domingo, 26 de maio de 2024

Brasil, 2063

O filho perdera o foguete das sete para o colégio e passara o dia inteiro em casa, chateado. Agora pedia para brincar um pouco lá fora, antes do jantar, e a jovem senhora concordou. Ajeitou a camisa de plástico antirradiotivo do garoto e recomendou: - Mas brinque aqui mesmo na Terra, hein?! Seu pai não gosta que você atravesse a galáxia sozinho.

Voltou para o quarto e sentou-se desanimada diante do espelho. Depois começou a passar o removedor atômico no rosto. A folhinha eletrônica em cima da mesinha marcava a data: 30 de julho de 2012. Fazia trinta anos naquele dia e se sentia uma velha, apesar de sua bela aparência. E pôs-se a pensar no presente de aniversário que o marido lhe dera: uma bonita vitrola superestereofônica tridimensional. "Não sei onde vamos parar com esses preços" - disse para si mesma, pois sabia que o marido, pelo plano Creditex, dera dois bilhões de cruzeiros de entrada.

Ouviu o videofone tocar e logo depois sentiu a presença do mordomo invisível no quarto. A voz  respeitosamente informou que era para ela. Mandou que o empregado ligasse a tomada para o seu quarto e, enquanto sentia que ele se retirava, considerou que precisava chamar a atenção do mordomo para o bafo alcoólico que deixava no ar. Provavelmente dera outra vez para chupar dropes de uísque durante as horas de trabalho.

Agora a voz familiar de sua amiga Mariazinha dizia "alô" e logo depois sua cara gorda aparecia no retângulo do videofone: - Querida - dizia ela - eu te videofonei para dar os parabéns pelo dia de hoje.

A outra agradeceu e ficaram a conversar sobre essas coisas que as mulheres vêm conversando há séculos sem o menor esmorecimento. De repente, a cara gorda se iluminou com um sorriso: - Você sabe que eu descobri uma decoração formidável e baratíssima? - E frisou: - Baratíssima! - E vendo o interesse da amiga, contou que mandara restaurar o radar da sala de jantar e que a decoradora fizera um trabalho que é um amor.

- Me dá o endereço - pediu a aniversariante.

- Local X 120 HV, 985º andar. - E como a amiga não se lembrasse onde era o Local X 120, esclareceu: - antiga praça San Thiago Dantas.

Conversaram ainda sobre problemas domésticos e Mariazinha ficou sabendo que a amiga estava sem cozinheira. Mandar a antiga embora, porque dera para queimar as pílulas do jantar a ponto de tornar a refeição intragável. Tanto assim que iam aproveitar o aniversário para comer fora: - Vamos à pílula-dançante do Country. - Isso, naturalmente, se o marido chegasse em casa cedo, o que era improvável, pois o helicóptero dele estava na oficina e, na hora do rush, sabe como é, esses aviadores somem e não há um helicóptero de aluguel para servir as pessoas.

Mariazinha ainda conversou um pouquinho. Contou o escândalo da véspera, quando um deputado se desentendera com o Corbisier Neto e puxara uma pistola atômica para alvejar o político petebista. Felizmente a turma do deixa disso impedira que o coitado fosse desintegrado no plenário. Em seguida Mariazinha se despediu.

Desligando o videofone, voltou à sua toalete mais animada um pouco pela conversa da outra. Mariazinha era uma mulherzinha decidida, que nunca perdia o bom-humor, apesar da tragédia de que fora vítima: o marido cometera "sexídio". Tomara remédio para virar mulher.

E estava na sala a ler o romance de um escritor do século passado - um clássico novecentista - quando o marido chegou. Vinha esfalfado, com uma cara de quem fizera um esforço fora do comum.

- Já sei que não vamos à pílula-dançante - disse ela.

- De jeito nenhum, minha filha - respondeu o marido. - Imagine que o cérebro eletrônico do escritório enguiçou e eu passei o dia inteiro pensando sozinho.

A mulher suspirou de desânimo e murmurou chateada: - Com esse governo que ainda por aí, nada funciona direito no Brasil.


Crônica de Stanislaw Ponte Preta retirada do livro Dois amigos e um chato, Coleção Veredas, Editora Moderna,  26ª Edição, 1997, São Paulo.

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