quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Muito além do "parabéns"

Em ocasiões alegres e festivas, como aniversários e promoções no emprego, por exemplo, é comum felicitar alguém com um "parabéns", às  vezes dito de forma quase automática. Mas o que as raízes dos votos de felicitação têm a dizer sobre a maneira como encaramos a felicidade alheia?


Uma das metáforas mais frequentes nos meios culturais é "resgatar". Fala-se em resgatar não só reféns ou vítimas de enchentes, mas também as raízes culturais, a autoestima etc. Modismos à parte, parece-nos oportuno esse uso do "resgatar" quando se descreve algo que ocorre no filosofar. Pois a tarefa de filosofar é, em boa medida, um resgatar.

Pelo menos essa é a posição de tantos filósofos que, de Platão a Heidegger, voltam-se para a linguagem comum, procurando recuperar as grandes experiências humanas que "desceram" a ela e nela acabaram por se depositar.

Pois essas expectativas, vívidas intuições que o homem tem sobre si mesmo e o mundo, brilham por um momento na consciência e depois vão se desvanecendo, desaparecem. Ficam invisíveis, como que escondidas num depósito: são "raptadas" pela linguagem, a linguagem comum: essa que falamos e ouvimos todos os dias.

Assim, frequentemente, as palavras têm um potencial expressivo muito maior do que supomos à primeira vista, tão familiar e quase automático é o uso que delas fazemos. Daí a atenção do filósofo para os modos de dizer, as sutilezas da linguagem comum e, em particular, a etimologia, como caminho "de volta", de ascensão para o sentido originário da experiência, que em linguagem se depositou.

Como é bem sabido, é nessa linha - a de buscar - "o que dizem as palavras na experiência originária de pensamento", levando ao extremo as análises etimológicas (entre outras) - que se situam as análises de Heidegger, que chega a afirmar: "o acesso à essência de uma coisa nos advém da linguagem" (Ensaios e Conferências, Petrópolis, Vozes, 2001, p.126).

Quando transcendemos o âmbito protocolar das formalidades e da praxe, os votos de felicitação: "Parabéns!" (e seus irmãos em outras línguas: em espanhol ¡Enhorabuena!, o inglês Congratulations!, o italiano Auguri!), vemos que eles trazem em si diferentes e complementares indicações sobre o mistério do ser e o do coração humano. O que significam exatamente essas formulações? O que realmente queremos dizer, quando dizemos parabéns ou congratulations etc? Todas essas expressões trazem em si um profundo significado, por assim dizer, "invisível a olho nu".


Felicitações


Comecemos pela fórmula castelhana: ¡Enhorabuema!, literalmente "em boa hora". Enhorabuena indica que um determinado caminho (os anos de estudo que desembocaram numa formatura, o árduo trabalho de montar um empresa que se inaugura etc) chega, nesta hora, em que se dão as felicitações, a seu termo: está é que é a hora boa, ¡enhorabuena! Precisamente o fato de ser a hora da conclusão é que a torna uma boa hora. A sabedoria dos antigos fala-nos da "hora de cada um", de horas boas é más. Mas a hora boa, a hora melhor é a da conclusão, a da consumação da obra, a do bom termo do caminho, a hora do fim, que é melhor do que a do começo: "Melior est finis quan principium" (Ecl. 7,8), diz a Bíblia.

Já a formulação inglesa,  também presente no alemão e em outras línguas, congratulations, expressa a alegria compartilhada pelo bem do outro, com quem nos con-gratulamos, isto é, nos co-alegramos. Essa comunhão na alegria é sugerida também pela forma depoente dos verbos latinos gratulor e congratulor. A forma depoente está a indicar que a ação descrita no verbo não é ativa nem passiva: mas uma ação que, exercida pelo sujeito, repercute nele mesmo. Ou seja, no caso, que a alegria que externamos ao felicitar tal pessoa é também, a título próprio, muito nossa.

O árabe mabruk lembra o caráter de bênção daquele dom pelo qual felicitamos alguém. O italiano, auguri, auguri tanti!, anuncia (ou enseja) que este bem celebrado é só prenúncio, prefiguração, augúrio de outros ainda maiores que estão por vir. E o mesmo se dá com a forma americana mais recente: Way to go!

Com a encantadora forma nossa, "Parabéns!", estamos expressando precisamente isto: que o bem conquistado, que a meta atingida seja usada "para bens". Em nossa herança cultural do cristianismo medieval (em séculos de acirradas disputas sobre o tema do mal), o mal não tem existência própria, por si; ele é antes uma distorção do bem. Pois, qualquer bem obtido pode , como todo mundo sabe, ser empregado para o bem ou para o mal, para a autorrealização ou para autodestruição: pensemos no caso de um amigo que ganha a medalha de ouro de tiro ao alvo, ou se elege deputado, ou tira a carta de motorista, ou obtém o diploma de advogado. É evidente que essas conquistas - em si boas - podem também ocasionar-lhe muito mal, podem ser para males.

Como também, o dom fundamental da vida (que pode muito bem ser pervertido em oprimir, explorar e prejudicar o próximo...) e que é precisamente celebrado com votos de para-béns...


Texto de Jean Lauand retirado da Revista Língua Portuguesa Especial - Etimologia 2011, Editora Segmento, São Paulo.

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