domingo, 12 de novembro de 2023

Objeto Sexual

Batizar coisas do mundo como sendo feminino ou masculino está longe de ser casual e atua sobre a perspectiva que os falantes adotam no seu dia-a-dia


As coisas têm sexo? A faca é feminino e o garfo é masculino? Por que "manhã", "tarde" e "noite" são femininas e "dia" masculino? O sol é figura máscula e alua, delicada como uma donzela? A bondade é mulheril, como a sinceridade e a virtude, ao passo que o ódio, o desprezo, o vício têm bigode e voz grossa?

Evidentemente, essas e outras realidade são assexuadas, mas a associação entre gênero masculino e sexo masculino e entre gênero feminino e sexo feminino encontra-se tão arraigada em vários idiomas que, pensando no caso do sol, chega-se ao ponto de algumas narrativas imemoriais relacionarem o desaparecimento do sol atrás do horizonte à morte de heróis viris como Sansão e Hércules. O próprio Cristo é visto como o Sol da verdade, o homem que redime a humanidade (ao passo que sua Mãe é a Lua, cujo brilho depende do Sol).

Até onde tal distribuição de gêneros é arbitrária ou casual? Em que medida é fruto da nossa capacidade de interpretar e recriar o inanimado, emprestando-lhe características humanas?

Rodrigues Lapa, em seu Estilística da Língua Portuguesa, atenta para o fato de que, a par do masculino, criaram-se formas femininas para seres insexuados: saco-saca, poço-poça, barco-barca, cesto-cesta... Observa o autor que, "de um modo geral, o masculino representa maior grandeza no sentido do comprimento, o feminino maior grandeza no sentido da largura". De modo que a saca, em comparação com o saco, seria mais larga e comprida, útil como bolsa de compras. Ao contrário de poço, a poça seria uma depressão pouco profunda. A barca seria uma embarcação de fundo raso em contraste com o barco. E assim por diante.

Essa hipótese baseia-se em outra suposição. A de que, na civilização portuguesa, o homem seria visto como figura alta e esbelta, e a forma física feminina seria mais baixa e larga. Daí que as realidades masculinas ou femininas  guardassem semelhanças com o perfil corporal de varões e mulheres. A explicação, porém, não recobre todas as situações. A problemática em análise é mais complexa e misteriosa.


Diálogo de línguas


Outro ponto intrigante nessa complexa repartição de gênero é que as diferentes línguas nem sempre coincidem na hora de classificar a "sexualidade" daquilo que não tem sexualidade. Morte é feminina em latim, francês, espanhol e português, e por isso José Saramago, no romance As Intermitências da Morte, apresenta-a como uma mulher que chega a ter relações sexuais com um homem.

Por outro lado, a morte é masculina no grego antigo (thánatos) e em alemão (der Tod). O título de um livro de Colin Dexter, Death is Now my Neighbour, recebeu em terras alemãs a tradução Der Tod is Mein Nachbar, literalmente: "o morte é o meu vizinho", lembrando que Nachbar é o vizinho-homem e Nachbarin, a vizinha-mulher.

Se em princípio nada parece justificar a ligação de realidades não-humanas com a masculinidade ou a feminilidade (não me refiro aos animais e plantas), sentimo-nos inclinados, no entanto, dependendo da nossa cultura e do nosso idioma, a assumir como "natural" o fato de, por exemplo, o mar ser entidade masculina, em português, e feminina, em francês - la mer. "O mar está zangado", costumamos dizer, e visualizamos um homem nervoso, inquieto. E a poeta Olga Savary declarou: "Mar é o nome do meu macho."

Na língua francesa, porém, Júlio Verne escreveu em Um Capitão de Quinze Anos: "la mer était plus furieuse encore", fúria feminina, mulher espumando de raiva. E o ator Jean Reno, comentando em entrevista sua experiência no filme Imensidão Azul, de Luc Besson, faz o comentário tipicamente francês: "Mar é uma mulher que olha para você..."

Essa diferença com relação ao sexo do mar, no nível poético, mas também psicologicamente falando, levaria um homem francês, a dizer que mergulhou no mar-mulher, e uma mulher brasileira a afirmar que a mar-homem a invadiu... A propósito, se falar e criar imagens são ações mais ou menos simultâneas, seria um exercício artístico interessante trabalhar outras dissonâncias de gênero entre português e francês. A noite é masculina: le soir. O medo é feminino: la peur. A cama é masculina: le lit. O quarto é feminino: la chambre. A ponte é masculina: le pont. O calor é feminino: la chaleur.

Os falantes do inglês, mais pragmáticos, ou talvez mais realistas, não masculinizam nem feminizam o mundo ao seu redor. Deixam que a realidade seja interpretada, nesse aspecto, pela sensibilidade individual. Assim, voltando ao mar uma vez mais, são admissíveis em inglês as duas possibilidades: "the sea is a woman in love" (como no verso de uma poeta norte-americana iniciante), ou "the sea is a man".

Ainda sobre o mar, é curioso, como nos conta Eduardo Galeano em O Livro dos Abraços, que os pescadores de língua espanhola, contrariando o uso recomendado pelo dicionário ("el mar"), prefiram falar, e os poetas Antônio Machado e Rubén Darío adotavam o mesmo arcaísmo, "la mar", pois experimentaram na própria pele que ela, com suas ondas e seus mistérios, é mulher...


Ressonâncias cotidianas


Embora, do ponto de vista estritamente gramatical, as formas do masculino ou do feminino nem sempre se achem tão vinculadas assim à polaridade dos sexos - haja vista os substantivos sobrecomuns, com "a testemunha" e o "carrasco": por vezes o carrasco é a mulher, por vezes o homem é a testemunha -, é inegável que, nos muitos casos dos seres insexuados, a associação entre gênero e imaginária sexualidade tem sua ressonância na arte, na religião, no falar cotidiano.

No falar cotidiano, a humanização (e sexualização) das coisas quase passa despercebida, mas é sinal inequívoco de que, como seres criativos, projetamos na realidade nossa imagem e semelhança, ainda que em culturas diferentes diferenças se verifiquem nessa projeção.

As consequências dessas discrepâncias linguísticas, simples que sejam, expressam e atuam sobre a cosmovisão dos falantes. Leite é masculino em português e feminino em espanhol: la leche. O que permite especular que no leite feminino está mais visível a sua dimensão de leite materno, de alimento primeiro, ligado ao amor e à doação de vida. A expressão espanhola "tener mala leche" indica a ideia de que os maus sentimentos e o mau caráter de uma pessoa provêm "do berço", por assim dizer.

Já no leite masculino vem ao primeiro plano o leite como produto, como alimento rico, nutritivo e universal, e como base para outros alimentos: queijo, manteiga etc. O brasileirismo "esconder o leite" refere-se a omitir informações valiosas, particularmente a existência de posses e bens que o interessado oculta para preservar sua intimidade.

Um último exemplo. Se o sol é masculino para nós, e evoca imagens de força e heroísmo, para os alemães é feminino (die Sonne) e é visto como mãe de outros planetas, destacando-se seu caráter gerador e protetor. Se a lua é feminina para nós, simbolizando a mulher (Catulo da Paixão Cearense escreveu: "A Lua é mulher, Senhores!/ E, sendo mulher, encanta!/ Mas, sendo mulher, varia!"), para os alemães é masculina (der Mond), e daí que a considerem o amigo dos apaixonados insones.

A rigor, seres destituídos de sexualidade deveriam ser classificados como neutros, mas a realidade é que a herança recolhida pelos idiomas indo-europeus inclui diferenciá-los por sua suposta sexualidade. Saber lidar com essa herança pode proporcionar prazerosas descobertas antropológicas e poéticas.


Texto Gabriel Perissé retirado da Revista Língua Portuguesa Especial - Sexo & Linguagem, Editora Segmento, São Paulo, Ano I, Junho 2006.

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