terça-feira, 26 de março de 2024

Sequestro Moral

São Tomás de Aquino, teólogo do século 13, adverte que a morte simbólica é pior do que a morte física, pois a primeira convoca a vítima a ser testemunha de seu opróbrio, como ocorre na tortura. Os políticos de direita no Brasil, desprovidos dos recursos de coerção física que a ditadura lhes assegurava, como prisões arbitrárias e assassinatos, introduziram uma nova modalidade em nossa conjuntura: o sequestro moral.

Com requintes de fazer inveja ao Comando Vermelho, os autores do sequestro moral escolhem sempre como vítimas um político em ascensão, na iminência de ocupar o poder que a elite conservadora sempre considerou seu monopólio. Não é preciso agarrar a vítima na rua ou arrastá-la de sua casa. Basta encontrar quem esteja disposto, por dinheiro ou cumplicidade ideológica, vir a público prestar falso testemunho, induzindo a população, através da mídia, a crer que Lula é um pai desalmado ou Brizola vinculado, através de sua filha, ao tráfico internacional de drogas. Confinadas ao acesso restrito aos meios de comunicação, que costumam abrir mais espaço à versão do fato do que à evidência do desmentido, as vítimas são obrigadas a arcar com o prejuízo da dúvida e a pagar um alto resgate para recuperar a boa reputação a que têm direito.

Os autores do sequestro moral são ídolos com pés de barro. Prometem na vida pública uma coisa e fazem outra na privada. Quando a notícia vaza, a preocupação não é apurar responsabilidades, mas avaliar o seu impacto junto à opinião pública. Vox populi, vox Dei, ensinavam os romanos. Se, como os gregos, a população é capaz de absorver as fraquezas dos deuses do Olimpo, deixa-se de lado a ética e reforça-se o princípio de que moral é tudo aquilo que favorece os vencedores. Política é política, amigos, anônimos, escondidos sob as benesses do poder, tramando o desvio de milhões de dólares do patrimônio público para a iniciativa privada. E, no entanto, numa inversão de todos os critérios morais, rola a cabeça de quem teve a dignidade de denunciar a maracutaia, num aviso inequívoco de que devem guardar absoluto silêncio todos aqueles que se locupletam no banquete dos marajás.

A imprensa são os olhos e os ouvidos de uma nação. Mas ela tem o dever de não se calar quando a autoridade constituída extrapola suas obrigações e, em abuso de poder, compromete a reputação alheia. Leviano não é só quem acusa sem fundamento, mas também quem dá à acusação um espaço que não é aberto ao acusado. Talvez manuais de ética sejam hoje mais úteis em certas redações dos meios de comunicação do que tantas coleções de manuais de redação e de estilo, mais apropriadas ao currículo escolar.


Texto de Frei Betto retirado do livro Cotidiano & Mistério, Editora Olho Dágua, São Paulo, 2ª Edição, agosto de 2003. (1ª edição de 1996).

Nenhum comentário:

Postar um comentário