domingo, 10 de março de 2024

Tia Quitéria e os telejornais

Tia Quitéria jamais perde o Jornal Nacional. Às oito da noite em ponto, ei-la à frente do televisor, as mãos úmidas, o coração palpitante, à espera do Cid Moreira. Acredita piamente que o locutor cara-da-Globo se enamorou dela. Tentei convencê-la do contrário. "Observe como me olha; veja como suspira ao me ver aqui!" Não há jeito. Há 25 anos, tia Quitéria flerta com o apresentador global que, nesse quarto de século, trocou os cabelos pretos por brancos, adquiriu rugas, tornou-se menos ágil na fala. Envelhece com a Globo, que já não sabe produzir humor, oferece prato requentado tipo Xuxa, afoga notícias em cosméticos e não se envergonha de sua compulsão governista.

Tarde da noite, minha tia cochila entre agulhas de crochê enquanto aprecio a elegante irreverência de Lilian Wite Fibe. Não é um mero apêndice vivo da emissora nem um simples transmissora de notícias. Tem presença própria e flexão inteligente na voz, o que lhe permite dar um toque crítico, quiçá irônico, às novidades que, na boca de Sérgio Chapelin, ressoam apenas como locução anasalada do texto. Moreira e Chapelin sabem modular a entonação da voz. São ótimos à publicidade. Lilian modula o próprio conteúdo da notícia. Não se restringe a emitir, interpreta, como o fazia Joelmir Betting em seus tempos de Bandeirantes.

Nisso tia Quitéria e eu estamos de acordo: na Globo, Joelmir perdeu a sua marca registrada, a fina ironia articulada em metáforas bem-humoradas. Quitéria lamenta que, agora, ele pouco sorri e já não imprime à voz e aos gestos as flexões de outrora. Engessado pelo padrão global de oficialidade, trocou as estocadas de um pugilista pela calculada postura de árbitro das oscilações da economia.

Quando liga no Bóris Casoy, tia Quitéria afasta a cristaleira. Receia que tamanha corpulência, que ocupa toda a tela tropece em algum fio do estúdio e caia do lado de cá, dentro da sala. Enfático, Bóris transcende as notícias. Livre para opinar, seu moralismo cívico ajuda-nos a cultivar a virtude da indignação e sua parcialidade política faz-nos sonhar com um telejornal que ofereça as várias versões de um mesmo fato.

Por fidelidade ao Cid Moreira, minha tia recusa-se a ir para a cama com o Jô Soares. Notívago, curto o espetáculo. Jô é multimídia. Não anda, baila; não fala, entretém; não pergunta, questiona. Culto e inteligente, informa e forma com a vantagem de possuir talento artístico. Faça sol ou chuva, seu  bom humor se irradia. Jamais o veremos com aquela indisfarçável depressão que contagiou os apresentadores da Globo logo após o caso Ricúpero.

Da Manchete, tia Quitéria comenta que Carlos Chagas jamais envelhece, sequer um fio branco no bigode farto. Professoral, ele daria um bom diretor de escola, diz ela. Não gosto de seu inveterado pessimismo quando se trata de notícias favoráveis aos setores progressistas. "Impeachment de Collor?" exclamou certa feita com seu costumeiro tom interrogativo. E concluiu: "Não passa de sonho de uma noite de verão". Para a felicidade geral da nação, equivocou-se. Minha tia está convencida de que Márcia Peltier é uma princesa sem coroa. Destituída também da emoção, ela não perde o sorriso angelical nem quando fala de tragédia. Se fechar o sorriso, não fica séria, fica triste.

Tia Quitéria acha o Chico Pinheiro com cara de ator de cinema, sem o talento interpretativo de Marília Gabriela, que somatiza a notícia. Ele transmite os fatos de olho no papel. Marília o faz de olho no telespectador. Porém, que se cuide. Minha tia promete que, se Marília enfiar aquela caneta  na cara dela, vai lá no estúdio dar-lhe uns tabefes.

Tia Quitéria tem saudades do rádio antes do advento da televisão. Os locutores não tinham rosto, mas a notícia tinha cara, sotaque, personalidade e aparente neutralidade. Na TV, o visual pasteurizado da maioria do apresentadores deixa a impressão de que eles insistem em se sobrepor à notícia. É o jogo da sedução televisiva fragilizando a informação jornalística. Tia Quitéria é incapaz de se lembrar de uma única notícia transmitida ontem pelo Cid Moreira. Mas adora o modo que ele olha nos olhos dela.


Texto de Frei Betto retirado do livro Cotidiano & Mistério, Editora Olho Dágua, São Paulo, 2ª Edição, agosto de 2003. (1ª edição de 1996).

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