Nós estávamos todos no quartinho dos fundos da casa do Zé Dirceu ensaiando uma peça de teatro para a aula de Língua Portuguesa. Eu, o Zé Dirceu, a Raquel, o Pedrão e o Engasgado (o nome dele não era esse, não: era apelido. Uma vez ele pegou escondido um lanche de um colega e quis comer depressa para não ser descoberto. Aí, já viu... engasgou e ganhou o apelido. O apelido pegou tão bem que hoje ninguém sabe o verdadeiro nome dele).
Estávamos discutindo e trocando ideias a respeito da distribuição dos papéis. Quem faz o quê? Quem fica com o quê?
- Eu faço o marido.
- Eu faço o vendedor.
O Zé Dirceu, dono da casa, fez biquinho e chantagem:
- Eu quero é fazer o marido. De todos aqui, eu é que tenho mais jeito de homem.
- Xiii... lá vem o machão da turma.
- Que machão, coisa nenhuma! É que eu tenho uma baita cara de bravo!
- Huummmm... bravinho, hein!?
- Vamos parar com a brincadeira!
Resolvi dar um palpite antes que a coisa engrossasse:
- Tenho uma ideia: cada um escolhe seu papel preferido. A pessoa que escolher um papel e não tiver outro concorrente, já fica com o papel escolhido. O papel que for escolhido por mais de uma pessoa vai pra sorteio. A sorte decide pela gente.
Pela cara dos meus amigos, percebi que todos tinham aceitado a sugestão. O único que ficou meio assim foi o Zé Dirceu.
- E se eu não for sorteado para o papel de marido?
Aí foi a vez do Engasgado falar por nós:
- Se você não for sorteado, azar o seu. Fica com o papel que sobrar, ora bolas.
Zé Dirceu tentou negociar:
- Mas... a casa é minha.
A Raquel arrematou:
- Você fica com a casa e nós vamos ensaiar na rua. Está bom assim?
Acho que isso entupiu a reclamação do Zé Dirceu, pois ele não falou mais nada.
Fizemos a escolha. Dito e feito: o que todos nós pensamos aconteceu. Sobraram o papel de marido, com duas escolhas: o Zé Dirceu e o Engasgado; e o papel de empregada, sem escolha. Um dos dois ficaria com o papel de marido. O outro... bem, o outro... aí estava o problema: o outro ficaria com o papel de empregada. O sorteio foi feito, sem cambalacho, na frente de todos, com cinco pares de olhos acompanhando tudo, tintim por tintim. Adivinhe o que deu?
- Engasgado foi sorteado... vai ficar com o papel de marido. Zé Dirceu... pra você sobrou o papel de empregada...
Imaginem a cara do Zé Dirceu. Nós pensamos que ele fosse estourar. Os olhos brilhando muito, a pele vermelha, o rosto e o peito estufados:
- Isso nunca!
Saiu do quartinho dos fundos e entrou em casa. Esperamos mais um pouco e, como ele não deu as caras, fomos embora.
-Como vamos explicar para a professora?
- Explicando o que aconteceu, ué!
- Será que ela vai acreditar?
- Se não acreditar, paciência!
Fomos embora. À tarde, teríamos aula e resolveríamos o que fazer. Não dava mesmo para arrumar outro colega, pois a classe inteira já havia sido dividida em grupos.
Tivemos aula normalmente, cada qual na sua. O Zé Dirceu não falou com ninguém. Ficou jururu o tempo todo. Apenas no fim da tarde deu sinal de vida, mandando um bilhetinho para mim. Abri o papel e li:
Duda, já que vocês insistem e
já que não podem fazer a peça
sem a minha ajuda, avise a
turma que eu aceito ser a empregada.
Amanhã, às 9 horas, no
mesmo lugar.
Zé
No dia seguinte, lá estávamos todos. Com os papéis escolhidos, começamos o ensaio. Foi um quiproquó danado. O Zé Dirceu deu um trabalhão e tanto para fazer o papel de empregada. Mas acabou acertando e dando um jeito.
No dia da apresentação, ele esteve ótimo. Acho que até que foi por causa dele que fomos tão aplaudidos e convidados a apresentar nossa peça para as outras classes. O Zé Dirceu arrumou uma peruca loira, um sutiã emprestado da mãe, um vestido da irmã e se transformou numa verdadeira mulher. Até voz diferente ele inventou para cumprir bem sua parte.
Sabe por que eu contei isso?
Naquela época, eu era menina ainda. Depois cresci, me casei e tive três filhos. Um deles, um menino arteiro pra chuchu, entre uma vidraça quebrada por um chute torto e uma perna machucada por um tombo de bicicleta, de vez em quando resolve vestir minhas roupas para imitar e debochar da irmã mais velha...
Conto de Edson Gabriel Garcia retirado do livro Treze Contos, coleção Conte Outra Vez, Atual Editora, São Paulo, 1988.
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