domingo, 22 de outubro de 2023

O gênio maldito

Negro, boêmio, rebelde, alcoólico, pobre, anarquista, insano. Essas são as credenciais do visionário Lima Barreto, autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma, que o Brasil teima em esquecer.


Em 2017 falaram dele. Esteve em todos os grandes cadernos de literatura ou culturais. Menos por sua obra que pela grandeza do evento que o homenageava, a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) de 2017. De repente, o negro, boêmio, rebelde, alcoólico, pobre, anarquista, internado duas vezes em um manicômio, ganhava o status que sempre mereceu: o de grande escritor brasileiro.

Mas passou. Próximo de completar dois anos quase ninguém mais fala em Lima Barreto. O esquecimento parece uma constante quando o assunto é esse escritor, que com o tom formal do Parnasianismo, antes de os modernistas darem o tom, a partir de 1922.

Neto de escravos e filho de pais livres, nascido no dia 13 de maio de 1881, na mesma data em que sete anos depois a Lei Áurea colocaria um fim na escravidão, Lima abordou o tema a partir de sua própria experiência. Sua obra, nesse sentido, é extremamente autobiográfica.

Affonso de Henriques de Lima Barreto teve uma infância conturbada: a mãe, uma negra livre, morreu quando ele tinha sete anos, a isso seguiu-se a demência do pai, e, segundo um de seus mais célebres biógrafos, Francisco de Assis Barbosa, um acontecimento teria marcado profundamente sua infância de menino mulato, órfão e descendente de escravos: a assinatura da Lei Áurea e os festejos da Abolição, no dia em que completou sete anos. Já não se diria o mesmo de outra data simbólica: o dia 15 de novembro de 1889. Sobre seu significado, o próprio Lima Barreto afirmou, em crônica incluída na obra póstuma Coisas do reino do Jambon, que "via-a com desgosto", acentuando que, com o regime republicano ali inaugurado, o Brasil se tornara "uma vasta comilança"; era "a subida do partido conservador ao poder, sobretudo da parte mais retrógrada dele, os escravocratas de quatro costados".

Não espere de Lima Barreto uma literatura fácil, palatável. Enquanto seu contemporâneo, o enorme Machado de Assis, também negro e de origem humilde, era aclamado pelos críticos por sua literatura elegante e dentro das normas, Lima, com sua escrita à flor da pele negra, com seu vocabulário das ruas, incomodava. É quase possível sentir a textura dos cabelos de seus personagens, sentir a fé que professam, a maneira como vivem, o tipo de habitação. Com isso, Lima Barreto antecipa-se mais de um século e faz uma literatura negra por opção. Ela já falava de feminicídio, corrupção, racismo naquela época. Por isso, sua obra transpira atualidade. Para a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, autora da biografia Lima Barreto: Triste Visionário, lançada junto à FLIP 2017, "... os personagens, nas tramas, em escritos pessoais, a atenção para a questão racial e as descrições dos tipos físicos dos personagens estão sempre em evidência", frisa.

Isso em uma época - o começo do século XX - em que mestiços e negros eram considerados biologicamente mais fracos. Lima vai na contramão do conceito e deixa isso bem claro em seu Diário, em 1904: "A capacidade mental do negro é medida a priori, a do branco a posteriori"


CACHAÇA, LITERATURA E MANICÔMIO


Em 1914, Lima Barreto foi internado pela primeira vez no Hospício Nacional, no Rio de Janeiro, com o diagnóstico de alcoolismo. O branqueamento de algumas celebridades e alguns intelectuais corria solto. Com Lima foi assim: em sua ficha lia-se branco, abaixo sua foto desmentia a descrição. Mas se para alguns isso parecia benéfico, não a ele, que a questão da negritude e de o Brasil ser o último país a abolir a escravidão do mundo foram temas centrais em sua obra.

Recordações do escrivão Isaías Caminha, seu primeiro livro, publicado em 1909, já dizia a que vinha. Ácido, não fazia concessões: atacava a sociedade carioca, e nem mesmo os mandachuvas do jornalismo foram poupados, a ponto de O Jornal do Commercio, o mais influente da época, proibir que se escrevesse uma linha a seu respeito. Em pouco tempo, toda a imprensa seguia o ditame. Portanto, Lima viu-se com o livro embaixo do braço e sem divulgação. Apenas José Veríssimo, um dos maiores críticos e historiadores da literatura brasileira, debulhou-se em elogios para Recordações... Lima Barreto foi fino e retribui-lhe a gentileza indo visitá-lo em sua residência.

Sua obra mais conhecida - e hoje admirada pelos estudiosos -, Triste Fim de Policarpo Quaresma, saiu em 1911. Mas não havia quem quisesse arriscar a editá-lo, fato que só aconteceu em 1915. E dessa vez - talvez graças aos esforços de José Veríssimo - foi bem recebido pela crítica.

O romance foi publicado inicialmente em folhetim pelo próprio Jornal do Commercio, que havia batido a porta em sua cara, anos antes. O protagonista de Triste Fim... é o retrato de um nacionalismo patético e ufanista, ao qual Lima Barreto, ao qual Lima Barreto se opunha veementemente. A história traz uma crítica mordaz à perversão dos ideais republicanos pelos militares e grandes fazendeiros. O maior atingido por esse livro foi o presidente Floriano Peixoto.

O nacionalismo do major Policarpo Quaresma deságua em grande confusão, quando ele é condenado por traição à pátria, crime que ele não cometeu. O subsecretário do Arsenal de Guerra, nacionalista até a raiz dos cabelos, começa a se interessar por tudo que acha genuinamente brasileiro: tocar violão, instrumento marginalizado no fim do século XIX, aprende tupi-guarani, passa a estudar folclore, usos e costumes dos índios. O tupi-guarani o fascina tanto que o subsecretário envia um requerimento à Câmara solicitando que a língua indígena passe a ser oficial no Brasil. É considerado louco, e para em um manicômio.

O mesmo acontece com Lima Barreto. Nem mesmo a boa recepção da crítica e público o tiram do atoleiro em que se meteu: além das dificuldades financeiras, o escritor estava bebendo cada vez mais. E viver de literatura somente nunca foi fácil por aqui: em 1922 foram lançados em folhetim O Chamisco ou O Querido das Mulheres, Entra Senhórr! e no final do ano As Aventuras do Doutor Bogóloff. Para comer , pagar seu aluguel e a conta do bar, trabalhava como amanuense, na Secretaria da Guerra, algo como os escreventes de hoje. Já não estava bem. Ácido, teria proferido: "O Brasil não tem povo, tem público".

Em 1914 começa a ter alucinações. É quando o rebelde acaba internado no manicômio pela primeira vez. Numa e Ninfa foi escrito logo após Lima ter saído do hospício, no final daquele ano, e publicado pelo jornal A Noite, também como folhetim, entre março e julho de 1915. No seu Diário, no começo de 1917, ele relata que está novamente tendo problemas com a bebida. É internado no Hospital Central do Exército devido a contusões obtidas por causa das alucinações e, em 1919, já aposentado do funcionalismo público, volta para o Hospital Nacional dos Alienados, com o mesmo diagnóstico de alcoólico (alcoólatra na época). Dessa vez, suas experiências renderam um retrato ácido e cru sobre as instituições psiquiátricas no Brasil, o livro Cemitério dos Vivos, publicado em 1920.

Em 1922, ano em que as artes no Brasil colocaram tudo de cabeça para baixo, Affonso de Henriques de Lima Barreto morre. Fim do mulato carioca, como era chamado, defensor "das gentes" dos subúrbios, que deixou gravado em seu Diário: "É difícil não nascer branco" e "A raça para os brancos é conceito, para os negros pré-conceito".

É preciso resgatá-lo para sempre.


Texto de Maria Beatriz retirado do revista Língua Portuguesa e Literatura - Conhecimento Prático, Editora Escala, São Paulo, Edição 77, Junho/Julho 2019.

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