quarta-feira, 7 de outubro de 2020

A Periferia e o Centro

 O berço da Modernidade talvez resida, não no Renascimento italiano ou na Reforma protestante, e sim, na aventura marítima de Cristóvão Colombo, desembarcando no Novo Mundo em 12 de outubro de 1492. A chegada das caravelas espanholas ao nosso continente alterou profundamente a vida e a história dos povos que aqui viviam; astecas, maias, quechuas e aymaras. Contudo, assim como o corruptor faz o corrupto e a mentira instaura o mentiroso, o efeito da conquista mudou radicalmente o perfil do conquistador.

Até 1492 as histórias dos povos eram regionais. Nenhum povo trazia a experiência da mundialidade da História. Quando muito, conhecia expansões mediterrâneas e asiáticas, que, no entanto, não tornava gregos, romanos ou mongóis centro de um orbe inculturado pelo dominador. Ao quebrar, no século 15, as barreiras que lhe haviam sido impostas pelo domínio muçulmano desde 711, a Península Ibérica impregna a Europa da consciência de ser o centro do espaço mundial. Os portugueses lançam a ponte entre o continente europeu e a Ásia oriental, enquanto os espanhóis estendem o arco que se abre da América às Filipinas.

A centralidade europeia, instaurada em 1492, induz o conquistador a confundir sua particularidade com a universalidade. Já não se admitem fenômenos como o deslocamento do polo cultural da dominação grega, que se transfere do centro para a periferia - da Academia de Atenas para a Biblioteca de Alexandria - ou a pluralidade religiosa do império romano, tolerante com as crenças judaicas. Agora, o conquistador se julga modelo e modelador. "Europeu" torna-se sinônimo de humano e civilizado, enquanto os habitantes da periferia, por não residirem no centro, são tidos como seres inferiores, cuja salvação depende da submissão. Suprime-se, assim, a diversidade planetária. A partir de então, colonialismo e neocolonialismo fortalecem vínculos de dependência que nos fazem habitantes de um mundo que se define Terceiro em relação ao Primeiro...

Passados 500 anos, os povos da "periferia" americana tomam consciência de seu atávico mimetismo, ao mesmo tempo que empreendem a luta pelo resgate de sua identidade. Indígenas e negros descobrem-se, agora,  com os próprios olhos, talvez estranhando esses brancos que afagam gatos e cães e pensam que têm um corpo que lhes oprime a alma, sem consciência de que são um corpo pleno de espírito. E, do outro lado do oceano, o "centro" se dá conta de que não é homogêneo. A liberdade traz à tona a diversidade de raças e etnias, religiões e nações, que exigem espaço e reconhecimento próprios. À porta de sua integração a Europa se desmembra e seus países se desintegram. E se pergunta se foi mesmo um genovês instruído em Portugal e financiado pela Espanha quem "descobriu" a América, convencido de que chegara às costas da Ásia...


Texto de Frei Betto retirado do livro Cotidiano & Mistério, Editora Olho D'água, 2ª Edição, São Paulo, 2003.

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