sábado, 11 de novembro de 2023

A fala que só pensa naquilo

Adoração secular ao macho marcou a cultura ocidental e está cravada na origem de muitas palavras e formas de expressão cotidianas


A linguagem pode confinar os papéis sexuais. O mero uso da palavra homem como sinônimo da espécie teria, dizem os linguistas, sua cota de exclusão. "Homem" nomeia a humanidade. "Mulher", só um tipo de sexo. Há um controle masculino da linguagem. Como ele se expressa?

Muito da linguagem cotidiana enfatiza o órgão sexual masculino, por exemplo. A vida é um "jogo duro". Se você for eficiente, "mata a pau". Se mostra firmeza, "dá com o pau". Algo nos "torra o saco" ou é um "chute no saco", pois, ao ser praticado por outro, nos incomoda: o enunciador é da primeira pessoa ("nós", "eu"). Já a enunciação "puxa o saco" refere-se à terceira pessoa (o bajulador). O enunciador é, nos dois casos, passivo ("o meu saco é o alvo") e sempre o mesmo, mas a posição de onde se fala muda, partidária do macho que enuncia.

As condições de existência de um enunciado que exala  masculinidade muda com as épocas e culturas. A ênfase masculina na Antiguidade grega não é a mesma da era do Viagra, nem a afirmação do homem pela linguagem tem o mesmo significado na tradição árabe, nórdica ou brasileira. Mas um idioma cristaliza o modo mais comum de pensar de uma comunidade ao longo do tempo. É uma construção que dada cultura sedimenta, até o ponto de não se saber mais o real vínculo de palavras e sintaxes com o pensar dominante.

A potência fecundante foi uma determinante cultural da Antiguidade. A reafirmação do falo era uma meta em vários campos de cultura e linguagem, como a egípcia, a grega e a romana. Ao órgão viril se dedicava sincera adoração. Intuía-se que a divindade era responsável pelo sucesso conjugal, pela fecundidade e fartura da natureza. A vida em campos e florestas, fontes, hortas e jardins dependia dos humores, potências e prazeres da natureza.


Potência antiga


O termo grego phallós (que passou para o latim como phallus, membro viril) nomeava o estandarte religioso usado nas festas a Dionísio, o deus do vinho. Estátuas de Hermes com ereção decoravam as fachadas de casas, e sátiros com genitais enfeitavam vasos e taças. Uma das kômos (procissões jocosas) gregas, tradição religiosa que deu origem à palavra "comédia", era escoltada pela escultura de um falo. No século 2º da nossa era, kaulós (tubo) era palavra-padrão para pênis (a metáfora do pênis como "pau" é antiga: kaulós é matriz do português "caule").

Vítima do invejoso irmão Tífon, príncipe Osíris é morto e esquartejado. Sua mulher Ísis reúne os restos do marido, mas não acha as partes pudentas. A elas Ísis presta tributo. Quando a viúva morre, os egípcios incorporam o casal às suas divindades. A representação do falo de Osíris era levada em solenidades e cerimônias, símbolo das energias sexuais. Como tal, passou a ser considerado como imagem do Sol, princípio do fogo e poder gerador e fecundo do Universo.

"Alterada e difundida entre os fenícios, a adoração a Osíris espalhou-se pelos moabitas [Rute, da Bíblia, era moabita, uma estrangeira em Israel] e madianitas", dizem M. Barre e César Famin em Museu Secreto de Nápoles (1934). Em sua adoração, chamavam o falo de Belfegor (deus nu), cujo equivalente mifeletzeth chegou a ser traduzido como "priapo". Venerada depois pelos lavradores e pastores de Lampsaco (na costa asiática, hoje Lâpseki, na Turquia), sob o nome de Priapus, ganhou a cultura greco-romana como filho de Afrodite e Dionísio. A deusa da procriação e da beleza se unira ao deus da vida. Veio Priapus. Feio, fofoqueiro, sexualmente disforme, barrigudo, Priapus cresce malvisto no Olimpo e termina exilado na Terra.

É deus fértil e viril, com falo monumental e ereto. Era proteção contra a esterilidade de colheitas e pessoas. As mulheres penduravam falos de bronze ou pedra no pescoço e usavam amuletos fálicos (vem daí o símbolo da figa). Monumentos fálicos (os obeliscos) tomavam as vias públicas.

Com o triunfo do Cristianismo e a aniquilação dos rituais pagãos, a adoração ao falo decaiu, mas antigos ritos libidinosos ficaram no DNA de muitas palavras. O falo deixou de ser um dado religioso, mas virou um conceito linguístico e cultural, não só biológico.

A linguagem cotidiana, ainda hoje, expressa inveja do pênis, do falo como objeto de culto e do homem como signo do que há de viril, fecundo e positivo no mundo.

Hoje, muito do que está relacionado ao tamanho (ao mais, ao maior) tem um valor para o universo masculino e outro para o feminino. "Pistolão" é o poderoso. "Pistoleira", a prostituta. "Homem público" é o político; "mulher pública, a prostituta. "Homem da rua" é sinônimo de "vagabundo". Já "mulher da rua" é a meretriz, também "vagabunda". "Peitudo" é homem de coragem, mas seu feminino é pejorativo. Ter o pé grande é masculino, mas na mulher denegre a lésbica, o não-homem que se passa por tal, o sapatão.


Geração Viagra


Os especialistas sabem que o homem ocidental sofreu com as configurações discursivas das últimas décadas, como o feminismo, por exemplo. Convive-se mais do que há 50 anos com práticas discursivas menos ligadas ao patriarcalismo convencional. A própria representação do homem mudou.

Mas para homem e mulher, continua traumático encarar outo ser do sexo oposto como ser humano diferente, não pior. A tentação de confortar-se mutuamente ao denegrir o sexo oposto (uma prática masculina de séculos) ainda é uma tônica mesmo no universo feminino.

Reproduz-se, na linguagem, a hierarquia imposta: se "todo homem é igual", "só pensa naquilo", "o que é do homem o bicho não come", "com a dona patroa não se brinca", "homem não faz amizade com mulher", "mulher só consegue ser amigo de gay", sentenças generalizadoras, por si mesmo carregadas de preconceito, pois abafam as nuanças, as possibilidades de comportamentos não gramaticalizados pelo senso comum, a diversidade da mente e das sensações humanas.

O discurso masculinizante rearticula-se, com isso, incorporando o outro, mas ao mesmo tempo subordinando-o. A mulher é quem pega no pé do parceiro, é natural também que o homem cace todo rabo de saia. Nada é assim tão "natural" à "essência" do homem ou da mulher. A linguagem é ao mesmo tempo expressão, veículo, lembrança do lugar que uma cultura idealizou para o macho, mas também projeta aquilo que ele é e se propõe ser, cada vez que um homem fala ou se expressa.


Texto de Luiz Costa Pereira Júnior retirado da Revista Língua Portuguesa Especial - Sexo & Linguagem, Editora Segmento, São Paulo, Ano I, Junho 2006.

Nenhum comentário:

Postar um comentário