quarta-feira, 22 de maio de 2024

Como (não) educar um assassino em casa

Estarrecidos, vemos a realidade superar a ficção. A sangue frio, em São Paulo, o estudante Gustavo Pissardo mata os pais, os avós paternos e a irmã e, em Porto Alegre, Carlos Alberto Pinto de Oliveira degola seus pais. Nem a demência justifica - embora explique - crimes tão hediondos.

O assassino mora em casa porque, salvo casos excepcionais, ele foi criado para odiar. Não é o traficante que produz o viciado. Nem o efeito alucinógeno das drogas. è o desamor, a incapacidade de a família relacionar-se com o filho que não se comporta segundo o modelo instalado na cabeça dos pais. O diferente torna-se divergente e quem devia ser amado passa a ser rejeitado.

Na natureza, todos os mamíferos curtem carinhosamente suas crias. Já répteis, como as serpentes, geram como quem cospe, indiferentes ao destino de seus filhos. Em nossa estrutura cerebral reside também uma cascavel. Se os pais se desgostam na frente dos filhos, agridem-se em palavras e gestos, transformam a casa num lugar insano,, como esperar que os filhos cresçam felizes? Pais que não tocam fisicamente seus filhos, têm pudor de transmitir-lhes carinho ou nunca têm tempo para curti-los, levá-los a passear e se interessar pelo microuniverso deles, podem estar fabricando um assassino em potencial.

Tenho visto pais em estado de perplexidade ao constatarem o filho dependente de drogas. Movidos por um pragmatismo equivocado, adotam reações que vão das ameaças ao castigo ou entregam o caso a cuidados médicos. Se dispõem de recursos, ficam à procura das melhores clínicas e se sentem aliviados quando o problema é provisoriamente descartado - a internação do filho. Fazem exatamente o contrário do que deveria ser feito. A dependência da droga é uma questão afetiva. Não há remédios, médicos clínicas ou internações que preencham o buraco no peito daquele filho que não se sente amado.

No tratamento de um viciado os cuidados terapêuticos são importantes, os remédios, necessários, porém o fundamental é o amor. Amar o dependente com todas as forças e acima de todas as coisas. Fazê-lo sentir-se querido, apreciado, sem nenhuma vergonha de suas reações antissociais e nenhum pudor de manifestar carinho a quem já não é criança. Sobretudo, evitar censurá-lo. Sensível, o dependente apreende quando o tratamos como mero problema ou transmitimos uma afeição que, de fato, nutrimos do fundo de nosso coração.

Todo amor, exceto o divino, supõe no mínimo a retribuição do ser amado. No caso de um drogado, não deve haver ilusões: a retribuição, em forma de recuperação, vem a longo prazo. Durante um período difícil, faz-se necessário que a família ame incondicionalmente, sem confundir amor com presentes, viagens e promessas. No viciado manifesta-se a loucura da família, como o tumor no corpo. E só haverá cura se a família tiver a paciente humildade de reiniciar o aprendizado do amor. Porém, se o pai não dispõe de tempo e a mãe está sempre ocupada no trabalho ou com suas modelações estéticas; se o pai dá mais atenção ao colega de trabalho que ao filho e se a mãe de desespera porque o vê tomando drogas, é sinal de que ainda eles não centram suficientemente sua atenção amorosa no filho.

o amor cura, liberta, salva. E não há bonecas, velocípedes, viagens à Disney, que possam substituí-lo. Porque não há bens materiais capazes de preencher o buraco que trazemos no peito, esse apetite divino que nos faz passar toda a existência à procura do Amor e que leva os filhos bem-amados à personalização harmoniosa que os faz considerar as drogas uma droga.


Texto de Frei Betto retirado do livro Cotidiano & Mistério, Editora Olho Dágua, São Paulo, 2ª Edição, agosto de 2003. (1ª edição de 1996).

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