domingo, 6 de fevereiro de 2022

A Sagrada Família

    Essa história aconteceu há 10 mil anos. Naquele tempo, o deserto do Saara não era como hoje - de uma banda a outra, um mundo de areia, pedras e escorpiões. Nem deserto era. A paisagem era verde. Chovia normalmente e muitos rios corriam por lá.

    Um deus que tinha corpo de homem saiu do Saara para a beira do rio Nilo, um rio comprido que nasce no centro da África e vai desembocar no mar Mediterrâneo.

    O deus se chamava Osíris e tinha a pele escura como a maioria dos africanos. Osíris queria ensinar aos moradores do Nilo coisas úteis e decentes: não comer serpentes, cozinhar o pão, fazer tijolos, cobrir o sexo... Era um deus civilizador. Todo povo tem um.

    Junto com Osíris veio Toth, um escriba. A profissão dele era escrever. Toth tinha de anotar a sentença dos que morriam. Osíris tinha uma balança. Num prato botava o coração do morto, no outro, uma pena que simbolizava a Verdade. Se o coração e a pena pesassem igual, o sujeito tinha sido bom. Se o coração fosse mais pesado, tinha sido mau. Toth anotava. Os maus eram devorados por um monstro horrendo. Os bons iam se divertir num campo verde sem fim.

    Sendo esse ofício de Toth, se podia pensar:

    - Era uma criatura fúnebre.

    Engano. Como sabia escrever, inventou as ciências e as artes. Foi também quem deu nome às coisas. Por decisão dele, pedra ficou sendo pedra, raiva ficou sendo raiva, Lua ficou sendo Lua e assim por diante.

    Toth era sozinho, mas Osíris tinha mulher. Se chamava Ísis.

    Moça inteligente e decidida, Ísis ensinou as egípcias a cuidar dos filhos, a limpar móveis e tratar dos jardins. Para protegê-las inventou o casamento. Os rapazes não podiam se aproveitar delas e ir embora.

    Vai a bela Ísis tinha um irmão ambiciosíssimo: Seth. Osíris reinava no Egito do Norte, Seth, no Egito do Sul. Seth inventava picuinhas, a irmã se preocupava, mas Osíris preferia ignorar.

    - Deixa estar. Inveja não é crime.

    Certa manhã, Osíris achou que os egípcios já sabiam demais. Seus médicos curavam laringite, esquistossomose, doenças da vista... Os cirurgiões abriam maxilares para drenar o pus, remendavam cabeças e pernas quebradas... Os dentistas faziam obturações com cimento e pontes de ouro... Cálculos, como o do volume da pirâmide truncada, os matemáticos faziam com os pés nas costas. Decidiu civilizar outras terras. Deu o cetro para Ísis e partiu.

    - Quando voltas? - ela perguntou de olhos molhados.

    - Talvez um dia. Talvez nunca. Centenas de anos se passaram sem nenhum deles envelhecer. É assim no tempo dos mitos.

    Uma tarde, Ísis passeava na beira do Nilo quando passou por sobre sua cabeça uma nuvem de cambaxirras. Era um sinal de que seu marido estava de volta. Ela perfumou o palácio e sentou com as mucamas para esperar.

    Seth, que tinha espiões por toda parte, ficou sabendo. Armou uma emboscada na saída do deserto e capturou Osíris. Fechou o corpo num cofre de ferro que mandava vir da Assíria e jogou no Nilo.

    As lágrimas que derramou Ísis! Aconselhada pelo escriba, começou a procurar o estranho ataúde rio acima. Nada. Teve um sonho: Osíris estava debaixo de uma tamargueira, perto da vila de Biblos, na Fenícia. Era longe, mas, desde menina, não se sabe porquê, acreditava em sonhos que tivessem árvores.

    Ísis passara a infância na Núbia, centro da África. Segundo a tradição, após o dilúvio, Noé teve um filho negro de nome Cam. Cam se mudou para a África e teve dois filhos: Misr, que deu origem aos egípcios, e Çaxe, que deu origem aos núbios (núbios ou cuxitas são a mesma coisa). Pois bem: na Núbia, Ísis aprendera como se penteiam as rainhas e como se ressuscitam os mortos. Para se aproximar da tamargueira, sob a qual Osíris estava enterrado, ela se transformou num gavião. Pousou num galho da árvore e, sem ninguém saber como, engravidou.

    Assim, quando Osíris voltou a viver, tinha um filho. Chamava-se Hórus. Era bem escuro e sua testa brilhava como o Sol, mesmo em dias nublados. Quando Seth tomou conhecimento, não perdeu tempo. Ofereceu uma recompensa e localizou Osíris num pântano do delta do Nilo. Lá as águas tinham um cheiro doce insuportável.

    Dessa vez pediu um machado e retalhou o corpo de Osíris em 14 pedaços e os espalhou ao longo do rio. Não contava com a paciência de Ísis: ela procurou incansavelmente e foi juntando uma por uma as partes do marido. Faltou uma: o pênis.

    Néftis, que tinha sido mulher de Seth e conhecia bem sua maldade, explicou:

    - Não adianta procurar. A essa altura os malditos caranguejos do Nilo o comeram.

    Osíris abriu os olhos e viu as emendas de um corpo que fora belo como um feixe de papiros. Tristíssimo, fitou o deserto de onde viera um dia:

    - Pretendo ser o deus do Inferno. Meu tempo no mundo expirou. Obedeçam meu filho Hórus como se fosse a mim.

    Dessa sagrada família - Osíris, Ísis e Hórus - descendem os faraós construtores das pirâmides, como as de Gizé, de Quéops, de Micherinos...


Texto de Joel Rufino dos Santos publicado na revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril; edição de Março de 1993.

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