sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Homem pode ser mulher?

     Nós estávamos todos no quartinho dos fundos da casa do Zé Dirceu ensaiando uma peça de teatro para a aula de Língua Portuguesa. Eu, o Zé Dirceu, a Raquel, o Pedrão e o Engasgado (o nome dele não era esse, não: era apelido. Uma vez ele pegou escondido um lanche de um colega e quis comer depressa para não ser descoberto. Aí, já viu... engasgou e ganhou o apelido. O apelido pegou tão bem que hoje ninguém sabe o verdadeiro nome dele).

    Estávamos discutindo e trocando ideias a respeito da distribuição dos papéis. Quem faz o quê? Quem fica com o quê?

    - Eu faço o marido.

    - Eu faço o vendedor.

    O Zé Dirceu, dono da casa, fez biquinho e chantagem:

    - Eu quero é fazer o marido. De todos aqui, eu é que tenho mais jeito de homem.

    - Xiii... lá vem o machão da turma.

    - Que machão, coisa nenhuma! É que eu tenho uma baita cara de bravo!

    - Huummmm... bravinho, hein!?

    - Vamos parar com a brincadeira!

    Resolvi dar um palpite antes que a coisa engrossasse:

    - Tenho uma ideia: cada um escolhe seu papel preferido. A pessoa que escolher um papel e não tiver outro concorrente, já fica com o papel escolhido. O papel que for escolhido por mais de uma pessoa vai pra sorteio. A sorte decide pela gente.

    Pela cara dos meus amigos, percebi que todos tinham aceitado a sugestão. O único que ficou meio assim foi o Zé Dirceu.

    - E se eu não for sorteado para o papel de marido?

    Aí foi a vez do Engasgado falar por nós:

    - Se você não for sorteado, azar o seu. Fica com o papel que sobrar, ora bolas.

    Zé Dirceu tentou negociar:

    - Mas... a casa é minha.

    A Raquel arrematou:

    - Você fica com a casa e nós vamos ensaiar na rua. Está bom assim?

    Acho que isso entupiu a reclamação do Zé Dirceu, pois ele não falou mais nada.

    Fizemos a escolha. Dito e feito: o que todos nós pensamos aconteceu. Sobraram o papel de marido, com duas escolhas: o Zé Dirceu e o Engasgado; e o papel de empregada, sem escolha. Um dos dois ficaria com o papel de marido. O outro... bem, o outro... aí estava o problema: o outro ficaria com o papel de empregada. O sorteio foi feito, sem cambalacho, na frente de todos, com cinco pares de olhos acompanhando tudo, tintim por tintim. Adivinhe o que deu?

        - Engasgado foi sorteado... vai ficar com o papel de marido. Zé Dirceu... pra você sobrou o papel de empregada...

    Imaginem a cara do Zé Dirceu. Nós pensamos que ele fosse estourar. Os olhos brilhando muito, a pele vermelha, o rosto e o peito estufados:

    - Isso nunca!

    Saiu do quartinho dos fundos e entrou em casa. Esperamos mais um pouco e, como ele não deu as caras, fomos embora.

    -Como vamos explicar para a professora?

    - Explicando o que aconteceu, ué!

    - Será que ela vai acreditar?

    - Se não acreditar, paciência!

    Fomos embora. À tarde, teríamos aula e resolveríamos o que fazer. Não dava mesmo para arrumar outro colega, pois a classe inteira já havia sido dividida em grupos.

    Tivemos aula normalmente, cada qual na sua. O Zé Dirceu não falou com ninguém. Ficou jururu o tempo todo. Apenas no fim da tarde deu sinal de vida, mandando um bilhetinho para mim. Abri o papel e li:

Duda, já que vocês insistem e

já que não podem fazer a peça

sem a minha ajuda, avise a

turma que eu aceito ser a empregada.

Amanhã, às 9 horas, no

mesmo lugar.


    No dia seguinte, lá estávamos todos. Com os papéis escolhidos, começamos o ensaio. Foi um quiproquó danado. O Zé Dirceu deu um trabalhão e tanto para fazer o papel de empregada. Mas acabou acertando e dando um jeito.

    No dia da apresentação, ele esteve ótimo. Acho que até que foi por causa dele que fomos tão aplaudidos e convidados a apresentar nossa peça para as outras classes. O Zé Dirceu arrumou uma peruca loira, um sutiã emprestado da mãe, um vestido da irmã e se transformou numa verdadeira mulher. Até voz diferente ele inventou para cumprir bem sua parte.

    Sabe por que eu contei isso?

    Naquela época, eu era menina ainda. Depois cresci, me casei e tive três filhos. Um deles, um menino arteiro pra chuchu, entre uma vidraça quebrada por um chute torto e uma perna machucada por um tombo de bicicleta, de vez em quando resolve vestir minhas roupas para imitar e debochar da irmã mais velha...


Conto de Edson Gabriel Garcia retirado do livro Treze Contos, coleção Conte Outra Vez, Atual Editora, São Paulo, 1988.

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