quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

A Casa da Flor

    No ano de 1888 acabou a escravidão no Brasil. Muita gente que era escrava na cidade foi embora pra roça. E muita gente que era escrava na roça foi embora pra cidade.

    Era ótimo viver livre.

    Seu Benevenuto, por exemplo, foi para São Pedro D'Aldeia, no Estado do Rio de Janeiro, perto da formosa Cabo Frio. Tinha economizado um dinheirinho e comprou uma terrinha. Os filhos dele, que andavam espalhados, também foram para lá. Eram sete. Como depois ele teve mais cinco, ficaram doze.

    Trabalhavam em quê? Os filhos homens, na roça: milho, café, abóbora, batata... As mulheres, mais a mãe, fazendo panelas e potes de barro para vender. Antes do sol nascer você já as via queimando os objetos numa coivara de lenha.

    Um dos filhos se chamava Gabriel. Parecia com os irmãos em várias coisas. Tinha, como os outros, os olhos bem redondos, os beiços cheios, a testa alta. Era diferente, porém, numa coisa. Em quê? Com 4 anos de idade, Gabriel não falava.

    - É mudo - dizia seu Benevenuto.

    - Coitado do meu filho - suspirava a mãe. - Sem poder se explicar, vai sofrer muito.

    Aos 5 anos, quando ninguém mais esperava, Gabriel falou. Mas pouco, como se as palavras fossem de ouro. Só a madrinha compreendia:

    - Deixa estar. Gabriel não fala pra economizar a inteligência. Quer dizer: ele fala pra dentro.

    Quando fez 20 anos, Gabriel teve um sonho. Uma voz lhe dizia: "Gabriel, anda construir uma casa só pra você".

    Sem pressa, começou a juntar dinheiro pro cimento, a pedra e a areia lavada. Fez os alicerces, subiu as paredes, dispôs o telhado. Inventou uma maneira de recolher água da chuva, uma espécie de funil de telhas. Não era marceneiro, mas fabricou sozinho os móveis. Uma cama, uma mesa e um "altar de livros". Era assim que ele chamava a estante.

    Gabriel era agora trabalhador de salina, fábrica de sal, junto ao mar, onde a água cercada fica presa para evaporar. O que sobra é o sal. Trabalho duro. Curte a pele. Quebra a pele dos pés e das mãos. Cega.

    Mesmo cansado, Gabriel acendia um lampião para trabalhar à noite na construção da sua casa. Não tinha sábado nem domingo.

    A casa ficou pronta. Tanto esforço e era uma casinha de nada. Quem passava cá embaixo na estrada dizia: "É de boneca".

    Foi quando ele teve um novo sonho.

    Sonhou que dormia. Batiam à porta. Foi atender e não viu ninguém. Tornou a se deitar. Com pouco, novas batidas. Gabriel veio abrir e de novo não havia ninguém. Quando retornou à cama, lá estava uma mulher sentada. Vestia um vestido amarelo, vaporoso. Tinha um exagero de brincos e colares, mas um jeito suave. Se abanava com um leque cujo perfume tomava conta do quarto.

    - Quem é você? - ele quis saber.

    - Acho que você me conhece - ela respondeu. - Vim pra lhe dar uma ordem, Gabriel. Enfeite essa casa. Ela é só sua, mas não é bonita. Dia seguinte era feriado. Mal tomou café, Gabriel saiu atrás de enfeites. Só achou cacos. Naquele tempo, pobres não tinham nada inteiro. Quando os ricos deixavam quebrar alguma coisa, ou se cansando dela, jogavam no lixo, os pobres, que eram livres há pouco tempo, pegavam.

    Pois Gabriel enfeitou sua casa com cacos. Cacos de telhas, de ladrilhos de azulejos... Faróis de automóveis, lâmpadas queimadas, bibelôs mutilados... Seixos da beira do rio... Pedaços de espelhos, correntes partidas, ralos de chão, mariscos, tampinhas de lata, garrafas... Andando na praia, achou um osso estranho. Pegou.

    - É de baleia - garantiam os vizinhos.

    - É de dragão - afirmava ele.

    - Dragões só existem na imaginação - insistiam.

    - E então? Não é existir? - seu Gabriel encerrou a conversa.

    A casa de Gabriel começou a ser chamada "Casa da Flor". As paredes eram cobertas de flores. Flores de pedra, de cacos. Vinha gente de longe espiar. Se admiravam que um operário de salina, filho de seu Benevenuto, que foi escravo, fizesse coisa tão bela. Ele olhava as pessoas com mansidão. Não se incomoda de explicar:

    - Eu faço isso por pensamento e sonho.

    Vai que um dia apareceu por lá uma professora da cidade. Uma especialista em arte popular. Olhou, olhou... Puxou conversa com seu Gabriel:

    - Seu Gabriel, isso não tem igual no Brasil. Pode ter na Europa, nos Estados Unidos. Por que uma casa de cacos transformados em flor? Que ideia foi essa?

    Gabriel estava cego. O trabalho nas salinas criara nos seus olhos uma cortina que impedia a passagem da luz.

    - Olha, dona Amélia. Eu fico muito satisfeito trabalhando com os cacos porque as coisas modernas, coisas novas, ninguém vai ver. A gente entra nas cidades grandes, aquilo lá está tudo moderno, tudo bem organizado, tudo custa dinheiro. As pessoas veem a força da riqueza... Mas aqui elas gostam de ver porque é a força da pobreza.


Texto de Joel Rufino dos Santos retirado da Revista Nova Escola, Outubro de 1993. Fundação Victor Civita, Editora Abril.


A história de Gabriel Joaquim dos Santos é uma alegoria à própria história do negro brasileiro, que após a abolição teve que colar os pedaços de sua cultura (das suas crenças, da sua personalidade) e construir algo novo, com o que sobrara dos 500 anos de senzalas. Gabriel nasceu em 1892 e morreu 92 anos depois. Aos 85 anos teve seu trabalho descoberto. Criou-se também uma Sociedade de Amigos da Casa da Flor, que tenta preservar a obra de Gabriel.

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