sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Os porcos e a roça de mandioca

    De um galho da árvore, o garoto gritou: "Lá vou eu" e saltou. No rio, brincando e espirrando água para todos os lados, estavam outros garotos da aldeia Kamaiurá. O dia já amanhecera e o sol aparecia lentamente na linha do horizonte.

    Na aldeia, algumas pessoas ainda dormiam. A menina Kamavu se espreguiçava na rede, entretida com uma pequena fresta na parede da casa, que deixava entrar um feixe de luz amarelado. Sua mãe estava próxima do fogo preparando um bolo de mandioca chamado beiju. "Hoje vamos na roça arrancar algumas mandiocas", disse a mãe para a menina. "Acabe de acordar e venha comer um pedaço de beiju quentinho." Nas casas kamaiurá, que ficam lá no Parque Indígena do Xingu, come-se beiju o tempo todo: puro, com peixe assado ou ensopado ou com pimenta.

    Pouco depois os meninos voltavam do rio e um grupo de mulheres e crianças saía em direção à roça. As mulheres carregavam cestos vazios que voltariam cheios de mandioca. Antes de se embrenhar pela mata, resolveram passar pelo Posto Leonardo, onde há uma pista de pouso pela qual chegam os aviões trazendo funcionários da Funai, visitantes e remédios. No dia anterior tinham escutado o ronco do avião e as crianças, que estavam no Posto, correram para a aldeia contar da chegada de uma visitante. Alguns adultos tinham ido até o Posto e, à noite, toda a aldeia Kamaiurá já sabia que uma linguista chegara no avião e iria morar alguns meses com eles, para aprender a falar e a escrever a língua dos kamaiurá. Estavam curiosos para saber como era a estrangeira.

    Depois de parar um tempo no Posto e conhecer a visitante, o grupo de mulheres seguiu para a roça, comentando sobre os presentes que ela teria trazido. Lá chegando, ouviram os gritos das crianças: "Os porcos-do-mato comeram a nossa mandioca". Os kamaiurá fazem cercas em volta das roças para impedir que bandos de porcos-do-mato entrem e destruam o que está plantado. Mas desta vez os animais tinham derrubado um pedaço de cerca e comido boa parte das plantas e mandioca.

    As mulheres ficaram enfurecidas. Também, não era para menos. Há vários meses elas estavam trabalhando nessa roça. Primeiro os homens tinham vindo, na estação seca, para derrubar as árvores grandes que, ao tombarem, arrastavam as de menor porte. Eles haviam esperado que as madeiras e as folhas secassem e então atearam fogo. Quando as cinzas, os troncos e o solo esfriaram, as mulheres vieram e plantaram pedaços de mandioca na terra. Essa plantação era feita entre troncos e galhos que haviam sobrado da queimada e antes que começasse a época das chuvas.

    Antigamente os kamaiurá utilizavam machados de pedra e instrumentos de osso e madeira no trabalho da roça. Após o contato com os brancos, este objetos foram pouco a pouco sendo substituídos por instrumentos de metal, como o facão, o machado de ferro e a enxada. Isso facilitou o trabalho na roça, que mesmo assim continua a ser árduo e a exigir muito esforço. Era por isso que as mulheres estavam tão zangadas. Queriam voltar para a aldeia e mandar seus maridos caçarem aqueles porcos comilões.

    Trataram de arrancar as mandiocas que haviam sobrado, enchendo seus cestos. Algumas aproveitaram para pegar um pouco de fumo e algodão que elas também cultivavam. Aquela era uma roça recente e as mulheres continuariam plantando ali por mais alguns anos antes de abrirem uma nova. As mais práticas trataram de arrumar a cerca destruída, para que os porcos não invadissem de novo. Na volta à aldeia, passaram outra vez pelo Posto e contaram a todos o que havia ocorrido. O chefe de posto da Funai, a pedido das mulheres, emprestou espingardas para um grupo de homens, que no final da manhã partiu para a mata em busca dos porcos.

    O sol estava forte por volta do meio-dia e o pátio da aldeia Kamaiurá, deserto. Nem mesmo as crianças se aventuravam a sair de suas casas. Mas, à medida que a tarde chegava, o zunzum das conversas foi crescendo. Na casa da menina Kamavu as mulheres acabavam de decidir que iriam fazer moitará com as mulheres de uma outra casa. Queriam quebrar a monotonia da tarde e esquecer as mandiocas que tinham sido comidas pelos porcos.

    Sem muitos preparativos, cada mulher apanhou um ou dois objetos e se dirigiu para a casa escolhida para fazer o moitará. Entraram todas sem cerimônias e foram logo se sentando no chão. As mulheres da casa visitada se juntaram a elas. Uma visitante iniciou o moitará depositando uma cuia no chão. Esta foi pega e examinada por todas as mulheres da casa. Uma delas se interessou e colocou como oferta um pente. O pente foi então examinado pelas mulheres do outro grupo e retirado do chão. Estava concluída a troca. Um outro objeto era posto para avaliação. O entusiasmo das mulheres crescia com o volume de bens colocados no chão e que circulava pelas suas mãos. A troca só se encerrou quando os artigos trazidos pelas visitantes acabou, e elas então retornaram para suas casas. Mas, a bem da verdade, o moitará ainda não tinha terminado. Agora era a vez das mulheres da casa visitada irem à casa das que haviam iniciado o moitará. Lá começou uma nova rodada de trocas. Alguns homens, que não tinham saído para caçar, acompanhavam de longe a algazarra das mulheres. Eles também realizaram moitará, quando um grupo de homens de uma casa decide trocar coisas em outra casa. Já começa a escurecer quando um grupo de homens entrou no pátio da aldeia. Tinham vagado pela mata seguindo as marcas deixadas pelos porcos. O pai de Kamavu estava contente: tinha conseguido abater um porco, que agora seria repartido entre seus parentes.

    À noite, em volta do fogo, enquanto comiam os beijus preparados com as mandiocas que haviam sobrado com pedaços de carne de porco, homens e mulheres daquela aldeia Kamaiurá comentariam sobre o estrago feito pelos porcos na roça, sobre a caçada da tarde, a chegada da linguista e as trocas realizadas durante o moitará. Tudo isso daria muito o que falar.


História de Luis Donisete Grupioni. Retirado da revista Nova Escola, Dezembro de 1992. Fundação Victor Civita; Editora Abril.

Essa história foi baseada no livro Os Índios de Ipavu, de Carmen Junqueira, Editora Ática, São Paulo, 1978.

Nenhum comentário:

Postar um comentário