terça-feira, 14 de novembro de 2023

Grato pela Compreensão

Obrigado, thank you, gracías, grazie. As diferentes palavras e expressões utilizadas ao redor do mundo para agradecer indicam diferentes graus de gratidão. Saber o que cada agradecimento significa ao pé da letra pode ser uma forma de compreender como os povos lidam com esse sentimento


A preocupação pela etimologia é um dos legados do pensamento medieval. Quando S. Isidoro de Sevilha escreve, em torno do ano 600, a primeira enciclopédia da história, ela é precisamente os 20 livros das Etimologias. Lá se diz que, sem a etimologia, não se conhece a realidade e, com ela, mais rapidamente atinamos com a força expressiva das palavras.

Exageros medievais à parte, o fato é que as palavras têm um potencial expressivo muito maior do que nós - tão familiar e automático é o uso que delas fazemos - possamos imaginar. Quando a filosofia se volta para a linguagem comum, não está praticando um procedimento periférico, mas atingindo algo de muito essencial, pertencente ao próprio núcleo da reflexão filosófica.

Não é de estranhar, portanto, que num clássico medieval como Tomás de Aquino encontremos uma filosofia comprometida com a linguagem; no século 13, quando estão se consolidando as línguas nacionais.

Relacionemos o pensamento de Tomás com as formas de gratidão em diversas línguas: thanks, gracias, obrigado, etc. Essas formas remetem a aspectos e níveis diferentes de agradecimento: o próprio Tomás chama a tenção para o fato de que nossas palavras só alcançam fragmentariamente (divisim) a realidade, que, além de complexa, supera em muito nossa capacidade intelectual. E é diferente o gancho, o aspecto, o caminho pelo qual cada língua acessa uma determinada realidade: o mesmo objeto que me protege contra a água ("guarda-chuva") produz uma sombrinha (umbrella).

Daí que, diz Tomás na Suma Teológica, "línguas diferentes expressam a mesma realidade de modo diverso." E, prossegue, referindo-se à gratidão: "A gratidão se compõe de diversos graus. O primeiro consiste em reconhecer (ut recognoscat) o benefício recebido; o segundo, em louvar e dar graças (ut gratias agat); o terceiro, em retribuir (ut retribuat) de acordo com suas possibilidades e segundo as circunstâncias mais oportunas de tempo e lugar" (II-II, 107, 2, c).


Graus de Gratidão


Assim, há línguas que expressam a multifacética realidade da gratidão, tomando-a no nível 1: o do reconhecimento do agraciado. Aliás "reconhecimento" é mesmo um sinônimo de gratidão. Etimologicamente, na língua inglesa to thank (agradecer) e to think (pensar) são a mesma palavra. Ao definir a etimologia de thank o Oxford English Dictionary é claro: "The primary sense was therefore thought". E, do  mesmo modo, em alemão, zu danken (agradecer) é originariamente zu denken (pensar).

Muito compreensível. Só é agradecido quem pensa, pondera, considera a liberalidade do benfeitor. Quando isto não acontece, surge a justíssima queixa: "Que falta de consideração!". E fórmulas agressivas de falta de gratidão como: "você não fez mais do que a sua obrigação!" (ministerium tuum est) são já bastante antigas.

Tomás também faz notar que o máximo negativo é a negação do ínfimo positivo (a última à direita de quem sobe é a primeira à esquerda de quem desce...) e, portanto, falta de reconhecimento, o ignorar, é a suprema ingratidão.

Já a formulação latina de gratidão, gratias ago, que se projetou no italiano, no castelhano (grazie, gracias) e no francês (merci, mercê, derivado de merces, salário, que tomou no latim tardio o sentido de "favor", "graça") é relativamente complexa. S. Tomás diz (I-II, 110, 1) que seu núcleo, "graça" comporta três dimensões:

1) obter graça, cair na graça, no favor, no amor de alguém que, portanto, nos faz um benefício;

2) graça indica também dom, algo não devido, gratuitamente dado, sem mérito por parte do beneficiado;

3) a retribuição, "fazer graças", por parte do beneficiado.


No tratado De Malo (9,1), acrescenta-se um quarto significado de gratias agere: o de louvor; quem considera que o bem recebido procede de outro, deve louvar.

Nas expressões de gratidãp aqui expostas - em inglês, alemão, francês, espanhol, italiano e latim - ressalta-se o caráter profundíssimo de nossa forma: "obrigado" (infelizmente, nestes últimos anos, no Brasil, "obrigado" vem sendo substituído pelo insosso "valeu!"). A formulação portuguesa, tão encantadora e singular, é a única a situar-se, claramente, no nível 3, o mais profundo da gratidão: o do vínculo (ob-ligatus), da obrigação, do dever de retribuir.


"Raridade"


Podemos, ainda, analisar a riqueza de sugestões que se encerra na forma japonesa. Arigatô remete aos seguintes significados primitivos: "a existência é difícil", "é difícil viver", "raridade", "excelência (excelência da raridade)". Esses dois últimos sentidos são claros: num mundo em que cada um só pensa em si, a excelência e a raridade salientam-se como característica do favor. Mas, "dificuldade de existir" e "dificuldade de viver", à primeira vista, nada teriam que ver com o agradecimento. No entanto, S. Tomás ensina (II-II, 106, 6) que a gratidão deve - ao menos na intenção - superar o favor recebido. E que há dívidas por natureza insaldáveis: de um homem em relação a outro, seu benfeitor, e sobretudo em relação a Deus.

Nessas situações de dívida impagável - tão frequentes para a sensibilidade de quem é justo - o homem agradecido, obrigado a retribuir, sente-se embaraçado e faz tudo o que está a seu alcance, tendendo a transbordar-se num excessum que se sabe sempre insuficiente.

Arigatô aponta assim para o terceiro grau de gratidão, significando a consciência de quão difícil se torna a existência (a partir do momento em que se recebeu tal favor, imerecido e, portanto, se ficou no dever de retribuir, sempre impossível de cumprir...)


Texto de Jean Lauand retirado da edição especial Etimologia 2011, da Revista Língua Portuguesa, Editora Segmento, São Paulo, 2011.

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