sábado, 12 de fevereiro de 2022

Bumba-Meu-Boi

    Esta é uma história de vontade.

    Numa fazenda de gado à beira do Rio São Francisco trabalhava um casal de escravos: Francisco e Catirina. Vai que Catirina ficou grávida. Numa noite em que a lua prateava o pasto, Catirina gemeu para o marido:

    - Estou com desejo de língua de boi.

    - Vontade de grávida é ordem - disse Francisco. - Mas os bois não são nossos. Você sabe, mulher.

    Naquela mesma hora, não é que apareceu um boi enorme, branco e gordo? De quem é, de quem não é... Francisco entrou para dormir, mas Catirina foi atrás. Tinha um olhar comprido que dava pena:

    - Quem me dera uma língua de boi...

    Francisco saiu e matou o coitado. Cozinhou a língua e pôs fim ao desejo da mulher. Chamou depois os vizinhos e repartiu o resto:

    - A pá é pro Itamá. A peitaça pro seu Vilaça. Pro meu sobrinho Antonil, o costaço. Pro seu Dodato, o pernil...

    Só sobraram os chifres e o rabo, que ninguém quis.

    Daí a dias, o dono da fazenda cismou de ver o rebanho:

    - Cadê o boizão, aquele que eu trouxe do Egito? O feitor procurou pela fazenda inteira. Deu a notícia:

    - Sumiu.

    - Sumiu, como?!

    Um escravo que tinha visto Francisco fazer a repartição, e não tinha ganhado nada, contou:

    - Vi o Chico matando ele.

    O amo caiu no choro. Era um homem feroz, mas triste. Socava a parede:

    - O meu boi Barroso que veio do Egito em caravela!...

    Dava dó.

    - Vou consolar o amo - disse Francisco, quando soube.

    - Está louco? - falou Catirina. - É melhor fugir.

    O pobre do amo olhava comprido o que restava do boi: o esqueleto com o rabo e os chifres.

    Mandou buscar curandeiros em todas as partes.

    O primeiro olhou, olhou. - Tá morto. E deixou uma lista de remédios. - Com três dias arriba.

    De fato. No terceiro dia o boi deu um pum. Foi só.

    Rezaram, recitaram mantras, cumpriram penitências. Nada. Dessa vez nem um traque.

    Alguém se lembrou de um pajé. Chegou com ervas e uma coleção de sapos secos. Acendeu um cachimbo e baforou os restos do boi. Também, nada.

    - O meu boi morreu!... - chorava o amo. - Que será de mim?

    - Manda buscar outro - sugeriu o feitor -, lá no Piauí.

    Ninguém queria entender o sofrimento dum homem tão rico.

    Enquanto isso, Francisco e Catirina estavam escondidos no município de Ão. Fica pra lá de Montes Claros e acabaram sabendo que um fazendeiro assim assim morria de paixão por um boi assassinado etc.

    - Se eu soubesse - suspirou Catirina -, não te pedia língua de boi aquela noite.

    - E se eu soubesse - falou Francisco -, não te fazia a vontade.

    O menino, que tinha nascido e já era grandinho, chamado Mateus, estava ouvindo a conversa.

    - Meu pai, minha mãe, eu resolvo o caso.

    Chegaram na fazenda. Francisco e Catirina ainda com medo do castigo. O amo, porém, só tinha olhos para chorar. Os escravos há muito tempo não faziam mais nada. As porteiras estavam escancaradas e um vento frio fazia redemoinho na própria sala da casa-grande.

    Lá estavam os restos do boi no terreiro; o esqueleto com o rabo e os chifres. Mateus levantou o rabo do boi e espiou lá dentro. Ninguém sabe o que ele viu. Assoprou três vezes.

    O boi viveu. Saiu chifrando quem estava perto. O amo não cabia em si de alegre. Pulava e abraçava os escravos. Perdoou Francisco e Catirina.

    Esse foi o primeiro bumba-meu-boi do mundo. Mais tarde, pra ficar mais bonito, inventaram as criaturas fantásticas: o Caipora, o Bicho Folharal, O Jaraguá e a Bernúncia. E outros animais, além do boi: a Burrinha, a Ema, o Cavalo-Marinho, o Urso, o Jacaré, o Urubu e muitos outros.


Texto de Joel Rufino dos Santos retirado da Revista Nova Escola, Junho de 1993. Fundação Victor Civita, Editora Abril.

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