada. Toda uma série de circunlóquios, meneios, brejeirices que aparentemente aproximam pouco a pouco o poeta e a amada atuam antes como rituais de afastamento entre ambos, numa espécie de comprazimento ou erotização não do contato, mas do descarte. Ele se aproxima, ela desfalece; ela se aproxima, ele tem medo; ele suplica, e ela lhe concede a dádiva do não. Assédios e acenos, recuos e recusas são compartilhados pelos parceiros, sem que se possa afirmar com clareza quem é o quê nesse jogo. Outras vezes, como em "Pepita", há uma nítida permuta dos papéis masculino e feminino. O poeta diz-se "flor pendida", pede para ser dominado e atribui a Pepita o falo fecundador:

Minh'alma é como a rocha toda estéril

Nos planos do Sará.

/.../

Vem tu, fada do amor, dar-lhe co'a vara...

Qual do penedo que Moisés tocara

O jorro saltará,


- e crê tanto nisso que não

chama a amada de rainha, mas de rei.


Vimos, assim, que o trânsito para a assunção de uma sexualidade feminina não implica forçosamente a configuração de uma prática homossexual, na medida em que o papel masculino é desempenhado pela própria mulher. O que em Casimiro se procura relevar é antes uma indistinção de papéis, em que os anjos - masculinos ou femininos - possam ocupar as posições de ambos os sexos. Confrontemos quatro registros, emparelhados dois a dois. Em "Suspiros": "Lá verás a minha bela/ Sentada no seu jardim/ Na mão encostada a face"; em "Minha mãe": "[Eu] Sentado sozinho co'a face na mão". Em "No lar": "eu chorava e a [a mãe] beijava rindo", e quero "um rosto virgem que ria e chore". Pelos exemplos, indistinguem-se os papéis, porque, a rigor, "ela" sou "eu", ou seja: a mulher será o travesti do poeta, seu duplo feminizado, objeto de desejo narcísico: amar-se através de uma duplicação que contenha ambiguamente a diferença (e o respaldo) de ser outro sexo e a  identidade de ser ele próprio, travestido. Ao criar a amada à sua semelhança, o anjo romântico parece resolver a velha querela teológica: qual o sexo dos anjos? Pelas nossas contas, os anjos não têm sexo: têm quatro - dois anatômicos, o do poeta e o da virgem, e dois sobressalentes, com marcações invertidas; tanto é lícito afirmar que le se feminiza na projeção narcísica sobre a mulher, quanto dizer que ela se masculiniza nessa mesma operação, ao ostentar as marcas identificadoras do poeta homem.

À guisa de conclusão, citemos o poema "Horas tristes", centrado nas lamúrias do poeta solitário e no suposto afã de encontro com uma virgem que lhe restituísse o ânimo de viver. O acesso à felicidade não passa, como se poderia supor, pelo aparecimento da amada, mas por um mecanismo de vampirização, que vitaliza o poeta à proporção em que ele arranca essa força do corpo feminino. Para o poeta sentir-se remoçado, é necessário que a virgem morra em languidez. Para apegar-se à vida, deve aspirar o perfume da mulher. Sem qualquer perspectiva de reciprocidade, o corpo do poeta é um sorvedouro abastecido a partir de sucessivas pilhagens, via metáfora, de tudo aquilo que, no outro, é manancial para recompor suas próprias fissuras imaginárias. À virgem, o poeta só promete amá-la quando for possível, isto é, nunca - ou, quem sabe, numa esfera mais celeste: amar a si mesmo já toma muito tempo, e é amor que exige carinho e dedicação. Em sua trama erótica, o poeta se abeira e contorna o abismo do outro, mas evita o salto arriscado na direção da diferença. Afinal, interessa-lhe mais enunciar o que deseja do que desejar o que enuncia.


Ensaio de Antônio Carlos Secchin retirado da Revista Para saber e conhecer nossa língua, Duetto Editorial, São Paulo, Julho de 2011.

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