domingo, 3 de abril de 2022

O amor, tatuagem da escrita

    "A palavra escrita é como uma tatuagem", afirmou Lygia Fagundes Telles, em 1968, num frio inverno curitibano, à estudante que então eu era. E acrescentou, depois de um gole de café fumegante, "escrever é um ato de amor". Duplamente amoroso, portanto, é o gesto que compôs esses contos*, o gesto de uma escritura do amor.

    O amor serve, como proclamou Sócrates, para "engendrar uma multidão de belos e magníficos discursos" (Banquete). E também, como poderemos constatar com esta coletânea*, para gerar uma reflexão. O amor que enfeixa esses contos constitui um desafio para o leitor, pois compreende a variada gama do afeto humano como investimento poético. O sentimento pelo outro e o sentimento pela escrita encontram-se aqui confundidos, marcando o espírito com os sentidos do corpo e da fala.

    O tema amor exigiu que a vocação poética da autora esmiuçasse as almas de suas personagens sem cansaço, cobrando-lhes a vida na letra. E exige que o leitor seja testemunha do embate aflitivo em que vive o amoroso, obscurecido pela paixão, já que o amor está excluído da lógica, mas iluminado pelo discurso que o define. Disposto no inferno, enfim, que o amoroso habita na tradição literária ocidental, principalmente a partir do Werther, de Goethe ("Nós somos nossos próprios demônios, nós nos expulsamos do nosso paraíso."). Amor feito de sonho e realização, amargura e destruição, ganho e perda, alegria e luto -  convulsões expostas numa tessitura poética econômica e de linguagem eficaz, em que os elementos simbólicos ora desabam pesadamente sobre o leitor, ora envolvem-no com a leveza da ternura.

    Para Lygia Fagundes Telles, a ficção é uma prática de questionamento dos limites da verdade aparente. Seus contos especulam a superfície do real, arranham-lhe o contorno em busca do âmago dos sentimentos. Sua percepção aguçada, multifacetada lente que, como um caleidoscópio, constrói e destrói num mesmo movimento a conturbada corrente da consciência, desvela o comportamento humano à saciedade do signo. Mesmo que para tanto tenha de violar cruelmente a intimidade do pensamento ou afagar docemente o mais obscuro desejo. Importa a transparência do jogo narrativo que o leitor, enfeitiçado, acompanha.

    Sai-se de seus contos com uma sensação de inquietação, um estranhamento causado pelo comprometimento da narrativa com a realidade da consciência desvelada, posta às avessas na pele do texto. O acontecimento discursivo é o  acontecimento da consciência; na trama, pouco a pouco vão ganhando contorno os obscuros meandros do pensamento, o interminável enredamento de associações, como borboletas capturadas em teias de aranha. O passado fantasia o encadeamento do presente, o presente é carregado de transcendência, tudo exposto nos tensos nervos dos signos. A palavra é a consciência da vida se construindo, já que, como afirmou Clarice Lispector, "atrás do pensamento não há palavras: é-se" (Água Viva).

    Em cada texto, a condução narrativa de Lygia Fagundes Telles pouco a pouco vai atingindo o centro de uma realidade que se desfolha continuamente, verdade fugidia, como fugidios são os sentimentos. As vidas se torcem e retorcem como fios de um bordado infindo, enredadas nos referentes concretos que depois vão se mostrando como símbolos do desejo e da vontade (as cerejas ornamentais num decote, a chave, um saxofone, a estrutura da bolha de sabão, um colar de falsas pérolas ), balizas para a compreensão da estrutura factual, objetos conceituais, revelações de uma inferioridade que se expõe a contragosto, surpreendendo o instante de convulsão das personagens e desafiando sua realidade.

    Saímos desses contos maravilhosos com a agilidade linguística com que a autora esgarça os véus que cobrem a intimidade dos sentimentos e com a capacidade que tem sua linguagem de nos tatuar indelevelmente.


Texto de Sônia Régis, professora de Semiótica e Literatura da FAAP e da PUC de São Paulo. Posfácio do livro Oito Contos de Amor, de Lygia Fagundes Telles, Editora Ática, 1996.

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