quarta-feira, 15 de maio de 2024

É só não tomar conhecimento

Com a escova de dentes na mão, pousa a lagarta verde da pasta sobre as cerdas, e levanta o rosto para o espelho, entreabrindo os lábios em esgar higiênico. Mas no gesto rotineiro a rotina se rompe, e não é a si mesmo que vê. Outro é o rosto que, contido no vidro, o encara sem sorriso ou reconhecimento.

Em pânico, querendo segurar-se na objetividade dos atos práticos, abre o espelho, porta do armarinho do banheiro. E eis que no reverso, costumeiro como sempre, seu rosto espera, de lábios entreabertos, que ele comece a escovar os dentes.

Corre a água sobre a escova levando os últimos restos de pasta. E enxugando a boca com a toalha, ele pensa que o fato afinal não foi tão grave, um susto apenas. Bastará deixar a porta aberta, ignorando o outro, para que tudo continue como antes.


Texto de Marina Colasanti retirado do livro Contos de Amor Rasgados, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1986.

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