terça-feira, 27 de setembro de 2022

Zeppelin em Santa Teresa

    A serra da Carioca vem acabar a leste nesta ponta do morro do Curvelo, onde moro. O Curvelo é um pedacinho de província metido no Rio de Janeiro. Na verdade é uma pequena província. As corografias do Brasil mentem duplamente quando ensinam que o nosso país se compõe de vinte estados. Mentem primeiro porque não se trata de estados, mas de províncias, destituídas de toda autonomia política, como o provou o episódio da última eleição presidencial; mentem segundo porque esquecem a minha provinciazinha do Curvelo.

    Rua sossegada esta, onde pela volta do dia é doce acompanhar o jogo das sombras das fachadas no tabuleiro dos paralelepípedos; as lavadeiras estendem roupa nos paredões que fecham a calçada do lado da perambeira (fica um menino de guarda para dar aviso do aparecimento dos fiscais da municipalidade); a gurizada dos cortiços (naturalmente há um que se chama Buraco Quente) brinca o dia inteiro de gude, que gude!, buraca, pião (bico de aço!), pipa (linha crua!), futebol (a trinca do Curvelo contra a trinca do Cassiano); e pela boca da noite é aqui que todos os namorados das redondezas vêm passear agarradinhos. Todo o mundo sabe da vida dos outros, mas estão acostumados. Dona Júlia diz as últimas a Dona Aninha, Dona Aninha roga pragas, amanhã estão de bem e falando mal da Dona Leonor... A província a dez minutos da avenida Rio Branco. Não é delicioso? E só houve intervenção federal uma vez, quando os comunistas quiseram reunir-se na casa do intendente Otávio Brandão para escolher os seus candidatos à sucessão presidencial às cadeiras do parlamento. Sempre a política estragando o Brasil.

    Desde que começaram a falar na viagem do "Zeppelin" ao Brasil eu fiquei curiosíssimo de ver como o Curvelo reagiria a esse acontecimento empolgante e inédito. Se um simples balão de São João levanta clamores de estádio em momento de gol! Corre daqui. corre ali, as lavadeiras largam da lixívia, as comadres interrompem o fuxico, e os meninos - já sabem:

    - Água-rás! Água-rás!

    Tira a força desse gás!

    ... Às seis e meia ouvi no meu sono um ruído de motor: autocaminhão da ladeira do Cassiano, pensei. Mas de chofre um risco forte na consciência: "Zeppelin!" Pulei da cama e abri a janela. O "Zeppelin" de fato apontava à Barra.

    Antes de vê-lo eu imaginava que não sentiria este alvoroço, tão acostumado estava a ver as fotografias. Em imaginação já o tinha representado tantas vezes em todos os pontos do Rio, - sobre a avenida, para os lados da Tijuca, em cima do meu morro, e sobretudo como eu o via agora, entrando a Barra. Entretanto o espetáculo era perturbantemente inédito, como o do primeiro cometa que vi. Assim que acontece com a mulher por que se está enrabichado. A gente viu cem vezes, mil vezes, duas mil vezes. Sabe de cor. Pois toda vez que aparece é coisa inédita, é coisa nova, é charada novíssima, enfim é "Zeppelin".

    O balão estava dividido em dois pelo cume do Pão de Açúcar. A estranha serenidade disfarçava a velocidade da marcha. Ei-lo agora sobre o canal, a pino da Fortaleza da Laje. Visão de aquário. A Laje, o Pão de Açúcar, Santa Cruz são as pedrinhas do fundo da câmara. Como a água está clara!

    A proporção que o balão avança, a luz modela-o sob todas as faces. Agora de frente é apenas um disco, um escudo cintilante.

    Mas o morro já deu o alarma! Zipilim! Zipilim! Aquele não é balão de São João... Guri nenhum está gritando: "Olha lá um balão-ã-ão!" A palavra que se ouve mais é filha-da-mãe. De repente uma correria danada pelas escadarias acima para ver o bicho do outro lado. Quando chego à porta de casa o balão está atravessando no fim da rua. Confesso que fiquei brutalmente comovido: um Zeppelin por cima da ruazinha tão cotidiana! Também neste momento ela não tem nada de cotidiano. As janelas estão cheias de carinhas e carões estremunhados. Há moças nos telhados. Um grupo de cabras dança em torno de uma vitrola portátil funcionando no meio da calçada... Vão depois falar dos desenhos do Cícero Dias! Na verdade eu estou vendo tudo como nos desenhos de Cícero. Tem um sujeito tocando sanfona trepado numa palmeira da chácara de D. Sebastião Leme! Tem mulheres nuas na platibanda das casas! Tem anjinhos tristes oferecendo rosas ao corpo da mocinha que se matou em Madureira! Tem sujeito jogando tênis com duas bolas! Tem um burro no teto de um bonde em cima dos Arcos!

    Na ponta do terreno baldio na curva do Cassiano a trinca do Curvelo está toda arrumadinha olhando o balão. Mais atenção não é possível. Digo para o "Encarnadinho", treze anos, mulatinho bonito:

    - Vai apanhar o balão, vai!

    Risinho do lado.

    - Não se pode...

    - Por quê?

    - É balão de motô!

    "Piru", dez anos, magricelíssimo, diz que "não adianta" porque o Zeppelin é de alumínio, não se pode dobrar...

    Álvaro - um dia contarei aos senhores a história deste Álvaro, nove anos, ex-entregador de carne de açougue, ex-carregador de marmita, ex-jornaleiro da Noite no Largo da carioca - interpelado por mim não dá confiança e se limita a dizer:

    - Não fala bobagem, Seu Manuel Bandeira!


Crônica de Manuel Bandeira retirado do livro Deixa que eu Conto, série Literatura em minha casa, Global Editora, São Paulo, 2003.

Nenhum comentário:

Postar um comentário