terça-feira, 16 de agosto de 2022

Enquanto o cão espia

    Para evitar que fosse devorado pelo cão, colocaram o gato na grande gaiola branca que pendia do teto presa por uma corrente.

    Entre finas barras e delicadas volutas, moveu-se ele em fúria. Pelo eriçado, orelhas baixas, fustigava o rabo no mínimo espaço, ondulando a cabeça de um lado ao outro, à procura do momento para o salto, da brecha para a fuga. Nem deixou que ninguém dormisse à noite, seus miados estridentes talhando o sono, incendiando o silêncio até o raiar do dia.

    Entretanto, renovado o leite no pires, oferecida a sardinha, pareceu aquietar-se o animal, como se o espaço não lhe fosse mais tão restrito, e um entendimento se fizesse entre ele e sua nova acomodação. Agora, farejava pelos cantos, espiava curioso os detalhes, brincava com a pata na correntinha da portinhola. E à noite, cedo se escondeu atrás das pálpebras a luz verde dos seus olhos.

    Em pouco, o gato parecia feliz com a sua segurança. E, talvez para exercitar os músculos, passou a subir com frequência nos poleiros que haviam pertencido ao antigo ocupante, ali deixando-se ficar quieto durante horas, observando o mundo do alto.

    A família que habitava aquela casa já estava tão acostumada a ver o felino na gaiola, que ninguém se surpreendeu na manhã em que, mais claro o dia ou mais leve a brisa que ondulava a cortina, o gato saltou para o seu poleiro. E, erguendo a cabeça, docemente, começou a trinar.


Crônica de Marina Colasanti retirada do livro Contos de Amor Rasgados, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1986.

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